A sucessão de acontecimentos dos últimos dias mostrou, de forma explícita, que o Brasil vive em estado de eleição permanente. A crise do tarifaço, o julgamento de Bolsonaro, os áudios grotescos que reafirmaram o que já se sabia, a verborragia calculada de Malafaia tentando transformar derrota em perseguição, a entrada de Trump com chantagem aberta para intervir na cena política brasileira, o centrão movimentando peças e Lula assumindo a ofensiva — tudo isso compôs um quadro que não deixa dúvida: as eleições de 2026 já começaram.

Não se trata mais de horizonte, mas de presente. O país vive em campanha, e cada gesto, cada crise, cada decisão é imediatamente interpretada como cálculo eleitoral. O presente se dissolveu na disputa futura. É esse o clima do “governo a quente”: não há tempo morto, não há estabilidade, não há espaço para governar fora da lógica da eleição.
Esse quadro cria um impasse para a esquerda. Ou entramos na disputa como sujeitos, ou ficamos reduzidos ao papel de espectadores. E ser espectador, nesse caso, significa observar a cena ser organizada por dois polos: de um lado, o petismo, com a força da máquina governamental; de outro, a direita, que, embora ainda carregue a sombra de Bolsonaro, já ensaia sua reorganização em torno de novos nomes e estratégias. O espaço para uma esquerda crítica, mobilizadora e popular só existirá se for conquistado agora, dentro da própria lógica antecipada da eleição.

Lula aparece nesse contexto em posição ambígua. Por um lado, a antecipação o favorece: obriga-o a jogar no terreno em que melhor sabe atuar, a política. Lula governa disputando, disputa governando. Sua história é a de sobreviver em cenários de crise, transformando adversidade em oportunidade. A ofensiva política permanente lhe dá oxigênio. Mas, por outro lado, a antecipação também cobra um preço: obriga o governo a se manter em estado de mobilização contínua, o que desgasta e impede a construção de estabilidade. O governo vira campanha, e campanha permanente não governa; apenas reage, move-se no calor da disputa, mas sem tempo para estruturar horizontes de longo prazo.

No campo da direita, o efeito é inverso: a antecipação acelera o descarte de Bolsonaro, mas oferece tempo para a reorganização. O ex-presidente insiste em se manter na urna, ainda que moribundo. Quer ser candidato a qualquer preço, mas já não organiza o campo. Sua presença é ruído, não é futuro. O bolsonarismo sobrevive como linguagem, como estética, como ressentimento difuso. Mas a direita, pragmática, já entendeu que precisa de outro rosto. É aí que Tarcísio aparece, embalado pela elite econômica e pelo centrão, como alternativa capaz de herdar o código bolsonarista sem carregar o corpo pesado de Bolsonaro. A antecipação, nesse sentido, dá tempo para que o conservadorismo se reprograme, troque de cavalo e apresente uma candidatura mais viável.

Trump, nesse enredo, não fez apenas um gesto de solidariedade pessoal. Sua intervenção foi de outro nível: uma tentativa aberta de influenciar a eleição brasileira. O trumpismo funciona como rede global da extrema-direita, e manter o Brasil dentro dessa órbita é estratégico. A chantagem explícita, condicionando acordos, mostrou que nossa eleição está internacionalizada. O futuro político do Brasil não se decide apenas em Brasília ou São Paulo, mas também no tabuleiro global da extrema-direita. A direita compreendeu isso e se move como bloco internacional; a esquerda, em contrapartida, ainda se comporta como se disputasse apenas em escala doméstica.

O centrão, como sempre, age de acordo com sua lógica própria. Valdemar, Kassab, Ciro Nogueira e companhia não precisam formular projeto. Sua força está em esperar, negociar, aderir no momento certo. O que parece indecisão é método. O centrão organiza adesões, não visões. Sua gravidade atrai tudo que não tem órbita própria. É força sem horizonte, mas com poder real. E é nessa dinâmica que a disputa se estreita cada vez mais.

O cenário, portanto, coloca um impasse claro para a esquerda: ou assume o terreno eleitoral como campo imediato de intervenção, ou fica relegada à margem, reduzida à condição de plateia. O problema é que, até agora, a política brasileira foi devorada pela eleição de tal forma que não sobra espaço para nenhuma ação fora dela. Movimentos sociais retraídos, ausência de mobilização de massas, e mesmo a experiência do plebiscito pelo fim da escala 6×1 e pela isenção do imposto de renda para quem ganha até 5 mil reais, que poderia ter sido fagulha de mobilização popular, não alcançou a força necessária. Esse vazio mostra a dificuldade de deslocar a política para fora da gramática eleitoral.

Mas é justamente por isso que a esquerda precisa intervir dentro da eleição. Não como comentarista, mas como sujeito que leva para o pleito as pautas dos trabalhadores, das mulheres, dos jovens, dos movimentos sociais. É preciso nuclear a ação em torno de temas concretos, que falem com a vida popular: a justiça fiscal, com a isenção de imposto de renda para quem ganha até 5 mil reais; a dignidade no trabalho, com o fim da escala 6×1; a defesa da democracia como prática de direitos, e não apenas como ritual eleitoral. Essas bandeiras precisam estar dentro da campanha, não fora dela.

E mais: essa intervenção precisa ser também um tensionamento dentro do campo progressista. Não basta disputar contra a direita. É necessário disputar no interior do discurso de Lula, para que o programa da esquerda crítica se conecte com a liderança que hoje encarna a força popular. Não se trata de oposição, mas de identidade. É disputar para estar junto, para construir mais identidade com Lula, para projetar também as lideranças populares que podem avançar em 2026. É, portanto, intervenção programática, capaz de fortalecer o governo e, ao mesmo tempo, abrir espaço para a esquerda se afirmar como sujeito.

Esse caminho, no entanto, é arriscado. Porque se a esquerda não intervier, a antecipação será apenas armadilha: dará tempo à direita para se reorganizar, permitirá ao centrão costurar novas adesões e transformará o governo em alvo permanente, obrigado a disputar todos os dias sem tempo de governar. Um governo em estado de campanha constante corre o risco de se esgotar antes da hora. A antecipação cria oportunidade, mas também ameaça.

Estamos, portanto, diante de uma encruzilhada. Deixar de disputar significa aceitar o papel de espectador, reduzido a comentários e notas de rodapé. Disputar significa entrar no terreno da eleição, mobilizar pautas concretas, tensionar por dentro, construir identidade com Lula e projetar novas lideranças. O cenário é duro, mas não deixa alternativa. A eleição não é futuro, é presente. E o presente é totalizado por ela.

Márcio Cabral é psicanalista, professor e membro do Instituto E Se Fosse Você?

 

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Last Update: 26/08/2025