A crosta terrestre em movimento.
por Felipe A. P. L. Costa [*].
As ideias a respeito do interior do planeta foram alimentadas durante muito tempo pela observação de erupções vulcânicas. Com base nessas observações, os gregos antigos já diziam que as entranhas da Terra são bem diferentes da superfície – e.g., em termos de estado físico e composição.
1. CROSTA, MANTO, NÚCLEO.
O modelo geofísico mais aceito atualmente descreve o planeta como uma gigantesca cebola. A estrutura toda seria constituída pelos aninhamento de três camadas concêntricas (Fig. 5): crosta, manto e núcleo, todas elas divididas em subcamadas e dotadas de propriedades físico-químicas específicas [1].
1.1. Um modelo em três camadas.
A mais superficial e estreita das três camadas é a crosta. São dois subtipos: a c. continental e a c. oceânica. Com uma espessura média de 40 km, o primeiro subtipo ocupa 42,5% da superfície do planeta; o segundo tem uma espessura média de 7 km e ocupa os 57,5% restantes [2]. A crosta é formada de rochas relativamente leves que flutuam sobre o manto mais denso [3]. Entre a crosta e o manto, há uma zona de transição – a chamada descontinuidade de Mohorovicic (ou Moho) [4]. Esta se caracteriza por diferenças na composição e no estado físico das rochas constituintes, o que aparece nos sismogramas como uma mudança brusca na trajetória das ondas [5].
O manto tem uma espessura média de 2,85 × 103 km. Costuma ser subdividido em manto superior (os primeiros 400 km), m. transicional (entre 400 e 650 km) e m. inferior (de 650 km até a transição com o núcleo). A transição entre o manto inferior e o núcleo é chamada de descontinuidade de Gutenberg [6]. Mais uma vez, trata-se de uma região onde o comportamento das ondas muda de modo brusco e notável.
O núcleo reúne tudo o que está abaixo da descontinuidade de Gutenberg, tendo um diâmetro total de 3,5 × 103 km. Costuma ser subdividido em núcleo externo (entre 2,9-5,1 × 103 km de profundidade) e n. interno (do fim da camada anterior até o centro do núcleo). Os dois estão separados pela chamada descontinuidade de Lehmann [7]. O núcleo interno é uma esfera sólida, com ~1,25 × 103 km de raio, composta basicamente de ferro e níquel. (A temperatura no núcleo interno é bem superior ao ponto de fusão do ferro e do níquel, mas a elevadíssima pressão impede a liquefação.) O núcleo interno está envolvido pelo núcleo externo – uma camada de ferro e níquel liquefeitos com ~2,25 × 103 km de espessura.
2. A CROSTA EM MOVIMENTO.
Diferentemente do que imaginam alguns, as terras emersas não são blocos fixos e imutáveis. Não. Todos os continentes estão a se deslocar e estão a se deslocar porque estão a ser empurrados. Uma das consequências dessa movimentação são os terremotos. Porém, com exceção das gentes que vivem em regiões sujeitas a grandes terremotos [8], a movimentação não é uma preocupação cotidiana, visto que não é perceptível. A consequência que nos interessa aqui é a deriva continental, um processo bem mais lento e cumulativo.
Na descrição de Ward (1997, p. 39-40):
“A ideia de que os continentes não estão fixados na superfície da Terra, mas podem de algum modo se mover, não é nova. […] O conceito de deriva continental foi seriamente considerado pela primeira vez no final do século 19, quando o então famoso geólogo austríaco [Edward] Suess [1831-1914] [9] sugeriu que a África, Madagascar e Índia estiveram outrora [unidas], como uma única massa de terra, separando-se somente depois. […]
“As várias linhas de discussão em favor do conceito de um supercontinente antigo e sulino foram reunidas em um livro notável, publicado por um meteorologista alemão em 1912. Alfred Weneger estava convencido de que a grande semelhança entre os litorais da África ocidental e do leste da América da Sul transcendia qualquer possibilidade de coincidência. […]
“Weneger tinha a confiança cega de um fanático religioso. Entretanto, faltavam-lhe os conhecimentos geológicos detalhados para realmente apoiar sua hipótese. A publicação do livro de Weneger foi recebida com aplausos discretos e uma sensação crescente de admiração pelos cientistas do hemisfério sul e com apupos ensurdecedores pelos muitos mais numerosos (e ignorantes) geólogos do hemisfério norte. ‘Como é possível continentes se moverem sobre o fundo sólido dos oceanos?’, bradaram os críticos.”
