Kenyite Assumpção Shindo tem 30 anos e mora há dez em Wuhan, epicentro da Covid-19. Acaba de concluir um mestrado em uma universidade que recebe muitos brasileiros em razão de bolsas de estudo, cursos de língua portuguesa e linhas de pesquisa sobre o Brasil. No fim de 2019, correram na cidade boatos de que um vírus se espalharia por lá. Quando os boatos se confirmaram e a prefeitura decretou lockdown, em janeiro de 2020, Shindo, de origem japonesa, estava na Malásia. Foi de onde acompanhou a evolução da pandemia. Informava-se com a sogra, chinesa, e as autoridades locais, que instruíam os moradores a respeito de compra de alimentos, entre outras informações. Voltou para a casa após o fim do confinamento, em abril de 2020. “Nunca vi Wuhan tão vazia”, relembra, numa quentíssima noite de agosto, mês de verão na China, a saborear churrasquinho e cerveja em um bar de mesas na calçada. “Ninguém sabia ao certo o que ia acontecer, muita gente perdeu o negócio, o futuro era incerto.”

A organização e a disciplina asiáticas, teoriza Shindo, foram decisivas para Wuhan enfrentar a pandemia. Uma ­proeza numa região verticalizada, de prédios enormes, em que aglomeração é rotina. A cidade abriga cerca de 12 milhões de habitantes, o tamanho de São Paulo. O saldo de mortes quando o lockdown foi suspenso era de 1,2 mil moradores, patamar que a capital paulista atingiu em apenas duas semanas no pico da doença, em junho daquele ano. A origem do vírus não tem explicação definitiva em Wuhan. A universidade de Hubei, a do mestrado de Shindo, planeja enviar ao Brasil pesquisadores para estudos que contribuam com a resposta, segundo Deng Xiaoming, diretora do Departamento Internacional da instituição. “Eles têm certeza de que não veio daqui”, afirma Shindo. “E acham cômico como no exterior ninguem tinha ouvido falar de Wuhan. Se agora alguém sai da China e diz que é de Wuhan, gasta uma hora falando da cidade e do vírus.”

O município, um dos dez mais populosos da nação onde cabem sete Brasis, é bem mais do que o epicentro do coronavírus. Foi personagem da guerra civil e do longo processo revolucionário que desembocou na vitória, em 1949, dos comunistas de Mao Tsé-Tung, líder político que gostava de nadar no Rio Yangtzé, o maior da China, na parte em que as águas banham Wuhan. Conhecida como “a cidade dos cem lagos”, sediou em 2022, no pós-pandemia, uma conferência periódica da ONU sobre áreas alagadas. Antes do triunfo dos comunistas, havia sido capital paralela da China, abrigo dos companheiros do “grande timoneiro”. Hoje, é uma das estrelas do “socialismo com características chinesas”, polo de outra revolução em andamento no país, a tecnológica.

Hubei, estado do qual é a capital, possui 131 universidades e 2 milhões de alunos, dos quais metade estuda em Wuhan. A cidade tem ares futuristas, com táxis e ônibus sem motoristas e um monotrilho suspenso. O nome de uma zona de desenvolvimento de empresas de alta tecnologia e inteligência artificial não esconde as ambições locais: “cidade do futuro”. A Huawei, empresa privada gigante do ramo da internet 5G, tem um centro de pesquisas e desenvolvimento na zona. O Instituto de Nova Energia é uma incubadora de startups controlada pela prefeitura e pela Universidade Huazhong de Ciência e Tecnologia, foi idealizado em 2010 e saiu do papel em 2016. Sua sede, de 2014, tem design modernista. Um edifício elevado, em formato da flor de lírio, obra de um arquiteto holandês, Jos van Eldonk.

Wuhan carrega a ambição de ser a “cidade do futuro”

Cerca de 50 empresas estão instaladas no prédio. Entre as pesquisas em andamento, há uma sobre web subterrânea sem fio e outra sobre turbinas de energia eólica capazes de operar com ventos fracos. A incubadora viu surgirem drones planejados para entregar encomendas. Eles voam a baixa altitude, uns 120 metros. Foram desenvolvidos por uma companhia privada, a Hubei E-Hawk ­Technology. Um dos modelos do “­e-hawk” é amarelo, tem seis hélices e parece um disco voador com patas de aranha. Possui autonomia para 35 minutos de voo e leva até 12 quilos. Outro modelo, da mesma cor, tem o formato de um avião e potência maior: aguenta quatro horas no ar e 150 quilos de carga. São movidos a energia elétrica (baterias de lítio) e entraram em produção comercial. Aquele que imita um avião custa 150 mil yuans, a moeda chinesa, o equivalente a 115 mil reais.

