A cultura como direito na Constituição e o lugar do Ministério Público
por Márcio Soares Berclaz
A cultura, mais do que expressão da sociedade, também é inseparável da noção de linguagem e da própria ideia concepção de mundo, como ensina Gramsci. Não se nega a importância e a força transformadora da cultura, bem como seu nexo com a própria noção de hegemonia e a sua disputa, a sua importância para uma intelectualidade que se pretende orgânica e com alguma potencialidade organizativa e mobilizadora da sociedade. Talvez por isso a cultura como produto gere tanto debate e polêmica e seus artífices sejam os primeiros inimigos quando se atravessa a rua da democracia para sombrios e nefastos regimes ditatoriais ou autoritários.
Como bem disse o Deputado Estadual Renato Roseno (PSOL-CE) em recente encontro nacional conjunto da Associação dos Juízes para a Democracia (AJD) e Coletivo para um Ministério Público Transformador, realizado no mês de setembro de 2025, na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, mais especificamente em Mesa Redonda que debatia a “resistência do mundo estudantil à Ditadura Militar”, não há horizonte de transformações e revolução sem uma estética revolucionária.
Assim, é de se perguntar: Que espaço que o Direito como campo pode e deve conceder à cultura? Qual o lugar da cultura na topografia das Constituições? Não é a cultura justamente o mais difícil de se mudar?
Bastante significativo e recomendável é que tomemos um breve passeio pelo simples “texto da norma”.
O Estado brasileiro precisa garantir “a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional”, cabendo-lhe apoiar e incentivar “a valorização e a difusão das manifestações culturais”. Essa é a previsão do artigo 215, “caput”, da Constituição da República.
Esse mesmo Estado deve proteger as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, além de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional, conforme também prescreve o parágrafo primeiro desse mesmo artigo 215.
O exigível desenvolvimento da cultura, por igual normativa constitucional, precisa se dar a partir de uma governança planejada, mobilizada a partir de um Plano Nacional de Cultura, necessariamente com “integração das ações do poder público”, tudo de modo a defender e valorizar o patrimônio cultural brasileiro, a produção, promoção e difusão de bens culturais, a formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões, a democratização do acesso aos bens de cultura e a valorização da diversidade étnica regional. Assim determina o parágrafo terceiro, novamente do mesmo artigo 215.
Como se percebe, não é pouca coisa o que a Constituição brasileira garante e prevê sobre a cultura como direito, como ação, como programa e como política. Não se pode ignorar a distância que há entre o discurso do direito decorrente das normas jurídicas do discurso jurídico decorrente das interpretações que se estabelecem ou prevalecem sobre essas mesmas normas jurídicas[1].
Dada a dinâmica perversa e de morte do capitalismo como modelo econômico, como qualquer política pública, a necessidade de financiamento público (a exemplo da Lei n. 8.313/1991, a Lei Federal de Incentivo à Cultura, também conhecida como “Lei Rouanet”[2], criadora do Programa Nacional de Apoio à Cultura – PRONAC, composto por três mecanismos: incentivo a projetos culturais/mecenato, Fundo Nacional de Cultura – FNC e Fundos de Investimentos Cultural e Artístico – FICART; a exemplo da Política Nacional de Cultura Viva, de que tratou a Lei n. 13.018/2014) da cultura é uma realidade e uma necessidade de todos os entes federativos, especialmente da União e dos Estados num regime federativo essencialmente assimétrico com nada menos do que 5.570 municípios, todos com relativa autonomia.
Papel importante exerce, nesse contexto, a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC), instituída pela Lei Rouanet e com regulamentação atualizada pelo Decreto n. 11.453/2023, que dispõe sobre os mecanismos de fomento do sistema de financiamento à cultura.
Não por acaso, a Emenda Constitucional n. 71 de 2012, com a criação do artigo 216-A, previu um “Sistema Nacional de Cultura” organizado de maneira colaborativa, descentralizada e participativa, impondo a necessidade de um “processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico, com pleno exercício dos direitos culturais”.