Pense em uma xícara de leite quente. A interface leite/ar é agitada, seja em termos físicos, seja em termos químicos. Há ali uma acelerada transferência de calor. Há também a formação de uma película flutuante (comumente chamada de nata), cujo comportamento lembra muito o da crosta terrestre. Nos dois casos, estamos a falar de estruturas relativamente leves e frias, a flutuar sobre corpos mais densos e mais quentes.
2.1. Placas tectônicas e os continentes.
Assim como a nata do leite, os continentes estão assentados sobre um substrato fluido, quente e denso. E dinâmico, a ponto de empurrar as massas de terra; razão pela qual alguns blocos estão a se afastar, enquanto outros estão a se aproximar. Nesse contexto, rompimentos e entrechoques se tornam inevitáveis.
Nas palavras de Ward (1997, p. 42-3):
“Todos os continentes são massas de rochas de densidade relativamente baixa engastadas em uma massa de base de material mais denso; os continentes essencialmente flutuam sobre uma fina (em relação ao diâmetro da Terra) camada de basalto [10]. Os cientistas que estudam a Terra gostam de usar a analogia de uma cebola; a fina, seca e frágil casca da cebola pode ser imaginada como a crosta da cebola, que repousa sobre um globo concêntrico de material mais denso e úmido. Os continentes são como finas manchas de materiais ligeiramente diferentes engastados na casca da cebola. Entretanto, ao contrário de uma cebola, a Terra possui um núcleo radioativo. Este gera constantemente grandes quantidades de calor, à medida que os minerais radioativos, soterrados bem no fundo, decompõem-se em seus diferentes subprodutos isotópicos, liberando calor no processo. Conforme esse calor sobe à superfície, cria gigantescas células de convecção de rocha quente e líquida no manto (uma camada pastosa de material situada diretamente sob a crosta, que é a região externa da Terra). Como água fervente, o manto superior viscoso se eleva, move-se paralelamente à superfície da Terra por grandes distâncias (ao mesmo tempo em que perde calor) e, depois, bastante resfriado, acomoda-se novamente nas profundezas da Terra. Essas gigantes células de convecção carregam consigo a fina e frágil camada externa da Terra – conhecida como placas. Às vezes, essa camada externa de crosta compõe-se apenas de leito oceânico; às vezes, porém, um ou mais continentes ou massas de terra menores ficam presas na pele externa móvel. Esse processo, denominado deriva continental ou movimento tectônico das placas, é uma das maiores teorias unificadoras jamais formuladas pelo método científico.”
A África e da América do Sul, por exemplo, são continentes que estão a se afastar um do outro. O ritmo de afastamento varia entre 4 e 8,8 cm ano–1, a depender da latitude [11]. De fato, o que ocorre é que as placas litosféricas (ou tectônicas) sobre as quais os dois continentes estão assentados (Africana e Sul-Americana [12]) estão a ser empurradas para longe da crista meso-oceânica que se estende de norte ao sul do assoalho oceânico. As placas estão a ser empurradas para longe uma da outra pelo acúmulo ininterrupto de material quente e ainda liquefeito que emerge do manto e vai se esfriando e solidificando ao longo da crista.
2.2. A cisão entre África e América do Sul.
Considere as velocidades de 4 e 8,8 cm ano–1. Nesse ritmo, após 1 M de anos, os dois continentes terão se afastado entre 4 × 106 cm (= 40 km) e 8,8 × 106 cm (= 88 km). Mas também podemos inverter o raciocínio: conhecendo a distância atual, podemos calcular quando foi que os dois continentes se separaram. Vejamos.
Sejam as distâncias de 3,2 × 103 km (NE da A. do Sul-NO da África) e 7 × 103 km (SE da A. do Sul-S da África). Sabemos ainda que (i) o nordeste da América do Sul e o noroeste da África estão a se afastar a uma velocidade média de 4 cm ano–1; e (ii) o sudeste da América do Sul e o sul da África estão a se afastar a uma velocidade de 8,8 cm ano–1. Feitas as contas (3,2 × 108 cm / 40 cm ano–1 e 8,8 × 108 cm / 88 cm ano–1), os resultados indicam que os dois continentes estiveram ligados ao menos até ~80-82 Maa [13]. Este resultado não é muito diferente de valores obtidos de modo mais criterioso, como veremos a seguir.
