A crise dos bebês reborn… na civilização dos zumbis

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Nos últimos dias parece que o único assunto que movimenta imprensa são os bebês reborn. Os bonecos e bonecas com aparência humana podem ser considerados mais importantes do que as crianças exterminadas em Gaza por tropas israelenses? A resposta é NÃO, mas do ponto de vista jornalístico parece que a resposta é SIM.

O assunto capturou minha atenção, mas preferi abordá-lo de maneira sarcástica na série Zombies Who Live, que tenho escrito aos poucos e publicado na internet. A crise dos bebês reborn naquele universo fictício monstruoso (em que uma civilização normalizada de zumbis domina o mundo e os humanos foram reduzidos à condição alimento mantido em reservas de alimentação) é tratada no capítulo 35. A série tem sido escrita originalmente em inglês, reproduzo aqui em língua portuguesa apenas o episódio mencionado.

“Capítulo 35: A civilização zumbi é abalada até a medula.

Já vimos em capítulos anteriores como a civilização zumbi é extremamente tolerante. A única coisa que realmente faz a administração da cidade zumbi funcionar é a preocupação com o controle do estoque, manejo e cuidados sanitários na reserva humana para garantir a disponibilidade de alimentos.

As regras e regulamentos relativos à seleção e ao abate de humanos são aplicados com muito rigor, assim como aqueles relativos à distribuição de comida aos zumbis. Não há exceções, e devorar um bebê requer permissão especial, que geralmente é demorada e difícil de obter quando a pessoa que fez o pedido é um zumbi comum. Apenas os casos de pedidos feitos por zumbis de elite são realmente avaliados e eventualmente atendidos.

Tudo estava normal na cidade zumbi até que ela foi abalada por dois escândalos inter-relacionados. Um dia, um zumbi que gostava de observar pássaros com seu binóculo viu uma cena que o deixou com água na boca. A poucos quarteirões do prédio onde morava, ele viu um zumbi mordendo um bebê suculento na sacada do prédio. Ok, ele deve ter permissão, pensou o observador de pássaros.

Mas, alguns dias depois, ao apontar o binóculo para o mesmo local, ele viu o mesmo zumbi mordendo outro bebê suculento. Isso era inaceitável, um caso claro de aplicação seletiva da Lei de Distribuição de Alimentos. Irritado, aquele zumbi cidadão de bem contatou um jornalista zumbi e relatou o ocorrido.

Cuidadoso, o jornalista foi à casa do informante para confirmar pessoalmente os fatos. Em duas ocasiões distintas, ele viu o mesmo zumbi mordendo bebês suculentos. Pronto, o escândalo foi confirmado e estampado na primeira página do principal jornal zumbi. As fotos não ficaram muito boas, pois o tempo estava ruim quando foram tiradas.

As autoridades imediatamente ordenaram uma investigação. Em pouco tempo, as engrenagens burocráticas da cidade zumbi estavam em movimento. O zumbi comedor de bebês foi devidamente identificado. Certificados foram anexados ao processo, comprovando que aquele zumbi em particular nunca havia solicitado ou obtido permissão especial para devorar bebês. O risco de mercado negro levou as autoridades a aumentar a vigilância de bebês humanos na reserva de alimentos.

Uma divisão especial de policiais zumbis foi designada para observar o suspeito e prendê-lo em flagrante caso ele comesse um bebê novamente sem permissão. Quando o apartamento foi finalmente arrombado e o infrator foi preso a polícia não encontrou nenhum vestígio do bebê comido para análise. Mas o caso prosseguiu devido à abundância de depoimentos sobre o ato criminoso cometido.

No dia da audiência e julgamento do caso, o réu foi defendido pelo advogado que já havia se tornado famoso em um caso anterior relatado nesta saga. Na abertura da defesa, ele alegou que o crime sob investigação era impossível, seu cliente não havia comido nenhum bebê sem permissão oficial nem o havia comprado no mercado negro. Durante a oitiva das testemunhas, o advogado permaneceu em silêncio e não fez perguntas.

O promotor fez o melhor que pôde e, no final, pediu a condenação, pois as provas testemunhais eram inquestionáveis. O vizinho, o jornalista e três policiais viram através de binóculos em dias diferentes o réu, aquele réu zumbi em particular, mordendo bebês suculentos na varanda de seu apartamento.

Quando chegou a hora de o advogado apresentar a defesa, ele tirou da bolsa uma imitação perfeita de um bebê e a entregou ao réu. Conforme combinado, o réu mordeu o bebê reborn e o jogou no chão. Aquela cena teatral causou espanto em todos. O advogado se levantou, foi até o bebê rebonr e pisou nele, para confirmar que não se tratava de algo vivo, mas sim de um objeto fabricado nos tempos antigos da humanidade.

