A entrada de capitais internacionais na Indústria Brasileira de Defesa
por Flávio Rocha de Oliveira, Abner Carvalho e Souza, André Cardoso Nogueira, Antonio Pedro Miranda, Márcio Rocha da Silva Filho, Paulo Del Bianco, Roberto Tadeu da Silva, Ronaldo Galdino e Tarcízio Rodrigo Melo
Introdução
Quando se pensa numa indústria voltada para o desenvolvimento e a produção de armas de guerra, o Brasil apresenta uma trajetória acidentada. Em alguns momentos, como entre as décadas de 1970 e 1980, o país desenvolve uma indústria bélica como parte de um esforço mais amplo de modernização econômica. O período coincidiu como o regime autoritário militar, que possuiu um projeto de modernização autoritária com amplos investimentos na indústria pesada. Com o desenvolvimento de empresas estatais e de uma rede de universidades e escolas técnicas, majoritariamente públicas, foram criados quadros humanos com capacidade de construir equipamentos industriais, maquinários diversos, bens de consumo e obras de infraestrutura que transformou o país economicamente.
Nesse processo, a indústria bélica brasileira sofreu um forte impulso. O país desenvolveu empresas voltadas para a produção de armamentos com variados graus de sofisticação tecnológica, como a ENGESA e a AVIBRÁS. Na década de 1980, o Brasil se tornou um dos dez maiores exportadores mundiais de equipamento militar, atendendo a demanda de países na Ásia e na África que buscavam fornecedores que não fossem europeus, estadunidenses e soviéticos como uma maneira de garantir uma margem de manobra política no cenário internacional. A existência da Guerra Fria, com toda a sua complexidade diplomática, e conflitos como a Guerra Irã-Iraque (1980-1988) terminaram fornecendo mercados lucrativos para a indústria bélica brasileira.
O término da Guerra Fria e o fim da Guerra Irã-Iraque terminaram eliminando a demanda pelo tipo de armas produzidos pelo Brasil, que se beneficiava de bons preços e de não possuir nenhum entrave político-diplomático na venda de equipamentos para clientes que sofriam, no período, sanções de Estados Unidos e aliados. Na década de 1990, os países desenvolvidos foram forçados a baixar os preços de seu armamento mais sofisticado, além de haver uma compreensível recusa de diversos governos em continuar comprando equipamentos militares com a diminuição dos conflitos internacionais. Isso criou um cenário no qual as empresas brasileiras não conseguiam competir.
Para piorar o caso, as elites políticas, econômicas e militares brasileiras não tomaram nenhuma medida no sentido de proteger as empresas de defesa do Brasil. De fato, o Brasil não era, sequer, o maior comprador de produtos de companhias como a ENGESA, que dependia da venda para o mercado internacional para manter a sua saúde financeira. Na década de 1990, várias dessas empresas fecharam as portas, e o Brasil perdeu a maior parte de suas capacidades de produção industrial no setor de armamentos militares. A título de exemplo, a própria ENGESA entrou em processo de falência e a Avibrás viu, na década de 1990, o início de seus problemas econômicos. Esse foi um processo de desmonte, que terminou afetando as expectativas internacionais do Brasil e que coincidiu com o avanço da financeirização da economia nacional durante um momento chave da globalização econômica.
No início do século XXI, especialmente durante os governos Lula I e Lula II, foram estabelecidos planos de desenvolvimento de uma base industrial de defesa de modo a dotar o Brasil de uma capacidade de produzir equipamento militar sofisticado, tanto para atender as suas forças armadas – e respaldar o novo tipo de inserção internacional que o país ambicionava – como para exportar para os mercados internacionais. A ideia era aproveitar a estrutura formadora de quadros humanos – novamente, as universidades públicas e escolas técnicas -, e utilizar uma articulação econômica feita a partir de instituições estatais, como o BNDES, e projetos industriais de amplo escopo, como a construção dos submarinos brasileiros, para relançar uma indústria de defesa nacional.
Todavia, o plano foi atropelado pela instabilidade política brasileira que atingiu em cheio o segundo governo de Dilma Rousseff, vítima de um impeachment. Turbinando essa crise política, houve a chamada Operação Lava-Jato, que atingiu em cheio a economia brasileira, vitimando empresas nacionais com acusações de corrupção. Entre essas empresas, estavam algumas que, estrategicamente, estavam envolvidas nos projetos industriais-militares brasileiros, como a Odebrecht Defesa. Foi aberta uma porta para a entrada de capitais estrangeiros em vários setores econômicos afetados e, de uma maneira especial, no setor de defesa.
