A transformação pela qual a China passou nos últimos 75 anos, desde a criação da República Popular, em 1949, é impressionante. Entre 1978 e 2022, o PIB chinês, a valores constantes, multiplicou-se por 68. De um país pobre, transformou-se na segunda maior economia mundial, ou primeira, se considerada a paridade do poder de compra. No mesmo período, mais 700 milhões de pessoas foram tiradas da pobreza.
No início do século 21 a China não tinha trens de alta velocidade. Hoje, nada menos que 37.900 quilômetros de linhas atravessam o país, ligando todas as suas principais cidades. Trens confortáveis cruzam todo o território a 350 km/hora. É possível ir de Pequim até quase todas as capitais de províncias em menos de 8 horas; até a maioria delas em menos de 4 horas. Em 2020, 75% das cidades chinesas com uma população de 500.000 habitantes ou mais tinham ferrovias de alta velocidade. Estima-se que a rede de trens de alta velocidade da China, vá dobrar nos próximos 10 anos, chegando a 70.000 quilômetros até 2035.
A China também está gastando centenas de milhões de dólares em tecnologia maglev (levitação magnética), que lhe permitirá operar os trens de passageiros a até 620 km/h – muito além dos atuais limites das rodas e trilhos de aço. A China domina a produção mundial de veículos e baterias elétricas, painéis solares e equipamentos para geração de energia eólica. Não fosse o bloqueio dos Estados Unidos, já estaria no estado da arte na produção de semicondutores.
O que está por trás dessa tremenda transformação que não encontra paralelo na história humana? Afora a determinação política de sua classe dirigente e o comprometimento da burocracia do estado com um projeto nacional de desenvolvimento, o fator mais importante é o desenvolvimento tecnológico.
Como observou reportagem da revista inglesa The Economist sobre o desenvolvimento tecnológico da China em sua edição de 15 de junho, “Se há uma coisa em que o Partido Comunista Chinês e os falcões da segurança dos EUA concordam é que a inovação é o segredo da superioridade geopolítica, econômica e militar.”
Não é de hoje que a China sabe que a inovação e a tecnologia são a chave para o desenvolvimento. Mesmo antes de 1978, quando iniciou seu processo de reforma e abertura, a China já investia pesado em educação e ciência. Quando Mao Tsetung morreu, em 1976, e Deng Xiaoping entrou em cena, a China já havia praticamente erradicado a analfabetismo. Antes de 1949, taxa de analfabetismo na China era de 80% e a expectativa de vida ao nascer era de apenas 35 anos. Quando Mao Tsetung morreu, o analfabetismo na China era de 6% (no Brasil hoje a taxa é de 7%) e a expectativa de vida havia dobrado para 70 anos. O número de cientistas e técnicos passou de 50 mil, em 1949, para 2,5 milhões, em 1966, e 5 milhões, em 1979. Em 1964, já sem a ajuda dos soviéticos que suspenderam a cooperação nuclear com Pequim em 1959, a China fez a bomba atômica e, em 1967, a bomba de hidrogênio.
Mesmo investindo pesadamente em ciência e tecnologia, a China, até pouco tempo, estava atrás dos Estados Unidos e da Europa em tecnologias de ponta, nomeadamente as relacionadas com as chamadas terceira e quarta revolução industrial (robótica, genética, informática, telecomunicação e eletrônica, nanotecnologia, inteligência artificial, computação em nuvem, entre outras). A China era mais vista como um imitador do que um inovador.
Foi um período em que a China se apoiou na engenharia reversa, em acordos de transferência de tecnologia, joint-ventures com empresas estrangeiras, compra de equipamentos mais modernos e inseriu-se nos elos mais baixos das cadeias globais de suprimentos, principalmente naquelas atividades intensivas no uso de mão de obra, nomeadamente a montagem de equipamentos eletrônicos com componentes importados.
Um exemplo frequentemente utilizado era o do Iphone, da Apple, montado na China, pela taiwanesa Foxxcon. Estudo da OCDE examinou as origens dos componentes para o Iphone 4 da Apple que foi montado na China, pela Foxconn. Segundo o estudo apenas US$ 6,54 (3,4%) do preço total de fábrica de US$ 194,04 foi realmente adicionado na China. Os restantes US$ 187,50 (96,6%) do custo de fábrica vieram de materiais e componentes importados da Coreia do Sul, Estados Unidos e Alemanha.
Nos últimos anos, contudo, esse quadro reverteu-se substancialmente e, embora permaneça atrás do Ocidente em diversas áreas, a China alcançou o estado da arte e até mesmo ultrapassou seus concorrentes ocidentais em outras. A China já não é mais vista como fornecedora de mão de obra barata ou imitadora. Conforme noticiou a revista Exame (29/3/2024), “Cada vez mais empresas estrangeiras estão intensificando seus investimentos em centros de P&D e inovação na China. De acordo com dados da Comissão de Comércio de Xangai, somente em 2023, 30 novos centros de P&D estrangeiros foram estabelecidos em Xangai, totalizando 561 centros de P&D estrangeiros reconhecidos em toda a cidade até o final de 2023.”
O já mencionado relatório da revista The Economist oferece alguns elementos para a avaliação desse avanço tecnológico. Conforme observou a revista, “Cientistas chineses recentemente ganharam vantagem em duas medidas de ciência de alta qualidade observadas de perto, e o crescimento do país em pesquisas de alto nível não mostra sinais de desaceleração. A velha ordem mundial da ciência, dominada pela América, Europa e Japão, está chegando ao fim.”
