O resultado das eleições venezuelanas abriu um intenso debate na esquerda brasileira. Amplamente contestado, não só pela oposição, como boa parte da população, manifestações despontaram por todo o país, principalmente na capital Caracas, tendo como resposta uma dura repressão do regime de Maduro. Enquanto fechávamos este texto, 11 mortes já haviam sido confirmadas, além de centenas de presos e feridos.

O governo Maduro, além de não ter apresentado ainda as atas eleitorais, expulsou os embaixadores de sete países que não reconheceram automaticamente a sua vitória, e levantaram dúvidas sobre a lisura do processo. Inclui-se aí o Chile de Gabriel Boric.

Mas, enquanto inúmeras organizações de esquerda da própria Venezuela denunciam uma fraude realizada pelo governo para perpetuar-se no poder, como a Unidade Socialista dos Trabalhadores (UST), seção da LIT-QI no país, e até organizações que eram alinhadas ao chavismo e compunham o PSUV (Partido Socialista Unido da Venezuela), como o Partido Comunista da Venezuela ou o Marea Socialista, no Brasil, o PT, correntes e dirigentes do PSOL, entre outros setores, saíram na defesa incondicional do regime de Maduro. É normal, portanto, que muitos estejam confusos diante desta situação.

O chavismo e o regime de Maduro

Os defensores do regime venezuelano argumentam que Maduro, com seus eventuais problemas, representaria um contraponto à direita e à ultradireita e, principalmente, ao imperialismo norte-americano. Anos atrás, ainda se levantava a ideia de um suposto regime socialista “do Século XXI”, mas hoje esse tipo de argumento não se sustenta mais. Mas o pretenso caráter anti-imperialista do governo Maduro, e a luta contra a ultradireita, ainda são fortes bases para esse tipo de posição.

Hugo Chávez tomou posse como presidente em 1999, numa conjuntura de dramática miséria e desigualdade social, e na esteira de fortes agitações e protestos que haviam produzido, em 1989, o que ficou conhecido como “Caracazo”, uma explosão social respondida com uma brutal repressão que deixou centenas de mortos. O movimento bolivariano liderado pelo ex-tenente-coronel Chávez preconizava um nacionalismo com forte fraseologia socialista, moldada aos “novos tempos”, contra as elites, a corrupção e o imperialismo. Desta forma, angariou amplo apoio popular.

Uma vez no poder, porém, Chávez implementou uma nova Constituição, e avançou para um regime cada vez mais autoritário, com a perseguição de ativistas e sindicalistas que não se alinhassem ao seu governo. O referendo de 2009 eliminou as limitações às reeleições, e possibilitou que se perpetuasse no poder. A renda com a exportação do petróleo, no entanto, principalmente nos anos de boom das commodities, tornou possível uma série de programas sociais compensatórios às parcelas da população mais empobrecidas, sem que se mudasse a estrutura de dominação capitalista, inclusive das multinacionais.

O chavismo, poderia, por exemplo, ter enfrentado as recorrentes crises de abastecimento expropriando de fato as empresas privadas e multinacionais e colocando-as a serviço da população. Mas a manutenção da grande propriedade capitalista, e imperialista, nunca resolveu a situação do país e o deixou permanentemente vulnerável a crises e pressões, tanto da burguesia quanto do próprio imperialismo.

Crise e decadência do regime

A morte de Chávez, em 2013, ocorre num contexto de já acelerado desgaste do regime. Seu sucessor, Maduro, ao continuar gerenciando o capitalismo em prol das empresas e do sistema financeiro, mergulhou o país numa crise sem precedentes, que deixou mais de 80% da população na extrema pobreza (Pesquisa Nacional de Condições de Vida), e uma diáspora que atingiu um quarto da população, obrigada a tentar a vida no estrangeiro.

Os bloqueios e sanções impostos pelo imperialismo, principalmente o norte-americano, aprofundam essa crise, e dão fôlego ao discurso anti-imperialista de Maduro. A realidade, porém, é que Maduro jogou nas costas da classe trabalhadora e dos mais pobres o custo dessa crise, com ataques trabalhistas e cortes sociais a fim de honrar a dívida. Em abril deste ano, por exemplo, Maduro contratou o banco norte-americano Rothschild para reestruturar sua dívida pública de 154 bilhões de dólares, nas mãos de investidores dos EUA, da Rússia e da China, entre outros. Já a norte-americana Chevron incrementou seus investimentos na exploração de petróleo, enquanto a estatal PDVSA definha.