No período mais recente da nossa história, mais especificamente a partir da década de 2010, a entrada desses capitais tornou-se pronunciada, mas refletindo a mudança no panorama econômico internacional. Além do investimento de empresas e fundos de investimento de países do Norte Global (EUA e Europa), ou oriundas de países aliados ao Norte Global, como Israel, há a entrada de capitais de países do Sul Global, como os Emirados Árabes Unidos. No sentido de iniciar uma discussão sobre os potenciais problemas envolvendo a entrada desses capitais (falta de controle nacional sobre a indústria brasileira de defesa, dependência de decisões econômicas feitas em outros países, atrelamento do Brasil a agendas econômicas e geopolíticas que podem contrariar seus interesses) e os potenciais ganhos (continuidade de projetos de longa duração, investimento no desenvolvimento de tecnologias de ponta, absorção de mão de obra tecnicamente qualificada, geração de empregos, sinergia industrial e acesso a mercados internacionais), serão apresentados alguns casos específicos envolvendo empresas brasileiras e grupos internacionais.
Trata-se de um estudo exploratório feito a partir de fontes públicas. Como tal, é um ponto de partida para a compreensão de um setor importante para o Brasil e para as relações internacionais: a construção de uma indústria de defesa nacional, sua relação com capitais estrangeiros e como isso pode afetar a soberania e os interesses de um país em desenvolvimento como o nosso.
Caso 1 – Odebrecht Defesa, MECTRON/SIATT e Grupo Edge
O desmonte progressivo do setor de defesa nacional criou vulnerabilidades para a soberania brasileira. Esse foi um processo que teve seu início após o final da Guerra Fria e foi muito forte durante a década de 1990. Mais recentemente, e especialmente no período 2014-2024, uma série de privatizações, falências e desestatizações assolaram empresas estratégicas para o setor de defesa brasileiro, aprofundando a desnacionalização do controle da base produtiva que compõe e supre as Forças Armadas Brasileiras (FAs).
As perdas nas áreas de ciência, tecnologia e inovação dentro do setor militar, assim como a desorganização dos quadros que compunham as principais empresas nacionais de defesa, é, em boa medida, uma consequência do período político dos anos 2010. A política de destruição de empresas levada a efeito pela Operação Lava Jato (2014-2021) afetou diretamente o parque industrial brasileiro. Uma das empresas mais afetadas foi a Construtora Norberto Odebrecht. Além dos negócios na área da engenharia civil, dentro e fora do Brasil, essa companhia possuía um braço no setor de defesa através da Odebrecht Defesa. Essa última possuía tecnologia e um conjunto de quadros humanos da maior importância no setor de defesa nacional. Tendo adquirido em 2011 a maioridade das ações da Mectron Engenharia, empresa nacional fundada em 1991 e voltada ao segmento de mísseis, sistemas de comunicação e equipamentos espaciais, a Odebrecht Defesa constituiu uma importante fonte estratégica de fabricação de mísseis para as FAs.
A importância da Mectron para o setor de defesa do Brasil abarcava o desenvolvimento do Torpedo Pesado Nacional em escala reduzida (TPNer), uma parceria de longo prazo com a Marinha brasileira. Dentro dos objetivos estratégicos da Marinha, a criação dos TPNer tinha como objetivo armar os novos submarinos criados pelo programa PROSUB, sendo que tanto o TPNer quanto o PROSUB faziam parte do planejamento mais amplo da Marinha de assegurar um predomínio tático sobre a chamada “Amazônia Azul”, uma área de 3,5 milhões de quilômetros quadrados na costa brasileira com riquezas naturais e minerais abundantes. O nome é uma comparação a importância da floresta amazônica para o Brasil.
Contudo, com os escândalos de corrupção da Odebrecht vindo à tona pela Operação Lava Jato, em conjunto com a escassez de crédito, a Mectron entrou em colapso, causando um racha na empresa que perde grande parte de seus funcionários.