Conforme observa a revista, “Em 2003, Os Estados Unidos produziram 20 vezes mais desses artigos de alto impacto do que a China, de acordo com dados da Clarivate, uma empresa de análise científica. Em 2013, os Estados Unidos produziram cerca de quatro vezes o número de artigos de ponta e, na versão mais recente de dados, que examina artigos de 2022, a China ultrapassou tanto os Estados Unidos quanto toda a União Europeia (UE).”
A China agora lidera o mundo em outros parâmetros que são menos propensos a serem manipulados. Segundo a Economist “Ela lidera o Nature Index, criado pela editora de mesmo nome, que conta as contribuições para artigos que aparecem em um conjunto de periódicos de prestígio. Para serem selecionados para publicação, os artigos devem ser aprovados por um painel de revisores que avaliam a qualidade, a novidade e o potencial de impacto do estudo. Quando o índice foi lançado pela primeira vez, em 2014, a China ficou em segundo lugar, mas sua contribuição para artigos qualificados foi menos de um terço da dos Estados Unidos. Em 2023, a China alcançou o primeiro lugar.”
Ainda segundo a revista, “De acordo com o Leiden Ranking do volume de produção de pesquisa científica, há agora seis universidades ou instituições chinesas entre as dez melhores do mundo, e sete de acordo com o Nature Index. Elas podem não ser nomes conhecidos no Ocidente ainda, mas acostumam-se a ouvir sobre as Universidades Shanghai Jiao Tong, Zhejiang e Pequim (Beida) no mesmo fôlego que Cambridge, Harvard e eth Zurich. “A Tsinghua é agora a universidade de ciência e tecnologia número um do mundo”, diz Simon Marginson, professor de ensino superior na Universidade de Oxford. “Isso é incrível. Eles fizeram isso em uma geração.”
Hoje, a China lidera o mundo em ciências físicas, química e ciências da Terra e ambientais, de acordo com o Nature Index e medidas de citação. Conforme observa a Economist, “A engenharia é a disciplina chinesa definitiva no período moderno”, diz o professor Marginson, “acho que isso se deve em parte à tecnologia militar e em parte porque é disso que você precisa para desenvolver uma nação.
A pesquisa aplicada é uma força chinesa. Conforme observa a Economist, “os Estados Unidos ainda gastam cerca de 50% a mais em pesquisa básica, contabilizando os custos, mas a China está esbanjando dinheiro em pesquisa aplicada e desenvolvimento experimental.”
Tudo isso tem a ver, obviamente, com a necessidade de pôr a pesquisa científica e as universidades chinesas a serviço do projeto de desenvolvimento do país. Como a China, apesar de seu enorme PIB, é ainda uma economia em desenvolvimento sob diversos aspectos, nomeadamente quando esses números superlativos da economia são fatorados per capita, todo seu programa de pesquisa científica está fortemente vinculado ao projeto de desenvolvimento do país, traduzido nos planos quinquenais e nos diversos planos e projetos voltados para o desenvolvimento de setores específicos, nomeadamente a indústria e a agricultura. O MIC2025, o Made in China 2025, o Projeto 211 e o Programa 985 são alguns dos mais conhecidos. Como observou a Economist, o dinheiro é meticulosamente direcionado para áreas estratégicas.
O MIC2025, por exemplo, visa tornar a China líder global na produção de produtos de alta intensidade tecnológica, usando cada vez mais tecnologia produzida localmente. O Made in China 2025 tem como principal objetivo “identificar tecnologias-chave, como a IA, 5G, aeroespacial, semicondutores, veículos elétricos e biotecnologia, endogenizar essas tecnologias com a ajuda de campeões nacionais, garantir market-share em nível nacional na China” e, em última análise, capturar mercados estrangeiros em nível global.
O 14° Plano Quinquenal (2021-2025) tem objetivos muitos bem definidos em termos de desenvolvimento tecnológico da China. Como observa a Economist, visa impulsionar a pesquisa em tecnologias quânticas, inteligência artificial, semicondutores, neurociência, genética e biotecnologia, medicina regenerativa e exploração de “áreas de fronteira” como o espaço profundo, oceanos profundos e os polos da Terra. O Projeto 211 e o Programa 985 visam, por sua vez, criar universidades e instituições governamentais de pesquisa de classe mundial.
Diferentemente de outros países, como o Estados Unidos, por exemplo, onde a agenda de pesquisa, nomeadamente a pesquisa aplicada, é bastante influenciada pelas empresas (e pelo complexo industrial-militar), visando explorar oportunidades de mercado, na China, o estado tem grande peso na alocação dos recursos tanto para a pesquisa básica quanto para a pesquisa aplicada e utiliza sua capacidade para orientar a pesquisa para objetivos estratégicos definidos nos seus planos quinquenais de desenvolvimento.
Não é, por acaso, portanto, como observou a Economist, “O Partido Comunista Chinês (PCC) tornou a pesquisa agrícola — que ele vê como essencial para garantir a segurança alimentar do país — uma prioridade para os cientistas. Na última década, a qualidade e a quantidade de pesquisa agrícola que a China produz cresceram imensamente, e agora o país é amplamente considerado um líder no campo.”
Ainda segundo a Economist, “a reformulação da ciência chinesa foi alcançada com foco em três áreas: dinheiro, equipamento e pessoas. Em termos reais, os gastos da China em pesquisa e