Esse sistema nacional de cultura na sua totalidade, engrenagem propícia para a promoção de uma política nacional de cultura cujas diretrizes devem estar no Plano Nacional de Cultura, organiza-se por diversos princípios, dentre os quais “diversidade”, “universalização”, “fomento”, “cooperação”, “integração”, “interação”, “complementaridade”, “transversalidade”, “autonomia” tanto do Estado como da sociedade civil, “transparência e compartilhamento das informações”, “democratização dos processos decisórios com participação e controle social”, “descentralização” e “ampliação progressiva dos recursos contidos nos orçamentos públicos para a cultura” (artigo 216, parágrafo primeiro e respectivos incisos).
Mais. A previsão constitucional robusta e analítica para a cultura como direito vai além, determinando que a estruturação do pretendido Sistema Nacional de Cultura passa por alguns instrumentos e estratégias: órgãos gestores, comissões intergestores, planos e programas de cultura, sistemas (informações, indicadores, setoriais e de financiamento) exigíveis de todos os entes federativos, conselhos de política cultura e conferências de cultura. O desafio está longe de ser pequeno.
Proporcionar meios de acesso à cultura, importante lembrar, é competência comum de todas as pessoas jurídicas de direito público (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), conforme previsão do artigo 23, V, da Constituição. Também para isso se prevê competência legislativa concorrente para União, Estados e Distrito Federal (artigo 24, IX).
Realmente não é pouca coisa.
Olhando apenas para os artigos 216 e 217 da Constituição, a exigência normativa foi descortinada e elogiavelmente ambiciosa.
Diante de tantas perspectivas, pretende-se problematizar a importância de discutir o papel constitucional do Ministério Público (artigos 127 e 129) como instância fiscalizatória dos poderes constituídos, em especial do Poder Executivo.
Afinal, qual o lugar e o papel do Ministério Público como instituição responsável pela defesa do regime democrático na estruturação dos conselhos de cultura e no controle e monitoramento do que foi deliberado nas conferências municipais, estaduais e nacional de cultura? Qual foi a efetiva presença e acompanhamento da instituição desses cruciais momentos de deliberação e construção da cultura como política pública?
Em atenção ao princípio constitucional da unidade do Ministério Público (artigo 127, parágrafo primeiro, da Constituição), qual o tipo de divisão de trabalho ou de entendimento de trabalho e interoperabilidade que deve existir entre Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual e Ministério Público do Trabalho relativamente ao tema?
Para além do Enunciado n. 18/2022 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), emitido no contexto da uniformização do conflito de atribuições por intermédio do Processo n. 1.00166/2022-20, definindo como atribuição do Ministério Público Federal apurar supostas irregularidades na operacionalização de recursos contemplados na Lei n. 14.017/2020 (Lei Aldir Blanc), qual tem sido o lugar e reflexão do referido colegiado sobre o tema na perspectiva da qualificação e integração da instituição para o trabalho planejado e conjunto?
Chamou-me atenção que, no recente XXVI Congresso Nacional do Ministério Público, realizado entre 11 e 14 de novembro em Brasília-DF, sob a temática “O MP do futuro: democrático, resolutivo e inovador”, nenhum painel tenha discutido a temática da cultura, ainda que uma “tese” apresentada por colega do Ministério Público do Maranhão tenha se ocupado de parte do problema (A atuação do Ministério Público e a fragilização simbólica da cultura como direito fundamental – José Augusto Cutrim Gomes). Embora o mesmo evento tenha proporcionado outros paineis com reflexão sobre temáticas institucionais pertinentes (por exemplo: A unidade cooperativa no Ministério Público – (im) possibilidades de avanços entre instituições, órgãos e instâncias; Roda de Diálogo: governança, compliance e integridade: direito fundamental à boa administração pública), é possível perceber uma certa invisibilidade, quando não indiferença, da própria instituição do Ministério Público, no tratamento do tema, a começar pela própria falta de “palavras-chaves” na própria categorização dos assuntos, podendo-se discutir, também, ausência de previsão expressa sobre o órgão de execução com atribuição na matéria (Patrimônio público e cultural? Direitos humanos? Educação? Cidadania?).
Recortando parte desse contexto, é de se indagar: qual a estratégia do Ministério Público brasileiro para a atuação preventivo-estruturante, corretiva ou mesmo repressiva na proteção do patrimônio público (artigo 129, II, da Constituição) como comando mandatório constitucional?