No cenário de instabilidade econômica e política no qual o Brasil entrou, a opção adotada pela Odebrecht foi vender a Mectron. Contudo, as principais chefias da Mectron iniciaram um processo de criação de uma nova empresa no ramo da defesa, a SIATT (Sistemas Integrados de Alto Teor Tecnológico), a qual foi fundada em 2015. Ela contava com um quadro de mais de 90% de seus profissionais oriundos da Mectron, e que teria, especialmente após 2020, um papel importante enquanto receptáculo de investimentos estrangeiros no setor de defesa brasileiro.
Em 2016, a Odebrecht optou pela venda de 40% das ações da Mectron para a ELBIT Systems, maior empresa israelense privada do segmento de defesa, a SIATT foi vendida em 2023 por 350 milhões de dólares para o Grupo EDGE, um conglomerado de empresas estatais dos Emirados Árabes Unidos.
Para além da Mectron e SIATT, uma série de outras empresas nacionais do segmento de defesa foram vendidas, fragilizando o controle nacional sobre a produção de artefatos bélicos no Brasil.
Caso 2 – Condor Tecnologias Não-Letais
Outra companhia da base industrial de defesa que foi adquirida pelo conglomerado estatal emiradense, o Grupo EDGE, foi a empresa Condor Tecnologias Não-Letais. No final de abril de 2024, esse conglomerado comprou 51% da empresa brasileira. Segundo a Condor, a união com essa companhia seria uma “parceria ganha-ganha” que permitiria o crescimento acelerado da empresa e atenderia o interesse da empresa estatal emirati de expandir seu portfólio tecnológico. O Grupo Edge também expôs o interesse de expandir a sua presença em diferentes segmentos do setor de armas não-letais e entrar em novos mercados considerados importantes, como os Estados Unidos da América.
O próprio CEO do Grupo Edge, Hamad Al Marar, apontou que o crescente cenário internacional conflituoso abriria maior demanda para produtos não letais: “Atualmente, nosso mundo está passando por um período não apenas de maior agitação civil, crise de imigração e protestos de rua, mas também de grandes preocupações sobre os níveis de força usados em situações de combate em ambientes populosos, guerra assimétrica e controle de danos pós-guerra, em que as tecnologias não letais desempenham um papel relevante.”
A Condor Tecnologia Não-Letais é uma empresa brasileira fundada no ano de 1985 e fabricava granadas fumígenas para o Exército Brasileiro, e também exportava para países como o Iraque, Líbano, Chile e Uruguai, e ao longo dos anos foi expandindo sua produção e o seu leque de produtos não-letais. Em 2012 é certificada pelo governo federal como Empresa Estratégica de Defesa. Atualmente, apresenta presença em mais de 60 países, sendo reconhecida como uma das empresas líderes no mercado de equipamentos não-letais que incluem gás lacrimogêneo, munição de impacto controlado, munição explosiva e irritante química, granadas de mão explosivas e de fumaça, pirotecnia, kits de operação tática, sprays, drones com irritantes químicos, dispositivos elétricos incapacitantes e câmeras corporais com reconhecimento facial.
Cabe destacar que a Condor e o Grupo EDGE já haviam se aproximado assinando um acordo de cooperação um ano antes da compra da empresa. O objetivo do acordo era “combinar as capacidades das empresas e avaliar a viabilidade de identificação e implementação conjunta de oportunidades de negócios nos mercados dos Emirados Árabes Unidos e do Brasil”.
Após a compra, a Condor expandiu seus negócios internacionais. Ela fechou um contrato de fornecimento de equipamentos não letais no valor de US$ 10 milhões para um país africano não especificado e entrou em fase de planejamento da construção de instalações de produção de equipamentos não-letais e centros de capacitação nos Emirados Árabes, fazendo parte da iniciativa nacional emirati “Make it in the Emirates”. O objetivo dos Emirados é exportar para os mercados do Oriente Médio.
A expansão dos negócios após a compra da empresa não se resumiu apenas ao nível internacional: também houve a assinatura de um acordo de cooperação com a Marinha do Brasil para o desenvolvimento de tecnologias e técnicas não-letais para os Fuzileiros Navais.
Caso 3 – EMBRAER e Investidores Internacionais
A Embraer, líder mundial na fabricação de aeronaves regionais e um dos pilares da base industrial de defesa (BID) brasileira, tem atraído ao longo das décadas expressivas entradas de capital estrangeiro. Desde sua fundação em 1969, a empresa passou por diversas fases de captação de recursos, especialmente após a privatização em 1994, o que ampliou seu acesso a mercados globais e investidores estratégicos.
