A disfunção das instituições brasileiras

por Carlos Frederico Alverga

Num regime republicano que adota a tripartição de Poderes, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, cada poder tem sua função típica, que exerce contínua e ininterruptamente, e as funções atípicas, as quais exercem de modo esporádico e excepcional. Quando passa a ocorrer de os Poderes passarem a exercer suas competências atípicas de modo contínuo e ininterrupto, quase do mesmo modo pelo qual exercem suas funções típicas, é sintoma de que as instituições democráticas estão disfuncionais, desarrumadas e desorganizadas.

No caso do Poder Executivo, a função típica é executar, administrar. Como exemplo da função atípica de legislar, no caso do Poder Executivo, temos a edição das Medidas Provisórias, e de julgar, temos a possibilidade de o Presidente da República conceder indulto ou graça, de modo a desconstituir a coisa julgada. Já o Poder Legislativo exerce a função administrativa/executiva quando realiza a contratação de servidores ou faz uma licitação, da mesma forma como o Judiciário também pode realizar essas mesmas atividades caracterizando o exercício atípico da função administrativa. O Poder Legislativo também pode excepcionalmente julgar, como quando o Senado Federal julga o Presidente da República no processo de impeachment, assim como o Judiciário pode, excepcionalmente, legislar, como quando um Tribunal institui seu Regimento Interno.

O problema é que, a partir do golpe que destituiu a Presidente Dilma em 2016, o país ingressou num terremoto e num curto-circuito institucional no qual os Poderes deixaram de exercer suas funções típicas precípuas e passaram a exercer as atípicas de modo permanente, ininterrupto, inconstitucional e ilegal. O Poder Judiciário não exerceu seu mister primordial de ser o guardião da Constituição ao se omitir e não invalidar o processo de impeachment inconstitucional de Dilma, já que não havia ocorrido o cometimento de crime de responsabilidade exigido pela Lei Maior.

Esse fato abastardou o funcionamento das instituições democráticas e, junto com a desmoralização e deslegitimação do sistema político e partidário democrático promovido pela Lava Jato com apoio da mídia hegemônica e golpista, pavimentou o caminho para a ascensão do fascismo exterminador da democracia em 2018. Aí o Legislativo passou a controlar a execução do orçamento devido a que o Presidente entre 2019 e 2022, para não sofrer impeachment, entregou o controle da peça orçamentária ao Centrão no inconstitucional “orçamento secreto”. Já o Judiciário passou a legislar, praticando ativismo judicial, e a interferir indevidamente no processo eleitoral decretando a prisão ilegal e arbitrária do Lula e, por meio da ação do TRF4, exterminando o Estado Democrático de Direito ao proferir um acórdão que autorizava o juiz de piso de Curitiba a exercer a magistratura fora dos parâmetros constitucionais e legais do ordenamento jurídico nacional. Só o desembargador Favreto foi contra essa insanidade.

Na verdade, houve uma ruptura da institucionalidade democrática no impeachment de Dilma e, a partir daí, o país entrou num redemoinho de desestruturação do funcionamento das instituições que ainda demorará para retornar ao normal, isso se nesse meio tempo não houver novos retrocessos.

Vejam o exemplo do IOF. Pelo artigo 153, parágrafo 1º da Constituição, o Poder Executivo tem a permissão constitucional para alterar por Decreto as alíquotas de alguns impostos da competência tributária constitucional da União, os impostos sobre importação, exportação, sobre produtos industrializados e sobre operações financeiras (de crédito, seguros, câmbio), esse último é o IOF. isso porque esses impostos não estão sujeitos nem ao princípio da anterioridade tributária, que consta da Constituição Federal (CF), artigo 150, III, b, nem ao princípio da anterioridade nonagesimal (artigo 150, III, c da CF).

