
A pesquisa Quaest, divulgada hoje, confirma com clareza o que há muito se sabia. Por mais que a liturgia do cargo imponha ao presidente da República certa compostura institucional, a crueza rapinante das decisões do Parlamento exige contenção. Contenção que só pode ser exercida pelos caminhos democráticos disponíveis, pelos expedientes legais ao alcance do Executivo: a judicialização da política.
A frase proferida ontem por Lula — “Se eu não for ao STF, não governo” — não é metáfora aleatória, tampouco desabafo retórico. É a descrição literal de um impasse histórico: um governo eleito para promover justiça social e desenvolvimento sustentável apenas consegue exercer suas funções constitucionais quando protegido pelo escudo do Poder Judiciário, diante da sanha destrutiva da maioria parlamentar.
A Quaest expôs uma realidade que os eufemismos políticos preferem ocultar: o Parlamento brasileiro, amplamente alinhado à direita e à extrema-direita, converteu-se na trincheira mais sólida e mais bem remunerada da ordem dos privilégios. Uma fortaleza articulada, impulsionada pelos algoritmos das big techs e absolutamente alheia às necessidades e aos anseios da população. Os dados revelam mais do que um conservadorismo ideológico difuso: evidenciam uma máquina legislativa operando com afinco para sabotar o Executivo, desmontar as iniciativas redistributivas e perpetuar a submissão do país à lógica da plutocracia.
Com 88% dos deputados defendendo a ampliação da isenção do Imposto de Renda, na proposta que, à primeira vista, soa progressista esconde-se, na verdade, um truque contábil engenhoso e cruel: o benefício real, tal como formulado, não alcança os assalariados pobres, mas favorece profissionais de rendas elevadas. Uma engenharia fiscal cuidadosamente disfarçada de benevolência. A Câmara, que se autodefine majoritariamente como de direita, reage com repulsa a qualquer tentativa de instituir um sistema tributário verdadeiramente progressivo; aquele que ousa tocar nos super-ricos, nas heranças faraônicas, nos dividendos acumulados, nos fundos exclusivos e nas offshores dos bilionários.
Não surpreende, portanto, que 70% dos deputados se oponham ao fim da escala de trabalho 6×1. É natural: muitos deles jamais souberam o que é bater ponto, enfrentar o transporte público em horário de pico ou negociar horas extras para pagar a conta de luz. Defender jornadas menos extenuantes seria, para essa casta congressual, uma afronta direta à lógica do lucro máximo. Afinal, o suor alheio continua sendo o combustível da riqueza de poucos.
Segundo a mesma pesquisa, a Câmara já aposta numa vitória da oposição em 2026. Isso não é um diagnóstico eleitoral. É torcida organizada, com recursos, projetos e estratégias. Nesse contexto, o antigo slogan do governo federal — “União e Reconstrução” — soa anacrônico, quase pueril. A Câmara está distante da construção de qualquer pacto nacional; ao contrário, investe deliberadamente na divisão do país e no desmonte meticuloso dos instrumentos do Estado de bem-estar social. O que nos separa já não é mera divergência política, é um abismo moral.
As coalizões fisiológicas, outrora toleradas em nome da dita “governabilidade”, hoje atuam como forças abertamente antagônicas ao projeto nacional-popular. Não há conciliação possível entre quem deseja taxar banqueiros e quem é financiado por eles. Não há interlocução entre quem defende políticas públicas universais e quem lucra com a mercantilização da saúde, da educação e da previdência. A retórica da governabilidade ruiu diante da crueza das agressões institucionais. A governança, hoje, depende da Justiça, não do Parlamento.

O que se revela, despido de disfarces, é a luta de classes — não como abstração acadêmica, mas como realidade concreta que nos espezinha. Ela está viva, documentada em percentuais, declarações e votações. A elite congressual atua com fervor na defesa dos interesses de seus pares e trava guerra aberta contra os direitos dos trabalhadores, dos pobres e dos excluídos. Compõem essa casta privilegiada, tão zelosamente defendida pela direita, desde os antigos mamadores-gerais da República — agronegócio, rentistas, especuladores, grandes empresários — até os novos financiadores do bolsonarismo: a indústria armamentista, as igrejas pentecostais, as bets e o crime organizado.
Não estamos diante de um debate ideológico convencional. Trata-se de um conflito estrutural entre dois projetos inconciliáveis: de um lado, o sonho de um país soberano, justo e solidário; de outro, a manutenção de uma colônia neoliberal, espoliada por seus próprios representantes eleitos. Não será pelas mãos deste Parlamento que nascerá uma reforma tributária justa, um mercado de trabalho digno, um Brasil onde viver com dignidade não seja um privilégio hereditário.
A brutalidade dos números e dos fatos empurra a sociedade para um único caminho possível: ou o povo enfrenta, nas ruas e nas urnas, essa casta política blindada pelo dinheiro e pelo cinismo, ou sucumbiremos, pouco a pouco, a um regime parlamentar de exclusão que rouba dos pobres até o direito à existência.
Reclamada há anos pelas esquerdas, a oportunidade de luta em campo aberto finalmente se apresenta. O inimigo tem nome, cargo, imunidade parlamentar e plano de carreira. E já deixou claro, sem disfarces, de que lado está. O que está em jogo não é apenas um governo, é o futuro do país.
É hora de mostrar aos endinheirados — que somam menos de 1% da população — que as ruas pertencem aos 99% que recusam continuar sustentando seus privilégios.