Galileu, Kepler e a Revolução Científica.
Por Felipe A. P. L. Costa [**]
APRESENTAÇÃO. – Duas invenções foram cruciais na secularização e, em última instância, na democratização do conhecimento. Foram elas: (i) a criação do tipo móvel, que daria origem à tipografia e, por extensão, aos jornais e ao mercado livreiro moderno; e (ii) o surgimento de instrumentos ópticos, notadamente o telescópio e o microscópio, peças-chave a impulsionar a Revolução Científica. Não seria exagero dizer que essas inovações coevoluíram umas com as outras (digo: se influenciaram mutuamente). Caberia ainda notar que elas foram o resultado do trabalho de práticos.
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1. 460 ANOS ATRÁS.
Nascido em Pisa, no seio de uma família relativamente abastada, o astrônomo e inventor italiano Galileu [di Vincenzo Bonaiuti de’] Galilei (1564-1642) foi um dos protagonistas da Revolução Científica. Filósofos e historiadores com frequência se referem a ele como o criador da moderna ciência experimental [1].
Nas palavras de Bunge (1987, p. 20-1):
“A ciência natural moderna nasce à margem dessas fantasias filosóficas. Seu pai, Galileu, não se conforma com a observação pura (teoricamente neutra) e tampouco com a conjectura arbitrária. Galileu propõe hipóteses e as submete a prova experimental. Funda assim a dinâmica moderna, primeira fase da ciência moderna. Galileu se interessa vivamente por problemas metodológicos, gnosiológicos e ontológicos: é um cientista e um filósofo e, além disso, um engenheiro e um artista da linguagem. Mas não perde seu tempo propondo cânones metodológicos. Galileu engendra o método científico moderno, mas não enuncia seus passos e nem faz sua propaganda. Talvez porque saiba que o método de uma investigação é parte dela, e não algo que dela possa ser deduzido.”
2. EFEITO TELESCÓPIO.
Duas lentes, devidamente alinhadas, são capazes de produzir uma imagem próxima de um objeto distante. Tal fenômeno – referido como efeito telescópio – teria sido descoberto de modo acidental por um aprendiz anônimo [2].
Embora Galileu tenha sido autor de inúmeras proezas, a invenção do telescópio não foi uma delas. Ele ajudou a aperfeiçoar o instrumento, não a inventá-lo. O mérito da invenção caberia melhor a Hans Lippershey (1570-1619), um fabricante de lentes de origem alemã, residente em Midelburgo, capital da província de Zeelândia (Países Baixos) [3].
Em 1608 (ou antes), Lippershey montou aquele que teria sido o primeiro telescópio, não demorando a perceber as possibilidades práticas do engenho. Foi batizado de perspicillum (pl. perspicilli), conforme lemos em Sidereus Nuncius (1610), de Galileu. O brinquedo foi um sucesso e logo se difundiu.
A novidade alcançou Galileu em Veneza. Ele ficou encantado e construiu um modelo próprio, já com um poder de alcance superior ao do original. Nas palavras de Roque (2012, p. 308):
“Quando conseguiu aumentar o alcance do telescópio, [Galileu] estava envolvido […] nessa economia de artefatos e sua ideia inicial não era desenvolver um instrumento astronômico para comprovar o heliocentrismo, e sim fornecer uma nova ferramenta militar à Marinha de Veneza.”
Foi o próprio Galileu quem batizou o protótipo de telescópio (gr., tele = longe + scopio = ver). Em 1610, ele já havia conseguido fabricar um modelo com um poder de aumento de 1.000× [4].
3. OS SONÂMBULOS.
Consta que Galileu era um tipo inamistoso ou mesmo desagradável. Na descrição de Koestler (1989, p. 255) [5]:
“[Ele] possuía um raro dom de provocar inimizades, não o afeto alternado à cólera despertado por Ticho [Brahe], mas a hostilidade fria, incessante, que o gênio mais a arrogância menos a humildade cria entre os medíocres.”
O matemático e astrônomo Johannes Kepler (1571-1630) foi um sincero e raro admirador do italiano [6]. Em uma época em que Galileu estava a ser contestado pelos seus pares, o alemão o defendeu, mesmo não tendo visto aquilo que o italiano teria visto ao apontar o seu engenho para o céu. Certa vez, Kepler lhe enviou uma carta, pedindo um telescópio emprestado, mas Galileu jamais o atendeu – durante toda a vida, a correspondência do italiano para ele se resumiria a duas cartas. O alemão, que nunca expressou rancor pelo colega – sobre quem, aliás, não poupava elogios –, mais tarde teria acesso a um modelo emprestado por um aristocrata.
