Do ponto de vista não só jurídico, quanto da realpolitik, era impossível punir os generais Eurico Gapar Dutra e Góes Monteiro, bem como seus muitos coadjuvantes que, em 1937, com Getúlio Vargas, derrubaram o regime constitucional de 1934 e implantaram a ditadura do Estado Novo, que nos cobraria 15 anos de arbítrio sem peias até cair de inanição em 1945.

Impossível a punição simplesmente porque, com o ditador, a caserna encarnava o poder e o exercia sobre toda a vida civil e institucional. O direito era o que ela proclamasse. Os militares eram inatingíveis, mas tão só enquanto senhores de baraço e cutelo do poder sustentado pelos fuzis. Restaurada a vida democrática, todavia, a nova ordem jurídica não se fez valer, e antigos e novos dirigentes, sátrapas e régulos, os delinquentes do Estado Novo e os líderes da reação democrática, militares e civis, se reuniram na confraternização da impunidade. Aplicou-se a regra do silêncio sobre o passado e proclamou-se a impunidade no presente e no futuro.

Similar seria a crônica da ascensão e queda da ditadura militar instaurada em 1º de abril de 1964. Como antes, e até aqui: a negociação, a conciliação em nome da pacificação dos espíritos, a concordata entre atores dos dois lados.

Em 1945, na democracia acovardada, como em 1955, no 11 de novembro, como depois de Aragarças e Jacareacanga, como em 1961, na frustrada tentativa de impedir a posse de João Goulart, os golpistas derrotados seriam consagrados pela conciliação, codinome da impunidade, mãe de todos os crimes.

Em 1979, o Congresso, então muito menos reacionário e menos corrupto que o atual, promulga a proposta de anistia enviada pela ditadura, cujo objetivo, logrado, era livrar seus agentes da punição necessária pelos monstruosos crimes cometidos. Livravam-se da lei os fardados, quando a resistência já havia sido punida com cassações, banimentos, prisões, torturas e assassinatos sem conta.

Essa política de recuo permanente, e recuo como fim em si mesmo, levaria à concordata política de 1985, mediante a qual os militares, embora rendidos pela opinião pública, ditaram os termos do abandono da cena aberta negociados com a chamada “classe política” de então.

A renúncia ao dever de ser e fazer cobra seu preço: o regime da República democratizada foi subsumido pelo regime decaído, e os militares mantiveram a curatela mais que secular sobre a vida civil e as instituições. Sua preeminência se estende à Constituinte e sobrevive nos governos da Nova República.

Em nossa história os fardados, mesmo vencidos, reescrevem o passado, ditam o presente e condicionam o futuro.

Assim, de concessão em concessão, de omissão em omissão, de conciliação em conciliação, chegamos aos planos macabros dos militares agrupados em torno do capitão Bolsonaro. Cavando a cova na qual a democracia seria encerrada, renunciamos, em todas as oportunidades oferecidas, ao dever republicano de punir os sediciosos derrotados.

O desafio, queimante como brasa viva, é político, e tão só político, e não se resolverá com a tentativa de transferir para o Poder Judiciário, como até aqui, a responsabilidade das decisões cruciais.

Estranha estratégia que abandona a política e renuncia à ação. A todas essas preocupantes ausências se soma, como agravante, a presença de um Congresso ultra-reacionário, em crise moral e ética, forcejando por levar avante um projeto de anistia que ofende a dignidade nacional e premia o golpismo.

Não é hora de “pacificar o País”, mediante mais uma conciliação com o crime. A pacificação de que o País carece é aquela que pede guerra aberta à concentração de renda, à ditadura do capital estéril sobre o trabalho e a produção que nos retém, subdesenvolvidos, na periferia do capitalismo atrasado.

Por que um governo eleito para promover o desenvolvimento se curva diante do império do ajuste fiscal a qualquer preço, mesmo ao preço de renunciar à proteção dos pobres que o elegeram?

A visão de realidade, que expurga o otimismo irresponsável, porque irreal, não esconde, porém, o registro de alguns avanços, no esforço coletivo de salvar a democracia liberal-burguesa para na sequência construir a democracia social de nossos sonhos.

Raramente o cavalo passa encilhado mais de uma vez.

Avanço político é o encontro de uma PF surpreendentemente republicana com um STF até aqui disposto a levar às últimas consequências o compromisso com a guarda da Constituição, desempenhando, nestes termos, papel extremamente diverso daquele de quando serviu de aríete ao projeto golpista que ensejou a ascensão de um facínora à Presidência da República.

Difícil, porém, será qualquer mobilização se o governo permanecer silente e aparentemente imóvel, se os partidos não tiverem condições (ou não quiserem) articular a sociedade civil, se os sindicatos não forem atraídos às ruas. E, para o bom desfecho, muito dependemos do presidente Lula. Dele a nação aguarda uma diretiva, uma palavra de ordem que não pode ser delegada, nem adiada.

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Pés de barro – Com que então, após a derrota da extrema-direita no pleito de 2022, os comandantes do Exército e da Aeronáutica foram convidados a participar de um golpe de Estado (que já contava com apoio entusiasmado do hidrófobo chefe da Marinha), por óbvio conhecendo seus agentes e, em vez de cumprir com seu dever legal e funcional de denunciar a conspiração e deter seus agentes, houveram por bem prevaricar?

Um respiro no Uruguai – A América Latina festeja a inspiradora volta do Frente Amplio ao poder, com a vitória de Yamandú Orsi sobre o candidato do presidente Lacalle Pou (Partido Nacional). Orsi venceu por estreita margem, e enfrentará um Congresso no qual dificilmente terá maioria. Ainda assim, o feito não é pequeno, num cenário regional e global de avanço da extrema-direita, de mãos dadas com o financismo liberal.

Noventa anos de uma militante singular – Luiza Erundina de Sousa, paraibana de Uiraúna, chega aos 90 anos de uma trajetória tão rica e inspiradora quanto improvável. Militante socialista de vida inteira, fez um governo histórico à frente da maior cidade da América do Sul, voltado para a habitação popular, o transporte público, a educação de qualidade e a participação cidadã – além da preservação da memória da ditadura que tanto combateu.

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Last Update: 29/11/2024