A esquerda carcerária e o PL da Dosimetria

A questão da repressão contra os bolsonaristas dividiu a esquerda entre os defensores da menor repressão estatal possível (posição clássica da esquerda), e a esquerda carcerária, espécie de estagiários de policiais penais. 

No afã de combater opositores políticos com o regime prisional capitalista, esta esquerda (também chamada “esquerda 190”) está de olho em cada passo do Congresso Nacional no intuito de aprofundar o Estado de exceção que foi aplicado aos bolsonaristas.

Dentro desse espectro repressivo está o MRT (Movimento Revolucionário dos Trabalhadores), que em texto recente se escandalizou com as mudanças no PL da Dosimetria feitas pelo Congresso. Segundo eles, o “texto aprovado na CCJ do Senado perde qualquer pudor ao fazer uma dosimetria que só beneficia quem cometer crimes contra o Estado Democrático de Direito, fazendo que com golpistas tenham condições melhores para progressão de pena do que outros presos”.

A organização, por meio de seu militante Ítalo Gimenes (que também é doutorando em Ciências Sociais), afirma que o Senado buscou “diminuir a pena de Bolsonaro e dos golpistas do 8 de Janeiro, agraciados com um direito excepcional de progressão de pena”.

E que foi retirado o “acúmulo da pena para condenados por tentativa de golpe de Estado e por tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, reduzindo ainda mais a pena de Bolsonaro, podendo se limitar a 2 anos e 4 meses em regime fechado, segundo o relator do projeto. Foi reduzido também a pena desses crimes em contextos de multidão, aliviando a pena para os condenados pela participação das ações do 8 de Janeiro em Brasília”.

Antes de mais é preciso dizer que estas condutas são políticas e foram transformadas em práticas penais. Ou seja, tentar dar um golpe ou abolir o estado, que é um propósito político de milhares de organizações no mundo inteiro, inclusive as revolucionárias, se tornou uma prática penal cuja pena pode incluir sua preparação (ou mesmo seu pensamento), como bem definido pelo dono do regime político nacional, o Sr. Alexandre de Moraes.

Em último caso, condutas políticas não deveriam ser consideradas crimes. Esse é um raciocínio elementar da esquerda. Quebrar coisas particulares ou públicas, agredir pessoas, etc. já são práticas criminais e, somente em razão disso, é que os manifestantes de janeiro de 2023 deveriam ser processados e, havendo provas, condenados em processos individuais. Isso não foi feito, por isso o correto é dizer que existe um estado de exceção contra eles.

Segundo o MRT, que tem posição parecida com os mais conservadores políticos do Partido dos Trabalhadores, o Congresso busca “acelerar a discussão da anistia de Bolsonaro e aos golpistas do 8J, disfarçada de redução de pena e direito à progressão”. 

Se os processos foram uma farsa para perseguir opositores do regime (e de fato foram) todos os processados, inclusive Bolsonaro, devem mesmo ser soltos, anistiados. Não se pode conceder poderes de um estado de exceção a um regime político burguês, pois quem realmente vai pagar por isso é a esquerda e os movimentos populares.

Mas o MRT insiste, e diz que: “essa proposta de anistia só pôde avançar graças à impunidade garantida a diferentes atores por trás do 8 de Janeiro. Apesar de alguns generais terem sido presos, foi preservada a alta cúpula das Forças Armadas que sustentou o governo de Bolsonaro a cada discurso golpista que fazia. Os empresários e financiadores do 8 de Janeiro seguem intocados”.

A boa e velha cantilena direitista do “combate à impunidade”. Quem não se lembra de todas as manifestações da direita, antes do golpe de 2016, que só falavam em impunidade, em aumento das penas e crimes? Agora é a vez da esquerda, totalmente manipulada pelos donos do regime. 

Não bastasse, o MRT acredita que toda a esquerda deve sair às ruas pelo aumento da repressão do estado:

“É necessário fortalecer a organização nos locais de trabalho e estudo para colocar em cena o rechaço massivo à PL da Dosimetria e a anistia para Bolsonaro e os golpistas. Nas últimas manifestações contra essas medidas, a expressão desse rechaço ainda esteve bastante aquém da que existe na realidade. As centrais sindicais da CUT e da CTB, assim como a UNE, precisam colocar o seu verdadeiro peso na construção dessa luta, ligando-a com as demandas mais sentidas pela classe trabalhadora, pela juventude e pelos setores oprimidos”.

Não deve haver confusão nesta questão. Se existe um projeto de lei para reduzir os efeitos desastrosos do sistema penal, esse projeto deve ser apoiado, mesmo que seja obra de espertos parlamentares. Tudo que reduz penas, crimes e o desastre do sistema repressivo é positivo.

Por outro lado, o MRT parte do pressuposto de que foi legítimo o processo da “trama golpista” e o carnaval fascista que Alexandre de Moraes e o Supremo Tribunal Federal aprontaram contra os direitos processuais e democráticos de toda a população, não só dos bolsonaristas. 

Ora, os crimes políticos de tentativa de golpe de estado e abolição do estado são todos oriundos da lei de segurança nacional, a lei da ditadura militar. Breve comparativo entre a lei atual e a Lei de Segurança Nacional deixa essa questão evidente:

Atual (Lei 14.197/2021)
Art. 359-I. Negociar com governo ou grupo estrangeiro, ou seus agentes, com o fim de provocar atos típicos de guerra contra o País ou invadi-lo:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos.
LSN (Lei 7.170/1983)
Art. 8º – Entrar em entendimento ou negociação com governo ou grupo estrangeiro, ou seus agentes, para provocar guerra ou atos de hostilidade contra o Brasil.
Pena: reclusão, de 3 a 15 anos.

Atual (Lei 14.197/2021)
Art. 359-J. Praticar violência ou grave ameaça com a finalidade de desmembrar parte do território nacional para constituir país independente:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, além da pena correspondente à violência.
LSN (Lei 7.170/1983)
Art. 11 – Tentar desmembrar parte do território nacional para constituir país independente.Pena: reclusão, de 4 a 12 anos.

Atual (Lei 14.197/2021)
Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.
LSN (Lei 7.170/1983)
Art. 17 – Tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito.
Pena: reclusão, de 3 a 15 anos.

Atual (Lei 14.197/2021)
Art. 359-N. Impedir ou perturbar a eleição ou a aferição de seu resultado, mediante violação indevida de mecanismos de segurança do sistema eletrônico de votação estabelecido pela Justiça Eleitoral:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.
LSN (Lei 7.170/1983)
Art. 18 – Tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados.
Pena: reclusão, de 2 a 6 anos.

Atual (Lei 14.197/2021)
Art. 286 – Incitar, publicamente, a prática de crime:
Pena – detenção, de três a seis meses, ou multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem incita, publicamente, animosidade entre as Forças Armadas, ou delas contra os poderes constitucionais, as instituições civis ou a sociedade. 
LSN (Lei 7.170/1983)
Art. 23 – Incitar:
II – à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis;
Pena: reclusão, de 1 a 4 anos.

Ou seja, a defesa do MRT e outros é a defesa das leis da ditadura militar. 

Para aumentar a confusão, a esquerda carcerária também apresenta questões trabalhistas e reivindicações sociais. Ou seja, mistura propositalmente a luta por direitos trabalhistas e sociais do povo com o aumento da repressão penal, o que é uma manobra rasteira para tentar se separar da direita tradicional.

Por isso o MRT, ao final do texto, apresenta a luta pelo aumento da repressão junto com “a luta que se expressa hoje nas greves da Petrobras e nos Correios contra o avanço da privatização das empresas em favor de acionistas privados, em detrimento dos direitos das categorias” e com a luta contra a “reforma trabalhista e da previdência, legados malditos de Temer e Bolsonaro, preservados pelos acordos da Frente Ampla do governo Lula”. Uma bagunça política total.

Além de prender opositores políticos por leis da ditadura militar, segundo o MRT “é urgente unificar as greves da Petrobras e dos Correios e aliá-las aos amplos setores que rechaçam a anistia a Bolsonaro e os golpistas de hoje e de ontem. Somente essa força pode de fato enfrentar o Congresso reacionário e a extrema-direita aliada de Trump, não o governo Lula, que negocia com todos esses agentes, inclusive com imperialismo norte-americano, para salvar os lucros capitalistas no país”.

É uma malandragem política, para dizer o mínimo. Misturar greve dos trabalhadores com aumento da repressão estatal. E, por outro lado, para tentar se deslocar do PT, criticar o PT sorrateiramente, quando, na verdade, a posição do MRT no caso da prisão dos bolsonaristas é exatamente a mesma do PT.

Artigo Anterior

Xiomara castro denuncia golpe e chama povo às ruas

Próximo Artigo

Amapá: índios bloqueiam rodovia em protesto contra Marco Temporal

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter por e-mail para receber as últimas publicações diretamente na sua caixa de entrada.
Não enviaremos spam!