A desordem do mundo – III
A desordem do mundo – III
por Gilberto Lopes
Entre o fim da Guerra Fria e o atual cenário internacional, o que aconteceu foi que a potência vencedora tinha chegado ao auge de seu poder. A partir daí, e desde então, ela vem descendo o outro lado da ladeira.
Compor o mundo pela força
A Guerra Fria deixou-nos lições úteis para a interpretação dos conflitos internacionais. No passado e no presente, há uma característica comum: trata-se do fim de uma era, marcada pela confrontação entre as grandes potências.
O fim da Guerra Fria foi marcado pela reafirmação da potência dominante, os Estados Unidos, que tinham saído fortalecidos da Segunda Guerra Mundial. Foi a reafirmação do mundo capitalista, cujos recursos superavam em muito as capacidades do mundo soviético, cujas fraquezas econômicas determinaram sua derrota.
Essa é uma história que foi contada de forma convincente num livro ao qual já me referi outras vezes: The triumph of broken promises, de Fritz Bartel. Foi o último grande triunfo do capitalismo e de sua potência mais desenvolvida: os Estados Unidos. Com sua vitória na Guerra Fria, tornaram-se a única grande potência mundial.
O texto de Fritz Bartel sugere uma chave para esse processo: a política do Fed de aumentar as taxas de juros a níveis então inimagináveis tornou possível inundar os Estados Unidos com recursos. Esse foi um fator decisivo para derrotar um mundo soviético não apenas cada vez mais endividado, mas também exposto à fraqueza de uma ordem econômica baseada em energia barata fornecida pela União Soviética. Mas esse sucesso também foi a chave para a decadência, expressa hoje numa dívida imparável, que consome cada vez mais os recursos de uma potência em declínio: três bilhões de dólares por dia em juros.
Entre o fim da Guerra Fria e o atual cenário internacional, o que aconteceu foi que a potência vencedora tinha chegado ao auge de seu poder. A partir daí, e desde então, ela vem descendo o outro lado da ladeira.
Foram as condições internas de cada país que determinaram o resultado da Guerra Fria. E é seguro dizer que elas também serão a chave para o resultado da confrontação atual (a menos que cheguemos a uma guerra nuclear inimaginável).
Como disse Rush Doshi, diretor da Iniciativa sobre Estratégia Chinesa no Council on Foreign Relations e vice-diretor para assuntos da China e Taiwan no Conselho de Segurança Nacional durante o governo Biden, algumas das questões mais urgentes na definição da política em relação à China são de ordem doméstica, base da força norte-americana. “Mas os fundamentos dessa força se atrofiaram, especialmente desde o fim da Guerra Fria”, acrescentou ele, num artigo publicado na revista Foreign Affairs em 29 de novembro.
É claro que a União Soviética não era uma grande potência capitalista, nem tinha condições de enfrentar com sucesso os Estados Unidos. Sua capacidade militar foi fundamental para a derrota alemã na Segunda Guerra Mundial e isso ajudou a obscurecer a natureza do conflito entre as grandes potências durante a Guerra Fria, fazendo parecer que eram duas potências com capacidades semelhantes. O resultado mostrou que não eram.
Mas a ênfase na capacidade militar também obscurece a visão dos que sugerem que Washington pode replicar o que aconteceu naquela época para enfrentar os desafios atuais. Não enxergam o cenário interno, nem a importância da capacidade econômica no resultado da Guerra Fria. Acham que, por meio da ameaça militar (peace through strength), podem repetir a façanha que atribuem às políticas agressivas do então presidente Ronald Reagan. Uma ilusão que também está presente na patética avaliação de Josep Borrell de seus cinco anos no comando da política externa e de segurança da União Europeia, para quem ainda há muito trabalho a ser feito “para falar eficazmente a linguagem do poder”.
“Se a Europa não conseguir se unir neste momento de mudanças tempestuosas, ela não terá uma segunda chance”, diz o líder dos verdes alemães e ex-ministro das relações exteriores (1998-2005) Joschka Fisher. Sua única opção, acrescentou ele, é “transformar-se numa potência militar capaz de proteger seus interesses e garantir a paz e a ordem no cenário mundial. A alternativa é a fragmentação, a impotência e a irrelevância”.
O perigo, naturalmente, é que tentem fazer isso. Qualquer aposta num triunfo militar no cenário atual é ingênua ou de má fé, pois todos nós sabemos que uma guerra, com as capacidades nucleares modernas, significará a derrota de todos.
O cenário de confrontação de hoje é diferente daquele da Guerra Fria num aspecto fundamental. Trata-se da decadência do que foi a liderança da ordem mundial capitalista e do ressurgimento de antigas potências, uma história que tem o acadêmico e diplomata de Cingapura Kishore Mahbubani como um de seus principais estudiosos, entre outros, em seu livro O novo hemisfério asiático.
Entre as potências que ressurgem, a China é evidentemente a mais importante. Mas quando uma potência como os Estados Unidos espalhou sua influência pelo mundo de uma forma até então desconhecida, com sua economia capitalista (de crescente concentração da propriedade privada) e a ideologia liberal que a sustentou (base de praticamente todas as ditaduras, especialmente na América Latina), sua decadência não pode ocorrer sem várias confrontações, nos mais variados cenários em que esteve presente.
Especialmente na Ásia, sede da potência em ascensão, e na Europa, a retaguarda da verdadeira guerra – entre os EUA e a China –, onde os interesses de Washington são intermediados por seus aliados numa confrontação com a Rússia.
De todo modo, a mais poderosa, a Alemanha, não está mais em condições de ameaçar nenhuma outra potência, como fez em duas guerras mundiais. Com muitos custos, ela tem sido capaz de arrancar os recursos de uma Europa que vê sua influência no mundo cada vez mais reduzida.
Doshi resume os diferentes cenários de tensões na Ásia, onde a força dos Estados Unidos deriva de uma ampla rede de alianças. Para impedir a agressão no Estreito de Taiwan ou no Mar do Sul da China, Donald Trump terá que sustentar aquelas que Joe Biden já construiu: Aukus, com o objetivo de fornecer à Austrália submarinos com capacidade nuclear; Quad, composta pelos Estados Unidos, Austrália, Índia e Japão; e outras iniciativas envolvendo, entre outros, a Coreia do Sul, Filipinas e Papua Nova Guiné.
Os cenários na África e na América Latina são diferentes. Na África, a dominação foi colonial, exercida de modo brutal pelas potências europeias. Na América Latina, a dominação norte-americana foi praticamente total, vinculada às classes dominantes dos países da região. Portanto, as lutas políticas nesses dois continentes, nessa fase de transição, são condicionadas pel