“A soberania nacional é, talvez, a última ficção moderna que insiste em não desaparecer.”
(fragmento de uma utopia por vir)

Quando Trump decide dobrar a tarifa sobre produtos brasileiros, o gesto não é econômico, é simbólico. Em um mundo cada vez mais governado por choques, a chantagem deixa de ser exceção e se transforma em método. Estamos diante de um experimento de reconfiguração imperial. O alvo: o Brasil. O contexto: a implosão da ordem unipolar. O pretexto: proteger Bolsonaro.

Mas o movimento também remete a uma longa tradição. Desde o século XIX, os Estados Unidos exercem, sobre a América Latina, o papel de poder tutelar. Da Doutrina Monroe à Aliança para o Progresso, passando pelos golpes militares financiados pela CIA, há um padrão: quando um país do Sul tenta caminhar com autonomia, o império intervém. Com armas, com dólares, com bloqueios — ou, agora, com tarifas.

É importante nomear: estamos diante de um novo tipo de imperialismo. Não mais centrado apenas na ocupação militar, mas na dominação pelo endividamento, pelas plataformas digitais, pelas cadeias logísticas e pelas redes de desinformação. Um imperialismo que não precisa mais fincar bandeiras, porque já se embutiu na estrutura das economias periféricas e até no desejo das elites locais.

Trump representa, com brutalidade, essa nova forma de poder. Não disfarça sua lógica: puni quem discorda, protege quem se submete. O gesto contra o Brasil não visa apenas o comércio. É uma mensagem à América Latina: não se afastem da órbita. Não reforcem o BRICS. Não desafiem o dólar. Não julguem seus lacaios.

Um espelho de 1964? O imperialismo como tecnologia de contenção

Há um paralelo inevitável com 1964. Naquela época, o Brasil era visto como uma ameaça potencial à hegemonia dos EUA. Um país continental, com projeto de desenvolvimento autônomo e aproximação com o Terceiro Mundo. A resposta? Golpe, ditadura, alinhamento forçado. Hoje, não se trata de tanques nas ruas. Mas de bloqueios simbólicos, pressão econômica, desestabilização digital. O princípio é o mesmo: impedir que o Brasil se torne um elo ativo de uma ordem alternativa.

A diferença, talvez, esteja na conjuntura global. Em 1964, o mundo era bipolar. Em 2025, caminha para o caos multipolar. A Rússia sangra em guerra. A China avança em silêncio. A Europa hesita. E os EUA, sob Trump, agem com desespero. A tarifa contra o Brasil revela isso: não é força, é pânico.

A soberania nacional, nesses termos, é menos um dado e mais uma disputa. Lula, ao chamar de chantagem, acerta no diagnóstico. Mas o desafio é mais profundo. Soberania não se sustenta apenas com declarações. Requer política industrial, autonomia energética, capacidade tecnológica e enraizamento popular. E tudo isso exige enfrentamento.

É aqui que o impasse se agrava. Porque sustentar uma política externa altiva exige uma política interna coerente. Não se pode enfrentar Trump lá fora e ceder ao agronegócio aqui dentro. Não se pode denunciar o neocolonialismo e manter o Brasil submisso às agências de rating. A soberania é indivisível.

Enquanto isso, a China assiste com atenção. Não reage com fúria, mas com cálculo. Para Pequim, cada gesto de Trump é uma peça no tabuleiro. O Brasil é estratégico: líder regional, membro dos BRICS, exportador de alimentos e minerais. Mas é também frágil. Uma potência mutilada por suas elites.

Se Lula sustenta o enfrentamento, a China investirá. Não por altruísmo, mas por geometria. Mas se hesitar — se buscar conciliação onde é preciso ruptura — o sinal será de fraqueza. E o jogo muda. A multipolaridade é uma promessa, não uma garantia.

Os Estados-nação sobreviverão?

No fundo, a questão que se insinua por trás da crise não é apenas econômica ou diplomática. É existencial. Os Estados-nação sobreviverão ao século XXI?

A resposta, por enquanto, é ambígua. De um lado, a globalização neoliberal esvaziou os poderes do Estado, subordinando tudo à lógica do capital transnacional. De outro, os povos seguem demandando proteção, identidade, soberania. A pandemia, a guerra, o colapso climático: tudo isso recolocou o Estado como figura central.

Mas que tipo de Estado emergirá? Um Estado apêndice das corporações, ou um Estado popular, reconstruído desde baixo? Um Estado policial, voltado à repressão, ou um Estado democrático radical, capaz de reorganizar a produção e o desejo?

O Brasil, neste momento, é laboratório. Pode ser vanguarda ou refém. Pode ser linha de frente de um novo projeto ou figurante de uma nova dominação.

Conclusão: ou o gesto, ou o abismo

Trump age com brutalidade porque sabe que o tempo do império se esgota. O bolsonarismo se agarra a ele como náufrago a um bote furado. E o Brasil se quiser existir como sujeito histórico precisa parar de negociar sua existência como concessão.

Lula tem diante de si uma chance rara: transformar a crise numa convocação. Substituir o discurso da estabilidade pelo da soberania. O momento exige gesto. E o gesto, agora, é a recusa. Recusar a chantagem, recusar a conciliação fraca, recusar o falso realismo que sacrifica o futuro em nome da governabilidade.

Como lembra Perry Anderson, há épocas em que o centro desaba — e a história se move pela margem. Essa pode ser uma dessas épocas. E, se for, não basta sobreviver: é preciso disputar o rumo.

O que está em jogo não é o preço da soja, ou da laranja. É a possibilidade de existir como povo, como nação, como projeto.

Instagram: @_marcio_cabral_

Original em A chantagem de Trump e os labirintos da soberania

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Last Update: 21/07/2025