Um exemplo dessa atração de capitais externos foi a tentativa de fusão com a companhia estadunidense Boeing. As tratativas começaram em 2018, e tanto o governo Temer como o governo Bolsonaro não se opuseram a essa fusão. A Boeing investiria até 4,2 bilhões de dólares na Embraer, adquirindo 80% da sua divisão de aviação comercial. Porém, após anos de negociações e um processo de arbitragem, o acordo foi finalmente rompido em 2020. A Boeing pagou 150 milhões de dólares à Embraer para encerrar o processo de arbitragem e garantir a continuidade das operações da brasileira no mercado global. O impacto desse acordo não se limitou à questão financeira, mas também à redefinição das estratégias da Embraer frente a desafios de competitividade global no setor de aviação e defesa.
O setor de Defesa e Segurança da Embraer desempenha um papel significativo nos negócios da companhia. Segundo o relatório de 2023, o segmento representava aproximadamente 13,3% da carteira de pedidos futuros da empresa, totalizando um valor de 2,5 bilhões de dólares.
Em 2023, a Embraer Defesa & Segurança ampliou suas parcerias estratégicas globais para fortalecer sua presença em mercados-chave:
- Suécia (SAAB): Memorando de Entendimento para promover o C-390 Millennium na Suécia e os caças Gripen no Brasil e América Latina.
- Portugal: Acordo com quatro empresas da Base Tecnológica e Industrial da Defesa para desenvolver e industrializar a versão NATO do A-29 Super Tucano (A-29N).
- Holanda (NIDV): Parceria com a Associação das Indústrias de Defesa e Segurança da Holanda para explorar oportunidades focadas nos aviões C-390 Millennium e no A-29N.
- Índia: Início da seleção de parceiros locais para o Programa MTA, destacando o C-390 Millennium e alinhando-se às iniciativas “Make in India” e “Índia Autossuficiente”.
- Arábia Saudita (SAMI): Memorando visando colaboração em projetos de defesa, incluindo a criação de um Centro Regional de MRO (serviços de manutenção) e linha de montagem do C-390 Millennium, condicionados a contratos de aquisição.
- República Tcheca (Aero Vodochody): Parceria para intensificar a cooperação em torno do C-390 Millennium.
Em 2024, essas iniciativas renderam importantes frutos para a Embraer. Destacam-se o acordo para uma possível aquisição de cargueiros pela Força Aérea Sueca e as promissoras oportunidades de atender demandas da Força Aérea Indiana e da Arábia Saudita. No entanto, o principal foco da companhia permanece no mercado norte-americano, embora não haja uma perspectiva concreta de encomendas no curto prazo.
A Embraer possui importantes empresas subsidiárias que atuam no setor de defesa. São elas:
- Atech: Desenvolve soluções em comando, controle e inteligência, além de oferecer suporte técnico, logístico e de engenharia especializado em todas as etapas de projetos de sistemas. Atua como uma organização estratégica de defesa e como integradora brasileira em projetos e sistemas estratégicos.
- OGMA: Reconhecida mundialmente por serviços de manutenção (MRO) e fabricação de estruturas complexas para aeronaves, atendendo tanto a aviação civil quanto o setor de defesa. Também fornece soluções integradas para fabricantes globais e fornecedores de primeira linha no mercado de aeroestruturas.
- Savis: Especializada no desenvolvimento, integração e implementação de sistemas para controle de fronteiras e proteção de infraestruturas estratégicas.
- Visiona: Parceria com a Telebras focada na integração do Sistema de Satélite Geossíncrono de Defesa e Comunicações Estratégicas do governo brasileiro. Dedica-se a desenvolver tecnologias aeroespaciais críticas e fortalecer a cadeia industrial nacional.
A fundo de investimentos BlackRock, maior gestora de ativos do mundo, tem sido uma presença constante na Embraer. Em 2024, a BlackRock aumentou sua participação acionária, refletindo a confiança na saúde financeira da empresa após o fracasso da fusão com a Boeing. A compra de ações pela gestora impulsionou o valor das ações da Embraer, que subiram cerca de 120% no ano, evidenciando a importância dessa parceria estratégica para o futuro da companhia. A entrada da BlackRock, além de fornecer um respaldo financeiro, também tem implicações para a governança da Embraer, pois a gestora é conhecida por influenciar decisões corporativas em empresas nas quais detém participação significativa.