Pois foi assim, em meio a brigas, traições e facadas pelas costas, que as inovações promovidas pela Revolução Científica ajudariam a pavimentar o caminho em direção ao mundo moderno.
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NOTAS.
[**] Artigo extraído e adaptado do livro A força do conhecimento & outros ensaios: Um convite à ciência (no prelo). Sobre os livros anteriores do autor, ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir o pacote ou algum volume específico ou para mais informações, faça contato pelo endereço [email protected]. Para conhecer outros artigos ou obter amostras dos livros, ver aqui. [1] Para o físico alemão Albert Einstein (1879-1955), Galileu foi o pai da ciência moderna; para o físico inglês Stephen Hawking (1942-2018), ninguém teria feito mais do que ele pela ciência; para outra opinião, ver Roque (2012). [2] Por volta de 1229 (ver White et al. 2021), o polímata inglês Robert Grosseteste (c. 1175-1253) já escrevia (entre outras coisas) sobre o efeito telescópio. Nas palavras dele (apud Ronan 1987, vol. 2, p. 140): “Essa parte da óptica, quando bem entendida, nos mostra como podemos fazer com que coisas situadas a grandes distâncias pareçam estar muito perto e coisas grandes e próximas pareçam muito pequenas, e como podemos fazer pequenas coisas colocadas à distância parecerem tão grandes quanto quisermos, de tal forma que nos é possível ler as menores letras a uma distância incrível, ou contar [grãos de] areia, [sementes] ou [folhas de grama] ou qualquer espécie de objetos diminutos”. [3] Para detalhes, ver Boorstin (1989). [4] Telescópios aumentam o brilho, resolvem e magnificam. Nas palavras de Comins & Kaufmann (2010, p. 99 e 101): “Desde o tempo de Galileu, os astrônomos têm construído instrumentos para captar mais luz do que o olho humano é capaz. A coleta de uma maior quantidade de luz nos permite ver as coisas mais claramente, com mais detalhes, e a uma maior distância. […] A função final de um telescópio é fazer os objetos parecerem maiores. Esta propriedade é chamada magnificação. […] [E] é geralmente expressa como [digamos] 200×”. [5] O título desta seção faz alusão ao título original de Koestler (1989). [6] Sobre Kepler, eis o que anotou Witkowski (2004, p. 25-6): “Já considerado em vida criatura inclassificável, tornou-se, na história das ciências, um ícone que resume toda a dificuldade de pensar os primórdios da ciência moderna. Kepler foi objeto de vários trabalhos de pesquisa, e são incontáveis, depois de Arthur Koestler, os biógrafos desse personagem de romance. Que tal indivíduo, depositário dos trabalhos do dinamarquês Tycho Brahe, apaixonado pela astrologia e a mística, terçando armas (a pluma) tanto com o físico italiano Galileu como com o astrólogo inglês Robert Fludd, tenha conseguido, pioneiramente, compreender o movimento dos planetas permanece um enigma significativo no âmbito do que hoje chamamos de ciência. Kepler não mostrava de fato nenhum dos traços distintivos do ‘cientista’ futuro. Nem matemático excepcional, como seria Newton, nem deliberadamente racionalista, como se tornaria Descartes, permaneceu um homem do Renascimento atípico perdido no século 17, um desses eruditos barrocos, curiosos por tudo e profundamente religiosos, que viam por trás de cada fenômeno natural a mão de um Deus onisciente. Mas o olhar de Kepler era de uma excepcional acuidade, e de um modernismo perturbador. Enquanto Galileu observava os planetas com a luneta, era Kepler quem explicava o funcionamento desse aparelho – atitude decisiva numa época que hesitava em qualificar como ilusórias as visões instrumentalizadas dos astrônomos. Enquanto a revolução copernicana insistia na circularidade dos orbes planetários, Kepler era o primeiro a falar em órbitas elípticas (1609), e a definir sua forma com notável precisão. Ora, o que reconhecemos atualmente como etapas essenciais no caminho da Razão científica não passava, para Kepler, do resultado de um jogo intelectual do qual a intuição e as considerações estéticas nunca estavam ausentes”.**
REFERÊNCIAS CITADAS.
++ Boorstin, DJ. 1989 [1983]. Os