(*) Erika Kokay

Gosto de pensar que o traço mágico de Lúcio Costa desenhou mais do que uma cidade em forma de avião, e sim uma borboleta: bela, leve e fruto de uma metamorfose. Patrimônio Cultural da Humanidade, Brasília tem no seu povo, no seu céu e no seu plano urbanístico os seus maiores patrimônios. Todos eles correm risco com a atual política que governa o Distrito Federal.

O plano de desenvolvimento urbano aprovado pela Câmara Legislativa do Distrito Federal traz consigo uma contradição semântica. Ao invés de preservar, faz o oposto, submetendo a cidade à lógica da especulação imobiliária. É a continuidade da política de governar ao contrário, e que fez do Ministério do Meio Ambiente uma trincheira anti-ambientalista e a Fundação Palmares ser presidida por alguém que atacava a população negra.

Ao se curvar a interesses particulares e não ao interesse público, o plano enfraquece o que Brasília tem de mais especial e onde reside a sua maior potencialidade. Um grande trunfo para a nossa cidade é a aposta na preservação de nossa arquitetura e urbanismo, combinada com a valorização do direito à cidade e do respeito ao meio ambiente.

Não podemos ser a capital da dengue, do feminicídio, das filas nos hospitais e nem ferir o urbanismo ético, humanista e democrático de Lúcio Costa. Ético, por priorizar os interesses coletivos em contraposição aos interesses empresariais, humanista e democrático, ao fazer dos vazios verdadeiros espaços de compartilhamentos e de encontros- sem paredes que impeçam o direito de ir e de vir. O novo plano se contrapõe a esse legado ao interferir ferozmente na escala bucólica, podendo acarretar em impactos ambientais, como a piora da qualidade do ar e da permeabilidade do solo. A permissão para a construção de hotéis ainda mais altos impacta na mobilidade urbana, no trânsito, contribui para novas ondas de calor, para o aquecimento global e prejudica a visão do céu de Brasília, tão exaltado por todos e todas que moram ou que passam por aqui.

Os novos empreendimentos na margem do Lago Paranoá irão restringir, ainda mais, o acesso da população à orla, que, segundo o Plano de Lúcio Costa, deveria “permanecer intacta”, “sem bairros residenciais”, para o “benefício de toda a população”. Pude levar ao Governo Federal a ameaça que isso representa para uma área de fragilidade ambiental, mas também à segurança nacional, pela proximidade com os palácios do Alvorada e Jaburu.

A aprovação do plano pode ter impactos cruéis na revisão do Plano Diretor de Ordenamento Territorial. Igualmente ameaçada pela especulação imobiliária, a Serrinha do Paranoá- que abastece boa parte da água limpa do lago- pode virar um grande condomínio de luxo. É a mesma sanha que atacou as Águas Emendadas, as populações indígenas que resistem no Noroeste, e que contribuiu para que o Cerrado se tornasse o bioma mais desmatado do Brasil em 2023. A tragédia no Rio Grande do Sul nos mostra que a política do bem viver, em contraposição à lógica do lucro e da destruição ambiental, não pode ser uma utopia, e sim uma necessidade histórica urgente.

Condicionar a política de preservação aos interesses privados coloca em risco o honrado título de Patrimônio Cultural da Humanidade. A Unesco já alertou que as medidas aprovadas no plano têm impacto “alto” e “crítico” nos fatores que credenciam nossa capital a ter esse título.

Nós já temos o cenário propício para uma cidade que respeite as pessoas e a cidadania. Uma cidade margeada por árvores, que nos oferece generosamente verdadeiros tapetes de flores. Onde os ipês roxos parecem não querer dar espaço para a chegada dos ipês amarelos, e tentam ficar mais um pouquinho com uma malemolência deliciosa. O progresso é caminharmos na direção de uma cidade mais integrada, sustentável, garantindo mobilidade e incentivando a ocupação dos espaços públicos para a livre manifestação de tudo aquilo que nos faz gente.

O caminho é sermos mais Brasília. Sermos uma Brasília melhor- acessível, inclusiva, humana- e que valorize o que nos faz especial. Nosso céu, que nos encanta diariamente com explosões monumentais de cores- em paisagens que deveriam ser preservadas- não pode ser arranhado pela cobiça e pelos espigões de concreto.

Lutemos, portanto, contra a política do contrário para que a palavra “preservação” da sigla PPCUB não tenha que vir sempre acompanhada de aspas e, principalmente, para que nenhum arranha-céu risque os nossos sonhos pela construção de uma cidade verdadeiramente livre e democrática. Sonhos, que assim como as borboletas, foram feitos para voar.

(*) é deputada federal (PT-DF)

 

 

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Última Atualização: 15/07/2024