Em contrapartida, a consultoria de investimentos americana Brandes Investment Partners adotou uma postura oposta, vendendo 5% das ações em setembro deste ano. A Brandes possui um histórico estratégico de compra de ações negociadas abaixo de seu valor intrínseco. Parte das ações foram adquiridas durante um período de baixa da Embraer, em julho de 2019, em meio ao período de negociações com a Boeing. Embora tenha diminuído sua exposição, a consultoria ainda segue como a maior acionista individual da Embraer, detendo 10% das ações, o que corresponde a cerca de 361 milhões de dólares.
Outro ator importante na trajetória recente da Embraer é o BNDES, que, junto ao Citibank, tem contribuído com financiamentos relevantes para a empresa em um projeto específico. Recentemente, em dezembro de 2024, a Embraer recebeu um financiamento de R$200 milhões do BNDES, com o objetivo de expandir seus investimentos no desenvolvimento do eVTOL, sigla em inglês para ‘veículo elétrico de pouso de decolagem vertical’. Esse financiamento é uma continuação dos apoios que a empresa recebeu desde o início de sua trajetória, quando o BNDES foi um dos maiores investidores em sua expansão internacional, constituindo, apenas nesse projeto citado, mais de R$1 bilhão para desenvolvimento tecnológico do eVTOL. O Citibank, por sua vez, também anunciou um financiamento de US$50 milhões (cerca de R$303 mil) dedicado a apoiar o programa de desenvolvimento do “carro voador”.
A entrada de capital estrangeiro e a articulação entre diferentes investidores, como bancos internacionais e grandes gestoras de ativos, na Embraer, revela uma tendência preocupante de maior dependência de investidores internacionais em setores estratégicos. Embora tais investimentos tragam recursos necessários para a inovação e a modernização da empresa, eles também levantam questões sobre a perda de controle sobre uma indústria de defesa e alta tecnologia considerada essencial para a soberania nacional. A forte presença de entidades como a BlackRock e o Citibank reflete um movimento que pode diluir a autonomia da Embraer e priorizar interesses financeiros em detrimento das necessidades de desenvolvimento interno e da preservação da expertise tecnológica nacional.
Além disso, a busca pela competitividade global, ao mesmo tempo em que posiciona a Embraer como um player relevante em novos mercados, como os de veículos aéreos urbanos, também deixa a empresa vulnerável à volatilidade do mercado financeiro internacional e à influência de agendas externas que nem sempre alinham-se com os interesses nacionais brasileiros. Tal fato evidencia uma relação tensa entre a busca por inovação tecnológica e acesso ao mercado internacional e os riscos de uma crescente desnacionalização de setores que são fundamentais para a segurança e desenvolvimento do Brasil no cenário global.
HELIBRAS e Airbus
A Helibras foi fundada em 1978 como uma empresa estatal, controlada pelo Governo do Estado de Minas Gerais, tendo desde sua origem participação da iniciativa privada, por meio da Aerofoto Cruzeiro, e também de capital estrangeiro, com a Aerospatiale, da França, sendo uma das controladoras. O carro-chefe da empresa sempre foi a aeronave de asas rotativas Esquilo, nas suas diversas versões e que ainda hoje é fabricado, sendo o helicóptero a turbina mais vendido no mundo, e com 48% a 54% de conteúdo nacional em sua produção, segundo o site da própria empresa. A Helibrás possuía vários contratos de entrega de helicópteros para as Forças Armadas brasileiras, bem como atuava no setor de manutenção de aeronaves de asa rotativa de emprego civil e militar.
Em 20 de janeiro de 2023, a Airbus Helicopters comprou a participação do governo mineiro na Helibras pelo valor de 95 milhões de reais, adquirindo os 15,1% do capital social que pertencia à Codemge – Companhia de Desenvolvimento de Minas Gerais, obtendo, dessa maneira, o controle total da empresa.
A importância da Helibras é significativa, pois além dos dados já elencados, a respeito da aeronave Esquilo, possuía à época da venda um faturamento anual de 1 bilhão de reais, com geração de cinco mil empregos diretos. Além do uso de componentes nacionais na fabricação das aeronaves, ela se destaca por ser a única fabricante de aeronaves de asas rotativas da América Latina.
