A contaminação do real pelas imagens em “Saneamento Básico, O Filme”

por Wilson Roberto Vieira Ferreira

Foi relançado, com uma edição restaurada e especial, o longa brasileiro ‘”Saneamento Básico, O filme’”, de Jorge Furtado. A produção virou uma sensação na época de seu lançamento em 2007 e conta com um elenco estrelado de nomes premiados que hoje marcam o cinema e novelas nacionais, como Wagner Moura, Fernanda Torres, Lázaro Ramos e Camila Pitanga. A burocracia da administração das verbas públicas municipais coloca moradores de uma pequena cidade em uma situação inusitada: a única solução para obter dinheiro para construir uma fossa séptica e resolver o problema do esgoto a céu aberto é a produção de um vídeo ficcional sobre esse próprio problema real.  A questão é que os moradores não têm a menor noção sobre produção de um vídeo e nem o significado da palavra “ficcional”. “Saneamento Básico, O Filme” não só faz uma didática e divertida metalinguagem sobre os princípios da linguagem audiovisual, mas nos oferece uma oportunidade de reflexão sobre como a imagem tornou-se o centro da sociedade atual, como fetiche, sedução e contaminação do real ao produzir “não-acontecimentos”.

Que vivemos na sociedade das imagens, isso é um consenso desde Guy Debord com o seu livro “Sociedade do Espetáculo” que descreve o espetáculo difuso como um modo capitalista de organização social que resulta em alienação e a transformação dos homens em simples coisas por meio das mercadorias. Desde Debord, a imagem é sempre vista através do viés do parasitismo, isto é, como uma imensa fantasmagoria que não nos deixaria compreender as verdadeiras necessidades humanas e espirituais.

Imagem seria ideologia, falsa-consciência, fetiche, mentira ou manipulação.

Mas, e se distinção que subjaz neste enfoque tradicional (imagem/referente, verdade/mentira, real/ilusório) desaparecesse na sociedade do espetáculo contemporânea? Explicando melhor: e se graças à onipresença das linguagens midiáticas e da criação de um “contínuo midiático atmosférico” a imagem se confundir com a própria realidade a tal ponto que o primado das imagens deixasse de ser apenas uma fantasmagoria, mas a própria estrutura constitutiva da realidade? Ou seja, para o indivíduo as antigas distinções entre ilusão e realidade pouco importariam, já que a imagem produz efeitos tão reais quanto as demandas ontológicas do mundo real.

Complicado? Pois o filme brasileiro Saneamento Básico, O Filme apresenta uma narrativa ao mesmo tempo hilária e didática sobre essa perversa evolução da sociedade do espetáculo.

Produção da Casa de Cinema de Porto Alegre e dirigido por Jorge Furtado, o filme nos apresenta uma narrativa que se passa numa simplória e bucólica comunidade de imigrantes italianos no interior do Rio Grande do Sul. Marina (Fernanda Torres) e Joaquim (Wagner Moura) lideram uma mobilização de moradores em defesa da construção de uma fossa para abrigar o esgoto local que corre a céu aberto. 

Quando procuram a prefeitura para solicitar verbas, são informados que não há dinheiro disponível para a “rubrica saneamento básico”, mas existe uma verba disponível do governo federal para a produção de um vídeo educativo no montante de dez mil reais.

O grupo resolve produzir um vídeo de baixíssimo orçamento para usar a verba restante para a construção da fossa. A partir daí temos momentos didáticos e de engraçada metalinguagem sobre o cinema: a exigência é de que o vídeo seja “ficcional”, conceito que o grupo não tem a menor ideia do que represente. A palavra não tem o menor sentido, já que eles se confrontam com um problema real (o destino do esgoto) e Marina e Joaquim tiram o sustento de uma marcenaria cujo dono é o pai Otaviano (Paulo José). Um trabalho artesanal e pesado. Um universo real demais onde não se encaixa o termo “ficção”.

Da definição no dicionário sobre o termo, retiram o argumento da narrativa: se ficção é uma “quimera” e quimera é um tipo de monstro, resolvem fazem um filme sobre “o monstro da fossa”, cuja estória narra a morte da heroína Silene (Camila Pitanga) nas mãos de uma terrível mutação genética surgida no esgoto.

