“A crise é o nome do capitalismo”: Alames debate os caminhos da luta anticapitalista na América Latina
Pensadoras e pensadores latino-americanos discutem os limites da soberania, o avanço do autoritarismo e os desafios de construir alternativas diante da catástrofe capitalista global
Por Fernanda Regina da Cunha, Cebes
Em tempos de ofensiva neoliberal, devastação ambiental e normalização da crise, pensar alternativas anticapitalistas deixou de ser um exercício teórico para se tornar uma urgência política.
Foi com essa perspectiva que, nesta quarta-feira, 6, o XVIII Congresso da Associação Latino-Americana de Medicina Social e Saúde Coletiva – Alames promoveu o Grande Debate Sérgio Arouca, reunindo vozes de destaque do pensamento crítico latino-americano para discutir os caminhos da transformação estrutural.
Com coordenação da professora Lenaura Lobato, vice-presidenta do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – Cebes, a mesa contou com a participação da socióloga e economista política Sabrina Fernandes, do filósofo e psicanalista Vladimir Safatle e do historiador e dirigente político Valter Pomar, que atuou como debatedor.
Logo na abertura, Sabrina Fernandes apontou o genocídio em Gaza como um dos exemplos mais brutais da “economia da catástrofe” que sustenta o sistema capitalista global. “O que acontece em Gaza hoje não é acidental, não é um ponto isolado. É uma engrenagem dessa máquina de morte que chamamos de economia do genocídio”.
A socióloga também destacou a recente saída do Brasil do Mapa da Fome como conquista simbólica, mas insuficiente diante das contradições de fundo. “Um Brasil soberano é um Brasil sem fome. Mas a soberania que entra e sai do Mapa da Fome é limitada, temporalizada”, provocou.
Soberania em disputa, fome como projeto
Para Sabrina, o capitalismo não é movido pela escassez natural, mas pela produção orquestrada da miséria. “A fome é engenheirada. Ela existe na periferia do planeta e nas periferias do centro: em Paris, em Nova York. Não é falta de comida. É projeto.”
A pesquisadora também apontou para as novas fronteiras de acumulação, como o avanço da extração de dados sobre territórios indígenas. “A inteligência artificial também é parte da engrenagem do lucro acima da vida. As novas formas de acumulação não respeitam nem a água.”
Ela criticou ainda a demora do governo brasileiro em vetar o “PL da Devastação” e alertou: “Se o Congresso derrubar o veto, a resposta precisa ser luta. Nossa soberania ambiental também está sendo destruída.”
Entre autoritarismo e desejo: os limites da crítica
Na sequência, Vladimir Safatle aprofundou a crítica ao capitalismo como forma de organização dos afetos. “O capitalismo não é apenas um sistema econômico. É um modo de subjetivação. Ele estrutura como sofremos, como desejamos, como nos relacionamos com a impotência.”
Para ele, a esquerda precisa romper com a política do possível. “Nos acostumamos à ideia de que não há outro jeito. Mas o possível já está destruído. É preciso abrir espaço para o impossível — aquilo que ainda não foi imaginado.”
Safatle também alertou para o risco de um antifascismo domesticado pelo liberalismo. “Não basta dizer ‘sou antifascista’. É preciso ser anticapitalista. Porque o fascismo é a forma assumida do capitalismo em crise.”
Ao criticar a naturalização da violência de Estado, foi enfático: “É sempre mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Mas essa dificuldade é, por si só, uma vitória do sistema.”
Uma esquerda sem medo do conflito
Como debatedor, Walter Pomar defendeu a necessidade de organização política e disputa institucional. “Temos que disputar o poder. Não há transformação estrutural sem projeto de poder. E não há projeto de poder sem organização coletiva.”
Ele também criticou o que chamou de “equívoco das pequenas esperanças”. “Muitas vezes, a esquerda se contenta com reformas simbólicas. Mas o capitalismo oferece a crise como normalidade. Precisamos ousar mais.”
Para Pomar, a soberania só será plena quando estiver ancorada numa economia voltada à vida. “Não basta resistir. É preciso construir um novo horizonte civilizatório, baseado em solidariedade, justiça social e planejamento democrático da existência.”
Luta sanitária e utopia política
Ao longo do debate, o papel da saúde coletiva como campo estratégico da luta anticapitalista foi reforçado. Para Sabrina Fernandes, a saúde é “território de disputa entre o cuidado e o lucro”. Para Safatle, ela revela como o capitalismo administra os corpos e a morte.
Nesse sentido, a Alames se afirma como espaço de articulação entre saberes críticos e movimentos sociais. “Nosso debate não é acadêmico. É um chamado à ação”, afirmou Lenaura ao final da atividade.