do Jornal da USP

A desinformação como modelo de negócio

por Raulson Silva

Em 2020, o mundo assistiu perplexo ao avanço não apenas do vírus sars-cov-2 durante a pandemia da covid-19, mas também aos efeitos da desinformação e da desordem informacional tomando conta das arenas públicas. Eis então que o termo “infodemia” é alavancado, representando um grande fluxo de informações que se espalham através do ambiente digital e sobrecarregam a sociedade com distintas e antagônicas “versões dos fatos”.

O problema é que essa sobrecarga de informações trouxe efeitos nocivos às pessoas que sequer conseguem mais saber o que é real em meio a tanta desinformação. Exemplo disso é o levantamento da American Journal of Tropical Medicine and Hygiene, que aponta que informações falsas (como as de uso de supostas medicações caseiras contra a covid-19) foram diretamente responsáveis por ao menos 800 mortes, além de outras 5.800 hospitalizações, só em 2020.

Se por um lado a desinformação traz efeitos nocivos às nossas vidas – levando ao consumo de substâncias que podem custar a nossa saúde, por exemplo -, por outro tem-se tornado evidente o quanto ela também pode beneficiar grupos maliciosos que lucram com a sua disseminação. Em meio às teorias da conspiração contra as vacinas e promessas milagrosas de supostos medicamentos de cura universal, nos resta questionar, “quem lucra quando a mentira avança?”.

Dióxido de cloro (ClO₂)

O dióxido de cloro (ClO₂) é originalmente utilizado pela indústria para o branqueamento de polpa de madeira, mas é também visto no alvejamento de farinha e para a desinfecção de água. Contudo, este produto, que funciona bem para a limpeza industrial, tem sido disseminado falsamente como uma suposta “cura universal”, ou ainda como um “detox vacinal”.

Vendidos em opções de “MMS” e “CDS”, os frascos de dióxido de cloro são abertamente comercializados em comunidades clandestinas do Telegram, além de estarem publicamente em sites de e-commerce, como o Mercado Livre e a Amazon. Por trás daquilo que parece ser uma inocente crença nos poderes terapêuticos de uma substância, organiza-se todo um modelo de negócio que lucra conforme avança a desinformação sobre o seu uso supostamente milagroso.

Dentre as promessas do dióxido de cloro, temos mais de 90 doenças ou condições listadas como supostamente “curáveis” por ele. Desde aids (HIV), até artrite reumatoide, ou ainda autismo, cálculo renal, fibromialgia, tuberculose, tumor e tantas outras, as propagandas disseminadas pelos produtores e comerciantes de dióxido de cloro incitam quase que uma busca imediata para aqueles que estiverem desesperados com a sua condição atual. No caso do “detox vacinal”, o dióxido de cloro promete “desintoxicar” o usuário até de supostos nanorobôs e microchips das vacinas, relacionando teorias da conspiração com a febre da substância.

Não bastasse lucrar com a venda, as dezenas de milhares de usuários que compõem as redes no Telegram, por exemplo, são expostos diariamente a ebooks e cursos sobre “as melhores formas de se consumir o dióxido de cloro”. A monetização, portanto, não se restringe ao frasco de ClO₂, mas inclui até a transformação desse produto em um estilo de vida, oferecendo infoprodutos agregados. Em alguns casos, é passada a ideia de um “detox matinal”, em que um coach propõe que o usuário consuma o seu dióxido de cloro acompanhado de banhos frios e caminhadas pela manhã.

Lucro

Em 2021, um vazamento revelou o que foi apelidado de “Facebook Papers”, um conjunto de documentos provando que o Facebook ignorou inúmeras fake news apenas para preservar o seu lucro, mantendo conteúdos nocivos na plataforma, mesmo após serem notificados. Somando-se a outras denúncias, o papel das big techs na disputa da realidade ganhou ainda mais relevância.

Atualmente, o modelo de negócio das plataformas baseia-se em manter o usuário o máximo de tempo possível dentro delas. Se um usuário gosta de carros, por exemplo, os algoritmos das plataformas irão preferir distribuir conteúdos relacionados a carros para esse usuário. E o mesmo ocorrerá com usuários que gostem de maquiagem, basquete, misticismo ou qualquer outro assunto. Contudo, uma pesquisa do Instituto Think Twice Brasil revelou que, por exemplo, conteúdos violentos são estimulados para jovens e adolescentes no TikTok, onde os algoritmos aproveitam-se das condições dos jovens e adolescentes para que então se viciem neste tipo de conteúdo.

Não muito distante, quando buscamos sobre “dióxido de cloro” ou “detox vacinal”, é fácil encontrar recomendações para compra logo na primeira página do Google, ou ainda comunidades abertas em redes sociais, mantidas pelas plataformas. E mesmo com constantes notificações do poder público, tais plataformas apelam pelo direito a uma suposta liberdade de expressão, mantendo tais comunidades e afirmando indiretamente que usuários maliciosos possuem uma intocável liberdade para intoxicar os demais com substâncias químicas, lucrando com a mentira.

Quando vale tudo pelo lucro, temos jovens e adolescentes radicalizados apenas por ser mais fácil prender a atenção destes com conteúdos violentos. Ou ainda, temos curas milagrosas causando danos à saúde das pessoas, apenas porque tais gurus pagaram pelo impulsionamento ou por uma melhor posição na prateleira das big techs.

Vale reforçar que, mais do que aquele que comercializa o dióxido de cloro, lucra também aquele que propaga desinformações contra as vacinas, pois este cria demanda para o ClO₂ entrar em cena como uma solução milagrosa para o problema apresentado. Enquanto alguns defendem que a internet seja terra sem lei, outros lucram com um modelo de negócio que aprendeu a criar a própria demanda com o caos social e com a desinformação, propiciando, em seguida, uma oferta mentirosa que se transforma até mesmo em infoprodutos e em estilo de vida.

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Raulson Silva, pesquisador do Grupo de Estudos em Tecnologias e Inovações na Gestão Pública da USP e do Monitor do Debate Político no Meio Digital da USP

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Última Atualização: 03/07/2024