A colonização do léxico democrático pela retórica autoritária

por Eliseu Raphael Venturi

Assistimos hoje, perplexos e inquietos, à lenta e consistente colonização do léxico democrático por uma retórica autoritária que, ironicamente, opera justamente com termos centrais para a democracia: liberdade, direitos e justiça. Palavras que outrora evocavam horizontes éticos e políticos comuns foram capturadas, esvaziadas de sua densidade simbólica original e ressignificadas dentro de um quadro discursivo regressivo e excludente.

A palavra liberdade, talvez o exemplo mais emblemático, sofreu uma radical transformação semântica. De um conceito que tradicionalmente implica responsabilidade coletiva e respeito à alteridade, foi reduzida a um slogan individualista, instrumentalizada para justificar práticas discriminatórias, preconceitos sociais e a recusa sistemática do diálogo democrático. Liberdade torna-se, então, paradoxalmente, o direito de impor limites à liberdade alheia — um grito que se confunde com a recusa de escutar.

Algo semelhante acontece com direitos. O que antes evocava proteção jurídica e expansão da cidadania para grupos historicamente marginalizados, agora é frequentemente mobilizado em discursos que enfatizam supostos “direitos naturais” ou “direitos originários” descontextualizados, que operam, na prática, como forma de blindagem de privilégios. Em vez de mediarem conflitos sociais e ampliarem o campo da dignidade, os direitos tornam-se instrumentos de reafirmação de uma ordem desigual e excludente. Perdem sua função emancipatória e passam a servir como muralhas identitárias.

E a noção de justiça? A linguagem autoritária captura-a em seu viés mais punitivo e moralizador, transformando-a em espetáculo reativo e performático. A justiça deixa de ser uma busca complexa e processual pela equidade e passa a figurar como vingança pública, alimentando pânicos morais e linchamentos simbólicos. Essa justiça dramatizada corrói, em seu cerne, os princípios fundamentais da presunção de inocência, do contraditório e da dignidade humana. Substitui-se o processo pela punição, o juízo pela indignação.

Esse deslizamento semântico, no entanto, não se limita a esses três termos fundadores da experiência democrática. Outros vocábulos igualmente fundamentais vêm sendo reconfigurados de maneira a legitimar discursos autoritários, bloqueando o dissenso e interditando a pluralidade.

A verdade, por exemplo, é retirada de seu campo originário — a disputa crítica e dialógica de interpretações — e reinstalada como crença irredutível. Em vez de ser construída por meio de provas, escuta e deliberação, ela é apresentada como autoevidência, como certeza que dispensa mediações. O saber técnico, o jornalismo, a ciência e mesmo o testemunho são desqualificados em nome de uma “verdade interior” que, por não se submeter à verificação, se torna impermeável ao argumento. Assim, não se busca a verdade, proclama-se. E proclamar torna-se suficiente para calar.

O termo valores, outrora associado a princípios éticos em disputa, à construção histórica da convivência, é hoje fixado como código moral inquestionável. Apresentados como eternos e inegociáveis, os valores são retirados de qualquer perspectiva crítica e transformados em norma de conduta que distingue os “de bem” dos “de fora”. O valor deixa de ser uma aposta na convivência e torna-se senha de exclusão. Em vez de pluralizar o laço social, impõe um ideal homogêneo que recusa o diverso como ameaça.

O patriotismo, que poderia significar responsabilidade compartilhada sobre o bem comum, passa a operar como retórica de pertencimento exclusivo. Em vez de amor à pátria como território de convivência, invoca-se o país como posse simbólica de determinados sujeitos, geralmente alinhados a uma visão de mundo estanque. A pátria é mobilizada para calar vozes internas, fronteirizar ideias, expulsar a diferença. Em nome do país, destrói-se a nação como pacto.

E a tradição é invocada como se fosse pureza a ser restaurada, como se o passado existisse intacto, imune às lutas e rupturas que o constituíram. O discurso autoritário substitui a memória viva pela encenação de uma origem mitológica. A tradição se converte, assim, em ferramenta de regressão: em vez de dialogar com a história para pensar o presente, ela é mobilizada para interditar o novo, fixando normas de comportamento, identidades rígidas e modos únicos de vida.

O que está em jogo nessa disputa linguística não é apenas retórico, mas profundamente político e psíquico. Disputar a linguagem como espaço de poder simbólico significa compreender que as palavras estruturam nosso desejo, moldam nossas fantasias e delineiam os limites de nosso inconsciente político. Como bem aponta Lacan, somos sujeitos da linguagem e, portanto, a ressignificação de palavras centrais implica a transformação da própria subjetividade coletiva.

Diante disso, a hermenêutica crítica e a análise discursiva surgem como ferramentas essenciais para desvendar os jogos de poder ocultos nessas apropriações linguísticas. A tarefa urgente é desnaturalizar e desconstruir essas novas significações impostas de forma autoritária, expondo seus fundamentos regressivos e suas consequências sociais perversas. Cada termo colonizado carrega consigo uma batalha pelo imaginário, e resistir à sua captura é também resistir ao fechamento simbólico da política.

Nesse cenário, torna-se imperativo recuperar e revalorizar a densidade ética e política original dessas palavras colonizadas, resgatando seu potencial emancipatório. Que liberdade volte a significar convivência entre diferenças. Que direitos retomem sua função de proteção frente à violência estrutural. Que justiça reencontre o caminho da mediação e da equidade. Que a verdade volte a ser busca coletiva, os valores expressão plural de mundos possíveis, o patriotismo cuidado com o que é comum, e a tradição campo de memória crítica e não de dominação simbólica.

Somente assim será possível interromper o avanço simbólico e político do autoritarismo e devolver à democracia seu caráter radical e plural — no qual essas palavras não sejam instrumentos de controle, mas ferramentas de cuidado. Palavras comuns, habitadas por uma comunidade que, ao enunciá-las, reafirma constantemente sua aposta na convivência democrática e na potência da diversidade.

Eliseu Raphael Venturi é doutor em direito.

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Last Update: 16/06/2025