As motivações para dispor do controle de uma empresa deste porte podem ser explicadas por diversos fatores. Um deles é ideológico. Houve uma sanha privatizante em certos grupos políticos que, a despeito de faturamento, lucro e importância estratégica de diferentes companhias cujo acionista majoritário eram a União ou governos estaduais e municipais, optaram por uma lógica puramente liberal para abrir mão de empresas estatais brasileiras. Outro fator que terminou pesando, e que está aliado ao viés ideológico liberal, foi a preocupação (e justificativa) do governo mineiro em não poder investir os valores necessários para capacitar tecnologicamente a empresa. Também houve uma outra justificativa por parte do governo de Minas Gerais: falta de capacidade para administrar, com a agilidade necessária, uma empresa cuja natureza exige inovação constante e atualização do produto, e havia desconfiança na possibilidade de manter o alto nível de excelência da Helibrás e elevá-la a outros patamares. Essas justificativas e dúvidas foram apresentadas pelo governo mineiro para justificar a venda para a Airbus.
Dado o valor de venda, o potencial comercial inerente da Helibrás, seu histórico produtivo e de inovação, sua importância estratégica e a natureza do setor industrial de defesa, os argumentos para a perda do controle da empresa foram pífios. Resta apenas a certeza de que, para o Brasil como um todo, e para o estado de Minas Gerais em particular, foi um péssimo negócio.
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AKAER – Captação de capitais estrangeiros e internacionalização
O Grupo Akaer foi fundado em 1992 e é especializado no fornecimento de soluções tecnológicas nos seguintes setores: aeroespacial, defesa, energia e automotivo. É formado pela Akaer Engenharia S.A., Opto Space & Defense e Equatorial Sistemas. Desenvolve produtos de alta tecnologia para os mercados aeroespacial e de defesa, possuindo um alto padrão de qualidade e excelência em sua atuação. Além do Brasil, possui clientes no Canadá, EUA, México, Chile, Bélgica, França, Espanha, Portugal, Itália, Alemanha, Suécia, Turquia, Arábia Saudita, África do Sul, Catar, Singapura, Índia, Japão, China e Emirados Árabes Unidos. As empresas clientes são Air Canada, Boeing, Honeywell, UTC Aerospace Systems, Pratt & Whitney, Safran, Latecoere, Aeronova, Enaer, Embraer, Saab, Airbus Helicopters, Alestis, OGMA, Rafael, Adasi, Voith, Turkish Airlines, ST Aerospace, Kawasaki, Mitsubishi e outras.
Segundo o portal INVESTSP, em maio 2012 a SAAB “fez um aporte de recursos na Akaer, equivalente a participação de 15%, mas que não incluía a conversão em ações”. Essa operação foi considerada um empréstimo conversível em ações e previa que o limite de participação da SAAB na empresa atingisse 40%. Em 2017 a SAAB adquiriu 10% das ações da Akaer, chegando a 25% de participação, porém o valor da negociação não foi revelado. O portal Poder Aéreo , em outubro de 2023, informou que a controladora da Akaer, a Connectus Gestão e Participações Ltda., anunciou “a recompra das ações da Saab (de 42,21%) na Akaer Participações (Holding). Essa transação foi aprovada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica do Brasil (CADE) sem restrições.” No mesmo ano a Akaer divulgou a assinatura de um Memorando de Entendimento (MOU) com o Edge Group dos Emirados Árabes Unidos, com o objetivo de “desenvolver e produzir sistemas e equipamentos de altíssima tecnologia no setor aeroespacial e de defesa.
Em 2024, a Akaer foi citada como parte do plano do governo para “salvar a Avibrás” através da fusão entre essas empresas e o apoio do BNDES. Essa fusão criaria “a maior empresa de defesa do Brasil e teria o potencial de faturar US$ 1 bilhão até 2024 e empregar mais de 6 mil pessoas.” No entanto, até o presente momento (janeiro de 2025), esse plano não surtiu efeito.
Atualmente a empresa está em processo de internacionalização, estabelecendo presença em países do Oriente Médio e negociações na Ásia e África. Nesse sentido, a Akaer participa do Programa HÜRJET, da Turkish Aeroespace Industry, sendo a responsável pelo desenvolvimento da estrutura e sistemas da fuselagem traseira do primeiro protótipo da nova aeronave de treinamento avançado e ataque leve para dois ocupantes. A Akaer também foi selecionada pela empresa portuguesa EEA Aircraft and Maintenance S.A. para produzir as estruturas da aeronave LUS-222. A fabricação da fuselagem, asa completa, estabilizadores horizontais e verticais e mais todas as superfícies de controle será feita no Brasil.