Pelo primeiro princípio, caso queira aumentar tributo, gênero do qual o imposto é uma espécie, o Executivo/Presidente da República tem que enviar para o Congresso Nacional uma Medida Provisória ou um Projeto de Lei os quais têm que ser aprovados e publicados pelo Legislativo Federal até o final do exercício para que o Executivo possa cobrar e arrecadar o imposto aumentado no exercício seguinte. Não é o caso do IOF, em que o Presidente da República pode modificar a alíquota por Decreto sem precisar da anuência do Congresso Nacional, e sem ter que obedecer ao princípio da anterioridade tributária (artigo 150, III, b da CF), conforme preceitua o artigo 150, parágrafo 1º da Carta Política.

Além disso, no caso da majoração da alíquota de incidência do IOF por Decreto, também não há a necessidade de satisfazer o princípio da anterioridade nonagesimal (CF, artigo 150, III, c), pelo qual as pessoas políticas (União, Estados, DF e Municípios) não podem cobrar tributos antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou. Portanto, na edição do Decreto de aumento do IOF, não houve desrespeito à CF.

Vários parlamentares, deputados e senadores, propuseram Decretos Legislativos para sustar o Decreto do Presidente contendo a majoração da alíquota do IOF. Esses Decretos Legislativos, sendo aprovados pelo Congresso, são inconstitucionais. Isto porque, pelo artigo 49, V, o Congresso Nacional pode editar Decreto Legislativo para sustar Decreto do Presidente da República que exorbite do poder regulamentar ou dos limites da delegação legislativa. No caso, trata-se do Congresso Nacional desempenhando a função atípica do Legislativo, e função típica do Judiciário, de exercer o controle da legalidade dos atos normativos editados pelo Poder Executivo.

Na situação em tela, o Presidente não está nem exorbitando do poder regulamentar nem dos limites da delegação legislativa. O poder regulamentar está no artigo 84, IV da Constituição Federal que determina que é competência privativa do Presidente da República sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução. O poder regulamentar propriamente dito está contido no final, na parte de “expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução”. Em termos mais simples, o Presidente da República não pode inovar o ordenamento jurídico estabelecendo um direito ou dever que não existia antes editando um Decreto, só a lei, que exige aprovação do Congresso, é que pode. Ora, o Presidente Lula não fez isso ao editar o Decreto de aumento da alíquota do IOF, ele fez algo que a Constituição Federal (CF), no artigo 153, parágrafo 1º permite, qual seja:

“§ 1º A vedação do inciso III, b, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, IV e V; e 154, II; e a vedação do inciso III, c, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, III e V; e 154, II, nem à fixação da base de cálculo dos impostos previstos nos arts. 155, III, e 156, I.”  

O IOF é o imposto previsto no artigo 153, V da CF, o qual não precisa obedecer nem ao princípio da anterioridade tributária (CF artigo 150, III, b) nem ao princípio da anterioridade nonagesimal (CF artigo 150, III, c). Portanto, é perfeitamente idôneo o ato do Presidente Lula. Quanto a exorbitar os limites da delegação legislativa, trata-se de algo também inexistente, tendo em vista que não há nenhuma lei delegada em vigor. Aliás, desde os anos 60 a lei delegada quase não é utilizada, já que no Brasil sua instituição foi uma forma de tentar recuperar algum poder para o Presidente na época em que foi instituído o parlamentarismo espúrio para retirar os poderes do Presidente João Goulart após o golpe de agosto de 1961. Além disso, depois da instituição da Medida Provisória pela Constituição de 88, a lei delegada caiu em total desuso.  

Ou seja, o Congresso está exercendo equivocadamente a função atípica de controle da legalidade, que é típica do Judiciário, em mais uma demonstração das trágicas consequências da disfunção institucional em que o Brasil se encontra e demorará a sair. A crise das instituições transformou-se na instituição das crises, como dizia o finado historiador baiano Luiz Alberto Moniz Bandeira.

Carlos Frederico Alverga: economista graduado na UFRJ, especialista em administração pública pelo Cipad/FGV e em Direito do Trabalho e Crise Econômica pela Universidade de Castilla La Mancha (Espanha) e mestre em Ciência Política pela UnB. E-mail: [email protected]

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Last Update: 29/05/2025