O difícil momento pandêmico (2020/2021) e pós-pandêmico resultou na edição da Lei Aldir Blanc (Lei n. 14.017/2020) em contexto emergencial, bem como na subsequente Política Nacional Aldir Blanc (Lei n. 14.399/22) como na criação da Lei Complementar n. 195/2022 (Lei Paulo Gustavo – LPG), posteriormente regulamentada pela Lei Complementar n. 202/2023.
Como se percebe, há um entrelaçamento significativo entre normas constitucionais e infraconstitucionais no tocante à cultura, contexto complexo que, por si só, entre tantas outras projeções e problematizações possíveis, no limite do recorte dado, reforça a necessidade de se repensar o lugar e o papel do Ministério Público em todos os seus ramos, inclusive a especialidade do Ministério Público de Contas.
De nada adianta o Governo Federal disponibilizar recursos substanciais para a cultura ao slogan de “nunca se investiu tanto em Cultura no Brasil”[3], especialmente para o orçamento do Ministério da Cultura que, em 2023 e 2024, respectivamente, foi de R$ 2,99 e 2,78 bilhões, se não houver um cuidado para que seja feita uma aplicação eficiente e responsável desses recursos públicos[4], inclusive na perspectiva da gestão e condicionantes[5] para a liberação desses recursos, exigindo-se não só uma nova postura do Ministério Público, de outras instituições (incluindo Tribunais de Contas tanto da União como Estados ou Municípios), mas sobretudo da própria sociedade, incluindo setores relevantes, dentre os quais o imprescindível Sindicato dos Artistas e produtores culturais e outras entidades e associações equivalentes, dentre as quais o Observatório da Cultura, o Fórum Nacional dos Gestores, etc.
É possível dizer que a maioria dos Municípios brasileiros não está organicamente preparada para gerir a cultura com a governança exigível, seja sob o ponto de vista humano ou técnico? Talvez sim.
É fato que os conselhos municipais de cultura ainda são ilustres desconhecidos da sociedade e enfrentam ainda maiores desafios do que os outros espaços de democracia participativo-deliberativa já existentes e consolidados.
Em jogo está o jogo dialético e necessidade de se compor uma articulação suficiente entre Estado e Sociedade Civil, árdua missão cotidiana, em especial para potencializar a dimensão pré-violatória de direitos humanos, sempre a mais importante.
O planejamento da cultura e sua compreensão como sistema (e, portanto, com características essenciais fundantes), embora centrada em diretrizes, princípios e essencialidades fundantes, ainda é uma grande tarefa pendente.
Enfim, a práxis humana que cotidianamente produz a cultura como produto e significante permeado de historicidade e contradições, mais do que isso, como direito constitucional nas suas muitas relações jurídicas com outros campos (um dos quais a própria arte como espaço de abertura e mediação), exige reflexão e passa, necessariamente, por uma transformadora pedagogia popular.
Tal horizonte é igualmente desafiador, especialmente na periferia do capitalismo dependente, no âmbito de uma sociedade desigual e no contexto uma democracia tão imperfeita e inacabada como a brasileira, o que inclui a falta de profissionalização da gestão cultural no país.
Até que ponto o direito à cultura, pelo que a própria cultura representa enquanto conteúdo, cria condições para um uso insurgente[6] e transformador do próprio direito?
Por certo que nesse contexto tem lugar a discussão sobre o papel que deve ser desempenhado pelo Ministério Público no cumprimento da sua missão constitucional.
Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.
Márcio Soares Berclaz- Membro do Ministério Público desde 2004. Professor. Fundador/membro do Instituto Brasileiro de Pesquisas e Estudos em Direito, Democracia e Ministério Público. Fundador/membro do Coletivo Transforma MP. Membro do Instituto Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABDJ). Mestre e Doutor em Direito pela UFPR. Email: [email protected].
Referências
PAZELLO, Ricardo Prestes. Direito insurgente: para uma crítica marxista ao direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021.
LIGUORI, Guido. VOZA, Pasquale. Dicionário Gramsciano (1926-1937). São Paulo: Boitempo, 2017.
[1] PAZELLO, 2021, p. 24: “Já a forma normativa como crítica da ideologia jurídica é como denomino a proposta teórica de Óscar Correas, o segundo pólo do debate mexicano. Correas teve repercussão teórica em todo o continente, incluindo o Brasil, com sua teoria crítica do discurso para o direito, dividindo categorialmente o ‘discurso do direito’ (decorrente da norma jurídica) do ‘discurso jurídico’ (decorrente das interpretações sobre a norma jurídica)”.