“Como podem ver, senhores jurados, Sr. Promotor, Meritíssimo Juiz. Meu cliente nunca devorou ​​um bebê humano. Não há provas materiais (restos mortais de um bebê humano) que comprovem o crime. O que ele estava fazendo na sacada de seu prédio era morder este boneco fabricada no passado por humanos, que ele adquiriu há algum tempo. Nenhum crime foi cometido e a acusação se refere a um crime impossível porque, felizmente, bebês humanos são qualitativamente diferentes do bebê reborn mordida pelo meu cliente. Não há lei que proíba meu cliente de fazer isso, então a defesa encerra esta sustentação e exige a absolvição do réu.”

Desta vez, o juiz teve que apertar a mão do advogado. E ele bateu o martelo no promotor, no jornalista, no denunciante e nos policiais. Era inaceitável que tantos zumbis tivessem sido estúpidos o suficiente para cometer o erro imperdoável de confundir um bebê humano com um reles bebê reborn. O caso está encerrado, o réu está livre para prosseguir sem que nenhuma informação prejudicial seja adicionada ao seu arquivo. E você pode levar seu bebê artificial com você em paz, acrescentou o juiz.

Mas depois o caso tomou um rumo diferente. Durante a intensificação da vigilância de humanos bebês na reserva, as autoridades descobriram que uma rede subterrânea de zumbis estava infiltrando centenas de bebês reborn antigos na reserva. Isso poderia causar um declínio na taxa de natalidade do estoque humano e interromper o futuro suprimento de alimentos para os cidadãos zumbis.

Investigações posteriores ligaram a rede zumbi que traficava os bebês reborn para a reserva ao líder de um culto zumbi que se recusava a comer humanos vivos e se limitava a comer cadáveres. Isso fazia parte de um plano maior para causar fome entre os zumbis, para que começassem a mudar sua dieta para os cadáveres enterrados, abundantes em cemitérios humanos.

Isso é estritamente proibido, absurdo, repugnante, horrível e escandaloso. Um zumbicídio estava sendo planejado e executado silenciosamente em plena luz do dia. Os envolvidos deveriam ser identificados e punidos com toda a força e severidade da Lei Zumbi, decretou a administração central. Todos os bebês reborn antigas teriam que ser coletadas e destruídas, e sua produção seria estritamente proibida para sempre.

Após o escândalo, um jornalista levantou a hipótese de que o caso criminal original envolvendo o zumbi que mordeu um bebê reborn na sacada de seu apartamento havia sido habilmente arquitetado pelo serviço secreto. As autoridades precisavam criar a atmosfera pública necessária para pôr fim de uma vez por todas ao problema dos bonecos e bonecas com aparência humana na reserva de alimentos e para poder suprimir uma facção perigosa e poderosa de zumbis fanáticos que comiam cadáveres enterrados e ameaçavam, de dentro para fora, os alicerces e a perpetuação da civilização zumbi.

Essa notícia não provocou nenhuma reação política. Os cidadãos zumbis de bem estavam felizes e certos de que não passariam fome agora ou no futuro.”

A crise fake dos bebês reborn é o novo queridinho do jornalismo caça-cliques. Não é a primeira vez que um fenômeno sem muita relevância se tornou economicamente essencial porque foi capaz de gerar lucro em virtude do imenso engajamento emocional que despertou. Os veículos de comunicação, grandes e pequenos, correm atrás dos cliques produzidos pelos bebês reborn porque um Tsunami de dados continua a ser gerado em torno deles no Facebook e no Google. Ao que parece, o modelo de financiamento das plataformas de internet dominou e esvaziou totalmente a racionalidade jornalística.

Os websites de vendas também crescem os olhos no fenômeno. E oferecem bebês reborn de diversos modelos com preços para todos os bolsos. O capitalismo hierarquiza economicamente os consumidores, mas equaliza-os do ponto de vista psicopatológico.

A coisa toda não deixa de ser um tanto paradoxal. Afinal, as classes média e alta tem uma taxa de natalidade menor do que a classe baixa, mas os lucros totais a serem obtidos com o fetiche dos bebês reborn será imensamente maior se eles se tornarem mais populares na classe baixa. No topo da pirâmide econômica os bonecos e bonecas com aparência humana funcionam como substitutos para filhos reais que não são desejados. Na base, eles podem provocar uma redução de natalidade uma explosão de despesas do SUS com tratamentos psiquiátricos e psicológicos. Um aumento da violência conjugal deve ser esperado caso essa tendência ganhe força? A resposta a essa pergunta só poderá ser dada no futuro.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

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Last Update: 21/05/2025