2.3. A dinâmica da cisão.
A separação dos dois continentes foi o resultado final de um processo de cisão iniciado quase que simultaneamente nos dois hemisférios. No sentido norte-sul, veio uma fenda que separou a América do Norte da Europa e, em seguida, avançou para o sul, mas não muito, visto que a fenda estacionou na altura do que hoje é a ilha de Marajó. No sentido sul-norte, veio uma fenda que avançou mais rapidamente, pois não encontrou as mesmas dificuldades.
Do lado africano, essa segunda fenda pôs de lado, pela ordem, os territórios que hoje correspondem aos seguintes países: África do Sul, Namíbia, Angola, Congo, Gabão, Guiné Equatorial, Camarões, Nigéria e, por fim, o Benin. Do lado sul-americano, foram postos de lado os teritórios que hoje correspondem aos seguintes países ou estados brasileiros: Argentina, Uruguai e todos os estados do litoral brasileiro (RS, SC, PR, SP, RJ, ES, BA, SE e AL) até Pernambuco. O derradeiro elo a resistir contra a separação ligava a região que se estende hoje de Pernambuco ao Ceará com a região que se estende hoje da Guiné Equatorial ao Benin. Todo o processo de cisão teria ocorrido entre 135 e 75 Maa [14].
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NOTAS.
[*] Artigo extraído e adaptado do livro O tamanho do mundo & outras conjecturas (no prelo). Sobre a campanha Pacotes Mistos Completos (por meio da qual é possível adquirir, sem despesas postais, pacotes com os quatro livros do autor), ver o artigo Ciência e poesia em quatro volumes. Para adquirir o pacote ou algum volume específico, ou para mais informações, faça contato pelo endereço [email protected]. Para conhecer outros artigos ou obter amostras dos livros, ver aqui. [1] A geofísica lida com aspectos estruturais, dinâmicos e históricos do globo terrestre, de modo semelhante ao que alguns biólogos fazem com a biosfera. [2] Para detalhes, ver Hasterok et al. (2022) e Mai & Korenaga (2022). [3] Minerais são elementos ou compostos químicos de composição definida, cristalizados e oriundos de processos inorgânicos. Rochas são substâncias sólidas resultantes de associações consolidadas de minerais intimamente unidos. São de três tipos: (1) rochas ígneas – resultantes da solidificação do magma derretido oriundo do manto. Se a solidificação ocorre na superfície, falamos em r. extrusivas; se ocorre abaixo da superfície, falamos em r. intrusivas; (2) r. sedimentares – formadas a partir de restos de rochas ou sedimentos depositados na superfície do planeta; e (3) r. metamórficas – formadas pela transformação (física ou química) de rochas pré-existentes – v. Teixeira et al. (2000). [4] Em homenagem ao físico croata Andrija Mohorovičić (1857-1936). [5] Nas palavras de Assumpção & Dias Neto (2000, p. 49-50): “Abaixo da crosta, […] há uma ligeira diminuição nas velocidades sísmicas do manto ao redor de 100 km de profundidade, especialmente sob os oceanos. A composição química das rochas do manto varia relativamente pouco comparada com a da crosta. Essa ‘zona de baixa velocidade’ abaixo dos 100 km é causada pelo fato de uma pequena fração das rochas estarem fundidas (fusão parcial), diminuindo bastante a rigidez do material nessa profundidade. Dessa maneira, a crosta, junto com uma parte do manto acima da zona de baixa velocidade, forma uma camada mais dura e rígida, chamada litosfera. Nesta zona de baixa velocidade, chamada astenosfera, as rochas são mais maleáveis (plásticas).” [6] Em homenagem ao físico alemão Beno Gutenberg (1889-1960). [7] Em homenagem à matemática dinamarquesa Inge Lehmann (1888-1993). [8] Ao menos um milhão de terremotos ocorrem anualmente em todo o mundo (Mubarak et al. 2009). Levando em conta a presença de populações humanas numerosas, eis a lista dos países mais expostos: China, Indonésia, Irã, Japão, Estados Unidos, Turquia, Índia e Filipinas. [9] ES era tio do físico-químico Hans Suess (1909-1993) – ver Costa (2017). [10] Sobre a ressurgência do basalto, especificamente, eis o comentário de Pough et al. (2003, p. 168): “A ressurgência de basalto fundido eleva-se em direção à superfície da Terra formando cristas meso-oceânicas onde atingem o topo da litosfera (a camada rochosa da Terra) e se espalham horizontalmente (…). O fundo dos oceanos é coberto