AVIBRAS – Interesse internacional e Incertezas
Fundada em 1961 por um grupo de engenheiros do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e com sede Jacareí- SP, a Avibras constituiu-se, na década de 1980, como uma das principais empresas exportadoras de sistemas de armas para o para o Iraque durante a guerra que esse país travou com Irã, entre 1980 e 1988.
Segundo escreveu o pesquisador Renato Dagnino em seu livro A Indústria de Defesa No Governo Lula (2003-2010), a empresa exportou aproximadamente 300 milhões de dólares em 1987, sendo esta quantia referente ao principal sistema de armas produzido pela Avibras, o lançador múltiplo de foguetes Astros, bem como munições. Entretanto, a partir de 1988, com o término das importações de armamentos pelo Iraque, a indústria de defesa brasileira passou por uma crise da qual nunca se recuperou.
Apesar da demanda interna suprida pela produção de itens de baixa intensidade tecnológica, havia uma genuína dificuldade da indústria de defesa nacional em substituir as importações de armamentos de alto valor agregado, fornecidos pelos países desenvolvidos. A dificuldade de expansão da indústria de defesa na primeira década dos anos 2000 continha, deste modo, um elemento interno e um elemento externo. O elemento interno era a insuficiência de capacitação tecnológica para o desenvolvimento e produção de artefatos bélicos que suprissem as necessidades das Forças Armadas por armas mais sofisticadas. Já o elemento externo consistia na pressão estadunidense em limitar as exportações de armamentos brasileiros, conforme relato de Renato Dagnino em seu livro.
Esta crise macroeconômica que assolou a indústria de defesa brasileira respingou no universo microeconômico da Avibras. No período mais recente, ou seja, desde 2022, a Avibras está em recuperação judicial, com uma dívida que soma mais de 600 milhões de reais. Só em dívida trabalhista extraconcursal, adquirida durante a fase de recuperação judicial, o acúmulo é de 327 milhões de reais. Segundo o G1 (2024),
[…] a recuperação judicial serve para evitar que uma empresa em dificuldade financeira feche as portas. É um processo pelo qual a companhia endividada consegue um prazo para continuar operando enquanto negocia com seus credores, sob mediação da Justiça (G1 Vale do Paraíba e Região, 2024).Sendo assim, começaram as tratativas para a venda da Avibras, que atualmente é controlada e presidida por João Brasil Carvalho Leite, filho de um dos fundadores, e detentor de 98% do capital da empresa.
Em abril de 2024, um grupo australiano, denominado DefendTex, mostrou interesse na compra, tendo a intenção de obter a maior parte do controle acionário da empresa. O grupo australiano chegou mais próximo de fechar um acordo com a Avibras, em comparação com as tratativas envolvendo uma empresa do Catar, a Barzan Holdings. O acordo com a empresa do país árabe simplesmente não avançou e a principal fator que pesou contra foram acusações de um suposto financiamento de grupos terroristas pelo Catar.
Entretanto, por ser uma das maiores empresas do setor de defesa, isso já desde a década de 1980, o governo Lula também demonstrou interesse nas tratativas e pressionou para que a venda fosse feita para um grupo brasileiro. Ademais, foi exigido que a empresa prestasse esclarecimentos sobre as negociações envolvendo a DefendTex. Isto foi feito acionando a Justiça por meio do BNDES, credor de grande parte das dívidas da Avibrás.
Um outro grupo estrangeiro, a chinesa Norinco, chegou a enviar uma carta ao Ministério da Defesa brasileiro manifestando estar interessado na compra da Avibrás, segundo o jornalista Lauro Jardim. Todavia, as as negociações não avançaram. A CNN Brasil informou que a própria presidência da república tratou de evitar a venda, buscando um comprador nacional para a empresa. Ainda que a matéria da CNN não tenha dado maiores detalhes, pode-se especular que a venda de uma empresa como a Avibrás para um conglomerado chinês não seria vista com bons olhos pelo governo dos EUA, o que pode explicar a razão do governo Lula em evitar o negócio e, assim, se livrar de um conflito diplomático com a maior potência do planeta.