O namorado de Silene, Fabrício (Bruno Garcia) empresta a câmera e iniciam as filmagens sem a menor noção de roteiro, tomadas, edição e montagem. Mais uma vez o filme explora a metalinguagem ao explorar as dificuldades principais que os iniciantes têm ao elaborar um primeiro roteiro (problemas com princípios técnicos como descrição visual, verossimilhança, continuidade etc.). Resultado: o filme fica péssimo, muito semelhante ao resultado dos vídeos feitos por leigos em festas de aniversário.

Entra em ação Zico (Lázaro Ramos), um produtor de vídeos de festas de casamento e infantis que, maravilhado pela beleza de Silene, aceita fazer a edição e montagem o que dá um novo enfoque para o vídeo: o vídeo educativo transforma-se num pastiche de sensualidade, terror e mensagem ecológica, com efeitos de edição de gosto duvidoso que lembram os primeiros videoclipes das antigas linhas de edição lineares ou analógicas. Um mix de pornochanchada, retro e trash!

Hiper-real e o “não-acontecimento”

Em uma primeira leitura poderíamos dizer que “Saneamento Básico” faz uma crítica às leis de apoio à cultura no país. Em uma cena Joaquim se queixa que o roteiro estava cheio de “frases infilmáveis” (“uma brisa refrescante traz do vale o aroma das corticeiras em flor” – o clássico erro na descrição visual que confunde roteiro cinematográfico com literatura). Marina responde que é apenas “encheção de linguiça”, porque a portaria da lei exige um roteiro de no mínimo 10 páginas. O roteiro é um mero pretexto em busca de dinheiro oficial.

Mas há algo de mais profundo e irônico: a relação de um vídeo que se torna “Cult” (“O Monstro do Fosso”) a partir de um problema prosaico e concreto – a necessidade de uma fossa séptica. Um problema real que, para ser resolvido, exige-se que seja feito um vídeo ficcional sobre o próprio problema.

Aqui vai ser necessário incorrer em um pequeno spoiler para discutirmos a tese que sustenta essa postagem: o primado das imagens. Inexplicavelmente o filme pornô-terror-trash é aprovado para ser distribuído na rede escolar pública (“É divertido e longe da chatice dos vídeos educativos”, afirma um membro do Conselho federal de Educação), torna-se um filme cultuado e Silene vira uma estrela.  A pequena e discreta cidadezinha da Serra Gaúcha transforma-se em ponto turístico com pousada decorada com fotogramas do filme para onde os fãs irão para tirar fotos ao lado de desenhos do “monstro do fosso” e visitar a fossa, o esgoto a céu aberto promovido surpreendentemente a atração promocional ao filme.

A demanda real (a construção de uma fossa séptica) foi esquecida. A “fossa” transformou-se em “fosso” e o cheiro e o aspecto fétido do esgoto a céu aberto em “décor” para um conto de terror. O que chamamos aqui de primado da imagem é o momento em que ela deixa de ser cópia ou manipulação do real para tornar-se um simulacro que não apenas estiliza, mas substitui a própria realidade.

Em postagem anterior (veja links abaixo) discutíamos a noção de hiper-realidade em um exemplo fornecido pelo filme Fazenda do Barulho (Funny Farm, 1988) onde uma cidade inteira torna-se um cartão postal de Natal ao estilo das capas de Norman Rockwell para a revista “Saturday Evening Post” para atrair compradores incautos de uma fazenda.

Se em toda a História o homem se esforçou a captar a realidade através da imagem artística e de dispositivos técnicos como cinema e fotografia, agora, dentro do regime de produção de imagens eletrônico e digital onde a imagem parece superar a realidade, a situação se inverte: é a realidade que tenta imitar a imagem.

Quando o real se estiliza para ficar semelhante à representação que a imagem faz do próprio real temos aquilo que o filósofo francês Jean Baudrillard chamava de “não-acontecimento”: o real perderia o “tempo forte” da História (acontecimentos impulsionados pela violência e emergência dos fatores políticos e econômicos) para entrar em um estranho estado inercial: os acontecimentos devem adquirir uma natureza icônica para gravitar em torno das ondas concêntricas da mídia – jatos se chocam contra Word Trade Center em 2001 para criar não um acontecimento que faria parte de uma luta de conquista do Poder em uma guerra, mas para a criação de um fato fortemente icônico para que as mídias gravitem em torno dele, repetindo-o como simulação de História (veja BAUDRILLARD, Jean, A Ilusão do Fim – ou a greve dos acontecimentos, Terramar, 1992).

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Last Update: 04/06/2025