[2] BRASIL. O que é a Lei Rouanet?: A Lei 8.313/1991 foi criada com o objetivo de captar e canalizar recursos para o setor cultural de modo a facilitar o acesso de todas as pessoas do país às fontes da cultura e promover o pleno exercício dos direitos culturais, além de estimular e fomentar a produção, preservação e difusão cultural, principalmente por meio de incentivo fiscal concedido a quem patrocina projetos com esse fim. Fonte: https://www.gov.br/cultura/pt-br/assuntos/lei-rouanet/textos/o-que-e-a-lei-rouanet/view. Acesso em 03 de dezembro de 2025.
Via de regra, leis não têm nome, mas desde o início essa lei passou a ser conhecida como Lei Federal de Incentivo à Cultura e, mais popularmente, Lei Rouanet, por conta de Sérgio Paulo Rouanet, Secretário de Cultura da Presidência da República entre 1991 e 1992, que foi responsável pela apresentação da proposta. A lei foi sancionada no dia 23 de dezembro de 1991, pelo então presidente, Fernando Collor de Mello.
[3] MOURA, Eduardo. ROCHA, Matheus. Ministério da Cultura completa quatro décadas confrontado por pressões. Folha de São Paulo, 15 de março de 2025. https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2025/03/ministerio-da-cultura-completa-quatro-decadas-confrontado-por-pressoes.shtml. Acesso em 03 de dezembro de 2025. “Esse debate acompanha um longo histórico de descontinuidade e reconstrução no MinC, que já nasceu, em 1986, sob críticas que questionavam sua necessidade. Na ocasião, Millôr Fernandes escreveu no Jornal do Brasil que “Ministério da Cultura é uma contrafação da cultura”. “A cultura é. Ponto. O resto é autoritarismo.”
[4] MOURA, Eduardo. PF deflagra operação Vai que Cola que investiga desvios na Lei Paulo Gustavo. Folha de São Paulo.2025.https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2025/10/pf-deflagra-operacao-vai-que-cola-que-investiga-desvios-na-lei-paulo-gustavo.shtml. Acesso em 03 de dezembro de 2025.
[5] ROCHA, Mateus. Mudança do governo Lula na Lei Aldir Blanc preocupa estados e municípios. Folha de São Paulo, 28 de novembro de 2024. https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2024/11/mudanca-do-governo-lula-na-lei-aldir-blanc-preocupa-estados-e-municipios.shtml. Acesso em 03 de dezembro de 2025: “Articulador do Fórum de Artes do Litoral, Interior e Grande São Paulo, Caio Martinez diz que a letargia no repasse dos recursos expõe a falta de profissionalização da gestão cultural no país. “Não adianta passar o valor para municípios e estados se eles não tiverem plano, fundo e conselho de cultura”, diz ele. “Se não há uma estrutura para mediar o repasse dessa verba, fica muito complicado para a pessoa que está na ponta.”
[6] PAZELLO, 2021, p. 22: “O direito insurgente é a proposta mediada de crítica jurídica, tendo nos movimentos populares seu elemento-chave. (…) A questão da revolução e da insurgência, neste caso, é a mediação necessária entre a denúncia (negativa, crítica) e o anúncio (positivo, de libertação). Mas quais as possibilidades da insurgência em contato com o direito? (…) Como a perspectiva insurgente tem de absorver a denúncia, mas também tem de dar respostas para a existência concreta, a meu ver, ela pode possuir quatro dimensões: fenomenomênica ou sociológica; originária ou histórica; fundamental ou filosófica; e normativa ou (anti) jurídica”; p. 31: “Concebo esta síntese, direito insurgente, sob três aspectos: a formulação a respeito da relação jurídica dependente; a relação com os movimentos populares; e as mediações internas como suprassunção dialética entre teorias críticas do e ao direito”; p. 34: “O direito insurgente não representa um cânone (velho ou novo) nem uma simples continuidade da crítica jurídica brasileira ou latino-americana. Antes, é a mediação possível para uma crítica marxista e marxiana à estrutura da forma jurídica, admitindo, desde uma perspectiva dependentista, descolonial e comprometida com os movimentos populares, usos táticos para o direito em contextos de ainda não revolucionamento social”.
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