A doença holandesa num mundo financeirizado

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Entre os anos 1960 e 1970, a Holanda descobriu grandes reservas de gás natural e o começou a distribuir por toda a Europa. Isso trouxe uma nova fonte de riqueza para o país, fortaleceu sua moeda e a indústria local entrou em declínio. Sobre isso, sugiro ler “Booming Sector and De-Industrialization in a Small Open Economy[1] de W. Max Corden e J. Peter Neary.

Muitos autores têm, nos últimos quarenta anos, usado o termo para significar as pequenas economias em que há uma nova fonte explosivas de renda, como está ocorrendo no Suriname com a exploração do petróleo. Lá, a renda per capta vem dobrando ano a ano sem que haja um esforço significativo da população, mais ou menos como na canção Pennies From Heaven (1936) cantada por Frank Sinatra em que “If it’s raining pennies from heaven | Make sure your umbrella is upside down”[2]. É mais ou menos como se  população tivesse inteira ganho na loteria. Muito provavelmente, os canaviais à beira do Rio Demerara, que dá nome a um dado refino de açúcar, venham a desaparecer porque outras atividades passem a ser menos arriscadas e infinitamente mais rentáveis. Talvez, o setor de serviços financeiros seja o caminho mais rápido para tornar rentável tamanho influxo de capital. Economistas contemporâneos como José Gabriel Palma, Thomas Piketty e a dupla Ricardo Hausmann e Federico Sturzenegger, todos dedicados ao estudo da economia do século XXI.

Eliminando o economês, trata-se de que qualquer investimento tem um prazo de maturação e, quando a entrada de capital é oriunda de um fator externo, como a descoberta de petróleo, o país praticamente se afoga em tanto dinheiro. Mesmo que haja tudo por fazer, como é o caso do Suriname, pode acontecer que nada seja feito e todo esse capital permaneça nas mãos de muito poucos, girando na ciranda financeira. Claro que “nada seja feito” chega a ser maldoso, visto que há uma estrutura de poder a ser mantida e ela, de uma forma ou de outra, depende do populismo. Quem sabe, as estradas que ligam Paramaribo a Boa Vista tornem-se verdadeiras AutoBAn tropicais? Pode ser que inaugurem-se hotéis com paredes revestidas de ouro, como há em Dubai e, ao mesmo tempo, investimentos destinados à solidez da economia, como educação, saúde e moradia nem sejam iniciados, pelo menos, não com a intensidade que a melhora das condições de vida da população exige.

Mesmo que os investimentos em infraestrutura e recursos humanos sejam prioritários, não há como evitar a acumulação de capital não produtivo, ou seja, abrindo a porta para a financeirização. Daí para frente é ladeira abaixo no que tange à diversificação da economia, mesmo que não se tenha chegado ao topo. Se houver corrupção, pode ser que nem se comece a subir a ladeira e, quando se menos perceber, o ciclo da commodity já se terá concluído e tudo não passará de mais uma oportunidade perdida.

Nesse aspecto, os países árabes estão bem assessorados e destinam vultosas somas em investimentos em outros países porque sabem que, por mais que invistam internamente, por maior que seja o esforço em transformar o deserto em um jardim verdejante, os recursos não serão consumidos na razão de sua acumulação. Se esses recursos  não forem investidos rapidamente, eles começarão a girar em torno do próprio eixo, realimentando-se artificialmente, o que caracteriza a financeirização.

Até agora, citaram-se somente economias muito pequenas, em que o peso de uma só atividade pode ser realmente significativo. Imagina-se que, em países com uma economia diversificada estejam imunes à doença holandesa. Não é verdade, pelo menos num país em que o agro é pop. Nesses países, deve-se somar uma outra variável, a fragilidade da moeda. Nesses países, ter acesso à moeda forte perpetua uma posição privilegiada frente ao restante da sociedade, tornando o exportador em uma casta. Para esta casta, as portas do mercado financeiro estão sempre abertas. Não é à toa que mesmo os ativos reais estejam paulatinamente saindo das mãos de pessoas físicas e indo para fundos de investimento como o fiagro, regulamentado no governo anterior, numa clara comprovação de que, mesmo em países grandes e diversificados como o Brasil, o vírus da doença holandesa pode prosperar.


[1] “Predominância setorial e a Desindustrialização em uma pequena Economia Aberta “.

[2] “Se chover moedas e você não as quiser perder, assegure-se de que seu guarda-chuva está de ponta-cabeça”.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou o mestrado na PUC, pós graduou-se em Economia Internacional na International Afairs da Columbia University e é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Depois de aposentado como professor universitário, atua como coordenador do NAPP Economia da Fundação Perseu Abramo, como colaborador em diversas publicações, além de manter-se como consultor em agronegócios. Foi reconhecido como ativista pelos direitos da pessoa com deficiência ao participar do GT de Direitos Humanos no governo de transição.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 18/03/2025