Este choque de forças políticas e econômicas, nacionais e internacionais, resultou na Avibras firmando, nos meses finais de 2024, um acordo de compra e venda com um investidor brasileiro ainda não identificado. Um acordo vinculante de compra e venda chegou a ser assinado em 28 de outubro, estabelecendo um prazo de 45 dias para que as negociações pudessem ser finalizadas. Todavia, em dezembro desse mesmo ano os Sindicatos de Metalúrgicos de Lorena e de São José dos Campos e Região comunicaram, em nota à imprensa, que o investidor havia desistido do investimento na Avibrás e havia se retirado da negociação com os representantes dos trabalhadores.
Com todo o imbróglio envolvendo a companhia, aumentam as chances de que ela encerre definitivamente as suas atividades. Do ponto de vista tecnológico, outros grupos que entraram no mercado brasileiro e que tem recebido injeção de capital externo já dispõem de condições de executar todas as tarefas de pesquisa, teste de armamentos (mísseis e foguetes, principalmente) e comercialização que eram uma característica quase que exclusiva da Avibrás. É o que acontece, por exemplo, com a SIATT. E há uma outra agravante que é até pior: devido ao passivo trabalhista e as dívidas que a Avibrás contraiu, ela perdeu a maior parte do seu quadro de engenheiros e de técnicos especializados para outras empresas nacionais e estrangeiras. Em todo o caso, ainda teremos que esperar o ano de 2025 para uma resolução definitiva dos problemas da empresa.
Considerações finais
Os casos apresentados neste texto indicam que há um avanço de capitais estrangeiros sobre a base industrial de defesa do Brasil. Após uma década em que o país tinha na exportação de produtos industrializados, e dentro deles estavam os equipamentos militares, como uma marca do seu desenvolvimento, seguem-se décadas na qual há uma reprimarização da atividade econômica nacional. O setor de defesa também sofre os efeitos de uma desindustrialização da economia brasileira, o que abriu espaço para que investidores internacionais de países tão diferentes como EUA, Suécia ou os Emirados Árabes Unidos pudessem injetar recursos financeiros de monta para controlar (ou simplesmente lucrar) com empresas brasileiras que necessitavam de dinheiro para se manterem funcionais.
Uma linha de investigação que poderia ser seguida em estudos futuros mais aprofundados, seria sobre os aportes de capital de outras indústrias de defesa, bem como de fundos de investimentos, tanto de países do Norte Global como do Sul Global em outras empresas brasileiras que se dedicam, direta ou indiretamente, ao ramo dos produtos de defesa. Por exemplo, há indústrias navais europeias que vendem navios de guerra para a marinha brasileira investindo em estaleiros localizados no Brasil? Há fundos financeiros norte-americanos ou de países asiáticos investindo em setores que se prestam ao desenvolvimento de tecnologias de aplicação militar, como indústrias que fornecem componentes para a área aeroespacial ou empresas que desenvolvem softwares de monitoramento, geoprocessamento e soluções de vigilância/espionagem?
Os investimentos internacionais geram oportunidades de avanço de projetos tecnologicamente avançados no setor de defesa, mas, ao mesmo tempo, apresentam um desafio enorme para os interesses nacionais e para a soberania brasileira. Até que ponto o país pode depender de empresas estratégicas cujo controle de capitais está fora do Brasil? Mesmo quando acionistas externos, como um fundo de investimento, não detém o controle de uma companhia do setor de defesa, ainda resta o fato de que podem influenciar as decisões dessa mesma companhia caso ela atenda algum interesse do governo brasileiro que colida com os interesses do país onde está localizado esse mesmo fundo investidor.
Falta uma política de estado mais clara para o setor industrial de defesa. Algo que possa permitir a entrada de capitais externos, mas que mantenha o controle dessa atividade, dado o seu potencial de desenvolvimento tecnológico e sua importância para a segurança nacional, em mãos brasileiras. A atual fase das relações internacionais deve ver um recrudescimento da competição entre EUA, China e Rússia, com a possibilidade do envolvimento de países como o Brasil no “fogo cruzado” diplomático, econômico e militar entre essas grandes potências, e um cuidado sobre o controle da produção nacional no setor de defesa deveria ser parte de um esforço estratégico mais amplo.
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