Nas ruas de Wuhan, há mais de um ano circulam táxis inteligentes, sem motorista. Para cumprirem o trajeto e orientarem-se diante de situações como farol vermelho ou de alguém que atravessa a rua de repente, são equipados com sensores externos e inteligência artificial interna. O passageiro chama-os por meio de um aplicativo, o Luobo Kuaipao, do mesmo jeito que se pega um Uber. O serviço é oferecido pelo Baidu, fabricante do automóvel. A empresa, privada, é uma versão chinesa do Google. O buscador norte-americano e seu e-mail, o Gmail, não funcionam na China. Turistas e estrangeiros conseguem usar, caso suas operadoras proporcionem roaming internacional. Com infraestrutura local, não dá: o governo não deixa, por entender que o Google serve aos interesses do Tio Sam. Idem em relação ao WhatsApp, outro que tem uma versão chinesa, o Wechat, bastante popular e com mais recursos. É possível pagar contas e chamar táxis, por exemplo.

Em uma parte específica de Wuhan, existem ônibus inteligentes, construídos por uma montadora estatal, a Dongfeng, também capaz de produzir táxis autônomos. Esses ônibus são pequenos, de comprimento equivalente aproximado a dois carros. São como os táxis: sensores e inteligência artificial encarregam-se de fazê-los circular e de orientá-los. Existem paradas próprias na Zona de Desenvolvimento Industrial, região piloto do serviço.

Um monotrilho em operação desde setembro de 2023 é outro a conferir um visual futurista à cidade. Os vagões não estão sob os pés dos passageiros, mas sobre suas cabeças, “pendurados”. No piso, há placas de vidro, que permitem aos usuários observar durante o trajeto o que existe embaixo do monotrilho, a uma altura variável de 6 a 20 metros. E o que se vê são algumas áreas verdes e uns parques. A linha tem 10 quilômetros e seis estações e é a primeira do gênero na China. Outras partes do país têm feito testes para adotar a novidade. Os vagões são fabricados por uma estatal, a Optics Valley Traffic Company.

Imagem. Os moradores rejeitam a ideia de que a pandemia começou lá. O centro de IA está a todo vapor – Imagem: iStockphoto

Optics Valley é ainda o nome de uma zona de desenvolvimento industrial de alta tecnologia em Wuhan, nas imediações do lago leste. O lago é um parque, compõe o cenário bastante arborizado da cidade, uma surpresa para olhos ocidentais, acostumados a ver a China retratada como sinônimo de poluição. O secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, viajou certa vez a Pequim em um dia de céu azul na cidade. A BBC, conglomerado midiático mantido pelo governo britânico, publicou uma foto de Blinken naquela visita e nela se via o céu acinzentado. O então embaixador chinês em Londres, Ma Hui, reclamou. Enxergou a foto como uma fake news destinada a vender a imagem de uma cidade poluída. Queria que saísse do ar.

Há 15, 20 anos, Pequim tinha um ar denso, escuro, graças à poluição. A situação mudou, no embalo da Olimpíada de 2008, da tecnologia e das necessidades ambientais. As fábricas foram desconcentradas geograficamente. As ruas ganharam carros elétricos, que para emplacar levam menos tempo do que veículos de motor a combustão, e mais árvores. Os aplicativos de aluguel de bicicletas disseminaram-se, e a topografia plana da capital é um incentivo a mais. Agora no fim de agosto, os dias têm sido de céu azul e muito calor, na casa dos 30 graus. Hui, atual vice-diretor do Departamento Internacional do Comitê Central do Partido Comunista, não conseguiu convencer os britânicos a recolher a foto de Blinken. “A imagem da China no mundo via mídia ocidental não é verdade, é distorcida”, diz, a apontar a CNN, canal privado de TV dos EUA, como outra fonte daquilo que o governo chinês considera inverdades sobre o país.

A batalha pela opinião pública ocidental é uma das razões para o governo Xi Jinping ter reforçado uma empresa midiática estatal sediada em Wuhan. O Hubei Media Group, no qual trabalham 16 mil funcionários, existe há alguns anos e, em 2023, ganhou sede nova para abrigar vários serviços e um braço internacional, o HICC, cuja missão é divulgar Hubei ao mundo, com conteúdos em inglês e audiovisuais, difundidos por televisão, web e redes sociais. Quando da criação da HICC, Jinping disse que o objetivo era mostrar uma China “verdadeira, transformada e complexa”. Modernização veloz, no caso de Wuhan, onde o metrô foi inaugurado há apenas 20 anos. Não à toa, um dos ditos populares assegura que “Wuhan é uma cidade diferente a cada dia”. “O soft power é muito importante para nós e a comunicação é parte disso”, resume a chefe do gabinete internacional do estado de Hubei, Zhang Xiaomei.

No soft power chinês, Wuhan, outrora epicentro da Covid, agora é epicentro da alta tecnologia. •

Publicado na edição n° 1326 de CartaCapital, em 04 de setembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A outra Wuhan’

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Last Update: 29/08/2024