A crise na Venezuela e a política anti-operária de Maduro provocaram um rápido desgaste do regime. O governo respondeu à erosão de sua base social recrudescendo o seu caráter autoritário e repressivo. Com a Assembleia Nacional nas mãos, assim como o Superior Tribunal de Justiça, ou seja, o Legislativo e o Judiciário sob seu comando, avançou ainda mais na perseguição de opositores. Em 2023, por exemplo, reprimiu duramente e prendeu os líderes de uma mobilização da Sidor (Siderúrgica del Orinoco) que protestavam por salários e direitos. Da mesma forma, centenas de ativistas e sindicalistas estão, agora mesmo, presos no país.

Junto a isso, a censura nos meios de comunicação e a proscrição de partidos e organizações de esquerda contrários, ou simplesmente críticos ao regime venezuelano, tornaram-se a regra. Muito se fala sobre o impedimento da candidatura burguesa de María Corina à presidência, mas, geralmente, “esquece-se” que os partidos de esquerda também não puderam apresentar uma alternativa própria e independente às eleições.

Defender Maduro é defender uma ditadura capitalista

O que se tem hoje na Venezuela é, assim, uma ditadura capitalista, com base no Exército e na burguesia que se enriquece às custas dos ataques contra a classe trabalhadora e do empobrecimento da população. A luta para que sejam respeitados os votos se dá neste contexto, um direito democrático elementar, mesmo numas eleições que, desde o seu início, foram viciadas e articuladas para que não proclamasse outro vitorioso que não Maduro.

O discurso cínico e hipócrita do governo Biden, assim como da própria oposição burguesa capitaneada por María Corina e seu fantoche, Edmundo Gonzáles, não mudam isso. Já a esquerda que presta apoio incondicional a Maduro, e tacha de “guarimbas” (protestos artificiais impulsionados pela direita) os legítimos protestos contra a ditadura e a fraude, ajudam a legitimar e a perpetuar esse governo que ataca, prende e persegue opositores, principalmente lideranças sindicais e populares.

Imagine a classe trabalhadora e o povo pobre da Venezuela. De um lado, sofre com um governo que os ataca e os joga na miséria quase absoluta, sem possibilidade de protestar ou se organizar de forma independente. De outro, com a esquerda proscrita e limitada por Maduro, enxerga como única alternativa uma direita pró-imperialista que pretende devolver o poder aos velhos setores da burguesia e entregar ainda mais o país aos EUA. O único caminho diante desse impasse é defender a mobilização, e a organização, independente da classe trabalhadora, e a construção de uma via de classe contra esses dois setores. E isso passa pela luta por liberdades democráticas, contra a ditadura, para que o povo possa lutar, se organizar e até mesmo se expressar livremente.

Maduro afirma que está sofrendo um golpe, e seus defensores recorrem à analogia com a tentativa de golpe contra Chávez em 2002. No entanto, como afirma a nota da UST, os setores que defenderam Chávez contra o golpe são os mesmos que estão agora nas ruas de Caracas, e de todo o país, contra a fraude eleitoral e a ditadura, sendo duramente reprimidos e perseguidos.

Estivéssemos frente a uma tentativa de golpe patrocinada pelos EUA, seria correto uma unidade de ação com o governo venezuelano contra o imperialismo, independentemente de seu caráter. Foi isso o que ocorreu em 2002. Mas tanto Maduro não é antiimperialista, quanto a unidade de ação que setores majoritários da esquerda fazem não é contra os EUA, mas com o governo chavista contra o seu próprio povo.

Neste sentido, a atuação do governo Lula de legitimar as eleições fraudadas é um completo desserviço à classe trabalhadora e ao próprio povo brasileiro. Lula afirmar que, quem discordar do resultado eleitoral basta recorrer à Justiça, é um acinte, pois ele sabe que essa mesma Justiça prende e persegue quem for contrário ao regime. E isso acaba ajudando também à extrema direita aqui no Brasil, que busca se fortalecer, e voltar ao poder, com base na hipócrita defesa da democracia na Venezuela, sendo que Maduro implementou justamente o que o bolsonarismo tentou fazer aqui.

Da mesma forma que rechaçamos o 8 de Janeiro aqui, e defendemos o respeito do voto do povo brasileiro que elegeu Lula, sem sermos lulistas (ao contrário, desde o chamado ao voto crítico a Lula contra Bolsonaro afirmamos que seríamos oposição de esquerda ao governo do PT), a luta contra a fraude e a ditadura de Maduro não significa ser “pró-imperialista”, ou capitular à direita burguesa venezuelana. Trata-se, isso sim, de defender as liberdades democráticas diante de uma ditadura capitalista, para que se seja possível se organizar e lutar, inclusive pelo socialismo.

Categorizado em:

Governo Lula,

Última Atualização: 01/08/2024