A pergunta cristã
por Guilherme Scalzilli
“A esquerda precisa dialogar com os cristãos”. Essa frase, muito repetida, permite várias leituras. No sentido literal, gregário e educativo, é irrefutável. Mas não vai além da constatação meio acaciana de uma necessidade inerente à rotina política.
Em termos pragmáticos, ligados à formulação de agendas comuns, a ideia é eficaz apenas se envolver representantes de igrejas, governos e partidos. Seria impossível chegar a consensos amplos com as numerosas, variadas e dispersas bases de fiéis.
Mas a proposta dialógica leva a raciocínio unilateral: não cobra dos líderes cristãos que tomem a iniciativa ou se exponham a princípios diferentes dos seus. No fundo, a ideia exige concessões do campo progressista. Que não pode e não deve fazê-las.
Primeiro, porque o resultado seria um programa conservador. Apesar de heterogêneo, o pluriverso cristão tem viés ideológico predominante, com vastos setores inflexíveis. E o meio-termo entre a esquerda possível e a extrema direita fica longe do centro.
Segundo, porque as cúpulas cristãs são alinhadas a interesses políticos que se definem pelo antagonismo com o campo progressista. Uma incompatibilidade, quase sempre ostensiva, que serve como ferramenta de persuasão dogmática e partidária.
Lula tentou seduzir os fiéis com discursos conservadores e anuência a certos regressos legislativos. As bancadas radicais, inclusive as religiosas, usaram suas pautas pré-históricas para exorbitar o custo civilizatório da aproximação. Ou seja, para sabotá-la.
Esse desejo de polarização amiúde resulta num confronto aberto com os setores laicos. Então a performance indecorosa serve como atentado simbólico ao imaginário secular e, nos casos mais agressivos, como propaganda insurrecional de bandeiras teocráticas.
Minando a pacificação da sociedade, aliando-se a projetos totalitários de poder e divulgando estereótipos negativos contra valores da cidadania, as lideranças cristãs criaram um problema institucional. O varejo da militância política não irá solucioná-lo.
Organismos sociais e partidos progressistas têm direito e obrigação ética de constranger o STF a redefinir os limites da atividade político-religiosa. Começando pelos ilícitos mais antigos e salientes, romperiam a blindagem legal e discursiva do abuso dogmático.
Propaganda eleitoral em espaços de culto, proselitismo religioso em repartição pública e candidatura com título clerical são exemplos de violações ao princípio constitucional da laicidade do Estado. Ultrapassam as liberdades de expressão e de exercício da fé.
Só há separação de duas instâncias quando ambas renunciam ao contato. Um Estado que permite influência religiosa em seus procedimentos não é laico. Igrejas que desfrutam de direitos absolutos servem de abrigo para a apologia impune do fascismo.
Nada disso envolve as intenções e os valores das bases cristãs. O receio de afrontá-las é pueril. Não esqueçamos que a resistência progressista à imposição das pautas de “costumes” foi simultânea à melhora na popularidade do governo federal.
Guilherme Scalzilli é historiador e escritor. Mestre em Divulgação Científica e Cultural, doutor em Meios e Processos Audiovisuais. Website: www.guilhermescalzilli.blogspot.com
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “