“As leis da História não tem nada em comum com os esquemas pedantes (…)
Sob a pressão das necessidades externas a vida é constrangida a avançar aos saltos”
Trotsky, L. História da Revolução Russa
Se é verdade que uma história da Convergência Socialista no Brasil ainda está por ser escrita, o livro organizado pelo historiador e especialista em História Contemporânea, Edemar Fisch (Editora Sundermann), contribui – de forma sintética mas não superficial – para o entendimento do papel histórico dessa importante organização trotskista brasileira que foi crucial, tanto no processo de reorganização do movimento de massas entre final dos anos 70 e 80, quanto na fundação do PSTU em 1994.
A partir da história local de Passo Fundo, cidade polo do Noroeste do Rio Grande do Sul – cujas particularidades impressionam pela combinação de fatores que permitiram o desenvolvimento de uma das maiores regionais da CS no Brasil – nos deparamos com um rico relato de histórias memoráveis na construção de uma organização trotskista no extremo sul do país. Mais que isso, a organização atenta de memórias individuais e coletivas de uma geração que viveu intensamente a militância revolucionária na virada dos anos 70 e início dos anos 80 na cidade, nos remete à história do imenso ascenso operário, estudantil e popular que varreu a agonizante ditadura militar de 1964. Como não poderia deixar de ser, também não faltam no livro referências aos grandes debates nacionais e internacionais que fervilhavam nesse período histórico.
Mas se a história local se explica em boa parte pela profusão de novidades rebeldes que tornou possível a rica experiência passofundense, o livro indaga: o que permitiu um crescimento e influência maior da CS de Passo Fundo, que chegou a lançar candidato a prefeito pelo PT e elegeu um vereador em 1988?
Como bom marxista, o autor/organizador utiliza o método de perguntas e elaboração de hipóteses para nos envolver na busca por explicações para o crescimento e forte influência da CS na cidade, ao ponto de se tornar a principal organização de esquerda na região.
“Algo profundo acontecia”
Na década de 80 Passo Fundo contava com cerca de 150 mil habitantes, era um importante polo agropecuário , comercial e educacional. As Jornadas Nacionais de Literatura e os Colóquios de Educação Popular agitavam a cidade em debates naqueles dias de crise final da ditadura militar.
O quanto uma cidade do interior pode refletir, de forma desigual e combinada, o clima geral de um país? Quais as peculiaridades que anunciavam a gestação do novo?
Ao avançar pelas páginas, percebemos – num vai e vem proposital entre especificidades e generalizações – as costuras e coincidências de um período histórico em que as mudanças profundas no ânimo geral do movimento de massas se anunciavam no dia a dia, às vezes produzindo explosões inesperadas. Nelas, esteve presente um ainda pequeno mas aguerrido núcleo de jovens que (em sua maioria influenciados pela ala progressista da Igreja Católica – Teologia da Libertação), vieram a formar as primeiras gerações da Convergência Socialista.
Uma das mais emblemáticas explosões citadas no livro foi a “Revolta dos Motoqueiros”. Quando, no verão de 1979, um jovem motoqueiro e mecânico é morto por policiais militares, seu enterro se transforma numa sucessão de protestos em que milhares tomam as ruas da cidade, tombam viaturas e ameaçam invadir o quartel. Somente com a forte intervenção do Exército é que foi possível conter o que na época foi considerado algo inédito no país.
Poucos meses antes, perto dali, ocorria outra revolta – uma patrulha de cerca de 250 indígenas Kaingang organizava a expulsão de colonos da Reserva Nonoai. A vitória da comunidade indígena revelou, por outro lado, outro problema social que estava por explodir – a questão dos pequenos agricultores sem terra no Brasil. A partir do deslocamento das 1.000 famílias de Nonoai, acampamentos foram organizados, sendo o de Encruzilhada Natalino – no entroncamento de estradas que levam à Passo Fundo, Ronda Alta e Sarandi – peça fundamental na fundação, em 1984, do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST).
Nesses e tantos outros momentos, a juventude trotskista da CS estava presente, forjando sua formação e novos saltos na construção de uma alternativa revolucionária na cidade.
Debates profundos e histórias hilárias
Outra característica do livro é que além de trazer parte importante da história geral da CS e da Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT), ele também enuncia conceitos, análises e caracterizações cuja linguagem didática não perde a complexidade necessária à compreensão dos processos históricos.
Assim, estão em suas páginas parte dos grandes debates na esquerda que atravessaram o século XX e ainda são atuais – a natureza social dos Estados Operários, as deformações teóricas do stalinismo, o conceito de fascismo e a caracterização das Frentes Populares.
Mas ele não seria tão agradável de ler se não contasse com doses de bom humor e ‘causos’ passofundenses. Entre eles, além do constante escândalo entre alas da Igreja e lares demasiado conservadores, alguns são memoráveis e há tempo de domínio público local.
Seria apenas mais um café da manhã no lar de Cícero se seu pai não tivesse quase uma síncope cardíaca ao ler o jornal. Seu filho literalmente se desnudara em pleno palco do Salão de Atos da Universidade após um acalorado debate com anarquistas sobre revolução e repressão sexual. Desafiado pelo debatedor do coletivo teatral Ói Nóis Aqui Traveiz, não teve dúvidas. Como se diz por aqui: não dava para se mixar, tchê!
Anos mais tarde, a CS de Passo Fundo dirigia importantes sindicatos como o de comerciários e bancários, atuava em várias frentes e comandava a CUT Regional.
Tal ímpeto dirigente se alastrou também pela Câmara de Vereadores. Eleito vereador em 1988, quando a CS era uma corrente dentro do PT, Paulo R. – entre um debate acirrado e outro – pediu tempo para uma conversa com a bancada. Feito o pedido o Presidente da Câmara, surpreso, lembrou o “nobre vereador” que o único parlamentar do PT era ele, portanto não teria com quem discutir, o que foi respondido prontamente com o argumento de que ele iria orientar as outras bancadas.
Mas afinal, qual o segredo da experiência exitosa da CS em Passo Fundo? Sugiro encomendar seu livro!