O secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken, viajou certa vez a Pequim em um dia de céu azul na cidade. A BBC, conglomerado midiático mantido pelo governo britânico, publicou uma foto do americano naquela visita e nela se via o céu acinzentado. O então embaixador chinês em Londres, Ma Hui, reclamou com a empresa, acusando-a de divulgar uma fake news destinada a vender a imagem de uma cidade poluída, e solicitou que a foto fosse retirada de circulação.
Há cerca de quinze ou vinte anos, Pequim tinha um ar denso, escuro, graças à poluição. A situação mudou, no embalo da Olimpíada de 2008, da tecnologia e das necessidades ambientais. As fábricas foram redistribuídas geograficamente, as ruas ganharam carros elétricos, que para emplacar levam menos tempo que veículos a combustão, e receberam mais árvores. Os aplicativos de aluguel de bicicletas disseminaram-se, e a topografia plana de Pequim é um incentivo a mais. Agora no fim de agosto, verão por lá, os dias têm sido de céu azul e muito calor, na casa dos 30 graus.
Hui não conseguiu convencer os britânicos a recolher a foto de Blinken. “A imagem da China no mundo através da mídia ocidental não é verdade, é distorcida”, diz ele, a apontar a CNN, canal privado de TV dos EUA, como outra fonte daquilo que o governo chinês considera inverdades sobre o país.
Xinjiang, região autônoma da China, é fonte particular de aborrecimento. Ali moram 20 milhões de pessoas, predominantemente islâmicas, umas das cinco religiões praticadas num país onde a maioria é de ateus. O caráter “autônomo” permite a existência de leis próprias e um segundo idioma oficial, além do chinês. Nas Américas e na Europa, é comum a mídia noticiar que há genocídio contra os uigures, a etnia da população local. Esse “genocídio” é o primeiro assunto apontado pela jornalista Li Yunyun, quando indagada sobre informações que vê no dia a dia profissional e considera as mais negativas ou injustas sobre a China no ocidente.
A jornalista é redatora subchefe do Centro das Américas, uma divisão do Grupo de Comunicações Internacionais da China. O grupo é parte de um esforço do governo chinês para disseminar informações pelo mundo. Informações que, ao fim e ao cabo, irradiam a visão que o país tem sobre variados temas. Com escritórios nos EUA, no México e no Peru, o Centro das Américas possui publicações inclusive em português, caso da revista digital trimestral “China Hoje”. A próxima edição terá como tema os 50 anos das relações sino-brasileiras, completados em agosto.
Outro braço midiático internacional da China é a CGTN, uma espécie de CNN, só que estatal. Sua face principal é um canal de televisão, mas o grupo produz conteúdo para redes sociais e internet também. Tudo em inglês. Em 22 de agosto, por volta das 11h da manhã, uma tela de TV dentro da redação monitorava em tempo real a audiência nas redes, que alcançava 200 milhões de pessoas, quase metade na Índia (onde o idioma oficial é o inglês) e com maior penetração entre jovens de 25 a 34 anos.
A CGTN é palco de usos interessantes da inteligência artificial. Em um laboratório na sede da emissora, situada em um prédio espelhado preto de aspecto moderno na região leste de Pequim, é possível fazer perguntas a Confúncio, filósofo chinês que viveu há 2,5 mil anos, ou então assistir à encenação audiovisual de histórias contadas na milenar literatura chinesa.
A CGTN nasceu em 2000. Já o Grupo de Comunicações Internacionais existe desde 1949, o ano da revolução comunista de Mao Tsé-Tung e de fundação da República Popular da China. “O conceito de mídia na China é marxista”, diz Ma Hui, atualmente vice-diretor do Departamento Internacional do Comitê Central do Partido Comunista da China. Esse “conceito” tem sido seguido desde 1949. Pressupõe, em linhas gerais, que o partido encara os meios de comunicação como um “quarto poder” e uma bússola que deve mostrar ao povo “a verdade” e a direção.
A China possui hoje 2,5 mil canais de radio e televisão, a empregar 1 milhão de pessoas, das quais 43% são mulheres, conforme a Administração Nacional de Radio e Televisão (NRTA, na sigla em inglês), o órgão regulador. Todos as emissoras são estatais. A atividade é monopólio do governo, embora seja permitida propaganda privada nos canais. Essa rede audiovisual proporciona acesso quase universal da população à rádio e TV: cobertura de 99% do país.