por uma cadeia de cristais meso-oceânicas que se estendem em torno do globo. A crosta mais jovem do fundo dos oceanos é encontrada no centro dessas cristas; movendo-se a partir do eixo da crista, o fundo oceânico torna-se mais velho. Formam-se zonas de subdução nas quais a litosfera afunda novamente para o interior do manto. O fundo dos oceanos é continuamente renovado por esse ciclo de elevação nas cristas meso-oceânicos e afundamento para o interior do manto nas zonas abdução, não ocorrendo rochas mais velhas do que 200 milhões de anos em qualquer lugar do fundo oceânico.” [11] Para detalhes, ver Tassinari (2000). [12] 16 placas principais já foram propostas (em ordem alfabética): Africana, Antárctica, Árabe, Australiana, Caribenha, de Cocos, Eurasiana, das Filipinas, Indiana, Juan de Fuca, de Nazca, Norte-Americana, do Pacífico, Scotia, Somali e Sul-Americana. Há ainda 54 microplacas e 76 zonas de deformação (Hasterok et al. 2022). Regiões onde duas ou mais placas se encontram se caracterizam pela ocorrência de erupções vulcânicas e terremotos. [13] A separação milenar dos dois continentes ainda hoje é transposta por ações humanas desastrosas, como salientou Goulding (1997, p. 200): “Quando ocorreu a separação entre a América do Sul e a África, cada continente seguiu um caminho [evolutivo] diferente, que culminou em floras e faunas distintas. Isso resultou em um aumento considerável da diversidade da vida, pois ambos os continentes eram, em grande parte, tropicais, apresentando geografias complexas, e cada um continha uma grande bacia fluvial que foi coberta principalmente por floresta pluvial. É de certa forma irônico que um dos maiores perigos enfrentados atualmente pela diversidade amazônica seja a africanização de sua paisagem. Tal processo de africanização advém das sementes de gramíneas, semeadas depois da derrubada da florestal pluvial. As plantas superiores conquistaram a Amazônia com [florestas], não com pastagens. Entretanto, os promotores do desenvolvimento da Amazônia querem pastos e utilizam principalmente as espécies africanas por causa do seu vigor e características agressivas de colonização. A filosofia da pastagem resultou em um dos maiores, mais dispendiosos e descontrolados experimentos agronômicos da história do planeta. Duas décadas dessa experimentação custaram cerca de 5% da floresta pluvial amazônica, danificaram vários recursos pesqueiros importantes e aumentaram em muito a pobreza da região. Se você viajar ao longo da Transamazônica, que corta a parte sul da Amazônia, o primeiro foco do experimento de transformar [floresta] em pastagem, não verá sequer um vaqueiro amazônico a cavalo contemplando orgulhosamente seu rebanho a se alimentar de pastos verdejantes. Em vez disso, verá pobreza, gado esquelético e, principalmente, pastos abandonados e improdutivos, onde mudas da floresta pluvial e capins africanos digladiam-se pela conquista das clareiras.” [14] Para detalhes, ver Jacobs et al. (2024).*
REFERÊNCIAS CITADAS.
+ Assumpção, M & Dias Neto, CM. 2000. Sismicidade e estrutura interna da Terra. In: Teixeira et al. (2000).
+ Costa, FAPL. 2017. O evolucionista voador & outros inventores da biologia moderna. Viçosa, Edição do Autor.
+ Goulding, M. 1997. História natural dos rios amazônicos. Brasília, Mamirauá, CNPq & Rainforest.
+ Hasterok, D & mais 6. 2022. New maps of global geological provinces and tectonic plates. Earth-Science Reviews 231: 104069.
+ Jacobs, LL & mais 16. 2024. The Atlantic jigsaw puzzle and the geoheritage of Angola. In: Clary, RM & mais 2, eds. Geology’s significant sites and their contributions to geoheritage. Londres, Geological Society.
+ Mai, VV & Korenaga, J. 2022. What controlled the thickness of continental crust in the Archean? Geology 50: 1091-5.
+ Mubarak, MA & mais 8. 2009. Earthquake prediction: a global review and local research. Proceedings of the Pakistan Academy of Sciences 46: 233-46.
+ Pough, FH & mais 2. 2003 [2002]. A vida dos vertebrados, 6ª ed. SP, Atheneu.
+ Tassinari, CCG. 2000. Tectônica global. In: Teixeira et al. (2000).
+ Teixeira, W & mais 3, orgs. 2000. Decifrando a Terra. SP, O de Textos.
+ Ward, P. 1997 [1994]. O fim da evolução. RJ, Campus.
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