A banalização da vida das crianças negras: em memória de João Pedro Mattos Pinto

por Helena de Lima Souza

Em 18 de maio de 2020, quando enfrentávamos a quarentena referente à pandemia da COVID-19, o jovem João Pedro Mattos Pinto (2006-2020) foi brutalmente assassinado em uma operação conjunta da Polícia Federal com a Polícia Civil no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo – RJ. Ao longo desses 4 anos, os familiares e parte do movimento social, em especial o movimento negro, vem acompanhando o caso e pedindo justiça por João Pedro.

Mais de 60 tiros de fuzil foram disparados na casa em que se encontrava o jovem e outras crianças, que estavam apenas brincando, nenhum tiro partiu de dentro da casa, apenas de fora para dentro. Em diferentes depoimentos ao longo do processo, os policiais chegaram a alegar que atiraram na casa, porque era uma casa com piscina. Os pais Rafaela (professora) e Neilton (motorista) estavam trabalhando no momento do assassinato e ao longo dos últimos anos dedicaram a vida para pedir o mínimo, ou seja, justiça. Na esperança de que situações como essas não pudessem se repetir.

Cabe lembrar que um ano antes da morte de João Pedro, o então governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel, sobrevoava comunidades cariocas e atirava junto com os policiais, seus atos eram divulgados em suas redes sociais, seu lema de campanha e palavra de ordem em diálogo direto com as forças policiais era “atira na cabecinha”. Mas, parte da sociedade brasileira entende “tal lema” como conforto, apoio e segurança e ainda pensam inocuamente é necessário o enfrentamento ao crime organizado, pois a violência está demais.

Essa mesma parte da sociedade meses depois, assistia indignada George Floyd dizer “I can´t breathe”, pensavam que barbárie ainda bem que não é aqui, gente que gosta de dizer que vidas negras importam e desejam ansiosamente se dizerem antirracistas, gente que se indigna com o racismo sofrido pelo Vinny Jr. na Espanha e comemora a condenação do racista lá na Europa, mas não lembra que Vinny Jr e João Pedro nasceram no mesmo lugar e têm idade muito próxima. Essa mesma gente dorme tranquila com um jovem negro assassinado a cada 23 minutos nas periferias do Brasil, e não liga para a absolvição dos assassinos de João Pedro.

Como seria bom dizer que o problema do Brasil é a questão racial, mas não é, está muito além disso, pois somos uma nação racializada que banaliza e naturaliza a morte de crianças negras e padece do complexo de Miguel Otávio:

Definimos o complexo de Miguel Otávio como a capacidade racional ou não, consciente ou inconsciente, do adultocentrismo banalizar os riscos aos quais as crianças estão submetidas, ao ponto de morrerem de modo gratuito, estúpido, violento, irresponsável e negligente. Tal complexo também diz respeito às desigualdades sociais herdadas de um sistema colonial, que testa, o tempo todo, a vida passiva de morrer. No caso, e quase que majoritariamente, mães, pais e responsáveis negros; habitantes da periferia; servidores de mão de obra barata, instável, precária, arriscada e sujeita aos caprichos de seus “senhores” veem suas filhas e seus filhos ceifados por balas perdidas, violências policiais discricionárias, racismos reificados e eletivos, descasos dos poderes públicos e supressão de oportunidades sociais equânimes. Acresceríamos ainda o seguinte detalhe: o complexo de Miguel Otávio, numa ideia, concerne à morte facilmente evitada que, todavia, efetiva-se no jogo da “normose” necropolítica (SOUZA; CARVALHO, 2021).

Somos uma nação racializada em que a Juíza Juliana Bessa Ferraz Krykhtine absolve sumariamente os assassinos de João Pedro, quando a família e os movimentos sociais lutaram por 4 anos para que o caso fosse a júri popular. Cabe destacar que mesmo com o Ministério Público tendo feito a reconstrução do crime em realidade virtual que concluiu que o tiro que matou João Pedro saiu da arma de um dos policiais. Essa mesma juíza que não reconhece um laudo pericial diz ser necessário ter apego a racionalidade dos fatos.

 Se você conseguiu ler até aqui, sem pensar em parar e dizer não suporto lidar com isso … talvez, a sua pergunta seja, ainda há o que fazer? A resposta é: Sim! Pois, ainda cabe recurso, e o ministério público o fará, mas a questão aqui é o nos perguntarmos o quão confortável estão os policiais Mauro José Gonçalves, Maxwell Gomes Pereira e Fernando de Brito Meister e a juíza Juliana Bessa Ferraz Krykhtine e tantos outros Wilson “Witzels” que naturalizam a morte de crianças jovens negros todos os dias. O quanto de razão há na naturalização da morte de crianças negras? Até quando?

Profa. Dra. Helena de Lima Souza – professora adjunta da Escola de Filosofia Letras e Ciências Humanas e Pro Reitora Adjunta da Pro Reitoria de Assuntos Estudantis e Políticas Afirmativas da Unifesp.

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Última Atualização: 12/07/2024