A internet tem cobertura bem próxima, 97%, segundo a NRTA. A difusão da internet começou forte pelas áreas urbanas e depois chegou à zona rural, onde vivem 800 milhões de chineses, 57% do total de 1,4 bilhão de habitantes do país. É um recurso que contribui com o sustento dos camponeses. Estes utilizam plataformas de vídeos curtos, como TikTok e Kwai, para fazer propaganda da produção agrícola e comercializá-la. Comércio que, no campo ou nas cidades, digitalizou-se rapidamente, a prescindir de dinheiro físico, graças a aplicativos como o Wechat, de conversação e pagamentos.
O Wechat é a versão local, mas ampliada, do WhatsApp, plataforma americana que não é possível acessar na China. Turistas e estrangeiros em geral conseguem usar, desde que suas operadoras ofereçam roaming. O Google, site americano de buscas, e seu serviço de e-mail (gmail) também só funcionam por lá via roaming.
O amplo alcance da cobertura de web na China é obra sobretudo da tecnologia 5G, dominado pela gigante Huawei, empresa privada vista pelos EUA como braço do governo chinês e inimigo a ser combatido. A infraestrutura de internet e aquelas atividades econômicas que têm no uso de dados como aspecto central integram o conceito chinês de “economia digital”. Esta representa incríveis 41% do PIB, de acordo com a NRTA.
A disseminação da web entre os chineses não proporciona só benefícios, causa problemas também, segundo Yan Ni, chefe do escritório de Cooperação Internacional da NRTA. Ela cita como exemplo o tempo excessivo de crianças e adolescentes na frente do celular, em média duas horas e meia por dia, a assistir principalmente TikTok e Kwai.
Para tentar remediar a situação, diz Yan Ni, a NRTA baixou regras batizadas de “modo contra o vício”. A pessoa que for criar uma conta em plataforma ou rede social precisa comprovar a idade e a identidade. Isso pode ser feito com uma foto do documento de identidade. Caso a pessoa seja menor, sua conta terá, automaticamente, alguns controles. Entre eles, limite diário de 40 minutos para assistir vídeos e impossibilidade de acessar conteúdos no horário da escola ou à noite.
Em julho, o comitê central do Partido Comunista da China aprovou uma resolução sobre comunicação. Em suma, é preciso reforçar a batalha pela opinião pública ocidental. “Está ganhando muita força nos EUA a teoria de ‘ameaça chinesa’”, diz Hui. Um exemplo dessa teoria, segundo ele, seria a decisão do Departamento de Comércio americano de investigar carros elétricos da BYD, uma montadora chinesa, para descobrir se os veículos seriam espiões disfarçados, capazes de coletar dados. Um “suspeita” semelhante à que recai sobre a Huawei.
Outro exemplo da “teoria da ameaça”: em julho, a general que comanda tropas americanas de uma unidade voltada ao hemisfério sul, Laura Richardson, defendeu um “plano Marshal” para o ocidente, a fim de conter a influência da China e da Rússia. Foi durante um dos mais importantes fóruns sobre segurança e defesa realizado no EUA, o Aspen Secutiry Forum. O “Plano Marshal” foi a injeção bilionária de verba estadunidense na Europa após a Segunda Guerra Mundial, a fim de tentar impedir a influência da então União Soviética.
“A mentalidade de guerra fria não beneficia ninguém”, diz Qu Yuhui, vice-diretor do Departamento de América Latina do Ministério das Relações Exteriores da China. Yuhui fala português fluentemente, resultado de 13 anos de serviços diplomáticos no Brasil. Uma experiência que o leva a declarar: “Ambos somos contra algumas ideias hegemônicas no mundo ocidental”. Ambos, no caso, são os governantes brasileiros e chineses.
No ano do cinquentenário das relações diplomáticas entre Brasil e China, a corrente de comércio bilateral deve alcançar 200 bilhões de dólares, de acordo com Yuhui. Para ele, as relações podem melhorar, na medida em que haja mais conhecimento das duas partes sobre o outro lado. A falta de informação, na visão do diplomata, alimenta preconceitos. Um destes seria a de a China é uma “ditadura”, pois afinal não há eleição direta para presidente. A isso, Yuhui responde: seu país é uma democracia consultiva e de processo.
Os problemas são debatidos pela população em níveis diferentes. Desde as comunidades locais, passando pelas cidades e pelas províncias [estados] até chegar ao nível nacional. “Em alguns países, a opinião pública é esquecida depois das eleições”, diz Yuhui. Que lamenta: o mundo ocidental construiu uma visão “eurocêntrica” e “estadunidocêntrica” da vida.
É contra esses dois centrismos que a China está disposta a lutar.
*O repórter viajou a Pequim a convite do Partido Comunista da China.
Para tentar remediar a situação, diz Yan Ni, a NRTA baixou regras batizadas de “modo contra o vício”. A pessoa que for criar uma conta em plataforma ou rede social precisa comprovar a idade e a identidade. Isso pode ser feito com uma foto do documento de identidade.