Adolf Eichmann sendo julgado. Foto: The Huntington/Flickr

Por Washington Araújo

Desde o fim de semana, venho refletindo sobre o que escrever para esta coluna de terça-feira, 2 de setembro de 2025. Uma percepção insistente emergiu: há paralelos inquietantes entre o julgamento de Adolf Eichmann, em 1961, e o processo contra Jair Bolsonaro, que hoje atinge seu momento decisivo no Supremo Tribunal Federal. Apesar do abismo temporal, ambos os casos expõem como o mal pode se manifestar em figuras aparentemente comuns.

Esses processos desafiam a justiça e a História a confrontar a banalidade do mal. O julgamento de Eichmann, imortalizado por Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém: Um Relato sobre a Banalidade do Mal, revelou a frieza de um burocrata que viabilizou o Holocausto. Já o processo contra Bolsonaro, acusado de planejar um golpe de Estado após as eleições de 2022, escancara as fragilidades da democracia brasileira.

Arendt, cobrindo o julgamento para a The New Yorker, sugeriu que atos atrozes não requerem vilões monstruosos, mas indivíduos obedientes, desprovidos de reflexão ética. Eichmann, tenente-coronel da SS, coordenou a logística do extermínio de milhões de judeus. Seu julgamento foi mais que uma punição; tornou-se um marco global contra os horrores do nazismo.

Bolsonaro, político de extrema-direita, é acusado de conspirar para subverter a democracia, em meio a uma polarização intensa. O julgamento atual não abrange sua conduta durante a pandemia de Covid-19, que vitimou mais de 720 mil brasileiros e foi investigada pela CPI da Covid, finalizada em outubro de 2021. Ainda assim, paralelos com a teoria de Arendt são inevitáveis, especialmente no negacionismo e na indiferença e completa falta de empatia que marcaram seu governo.

Retrospecto do caso Eichmann: a burocracia do extermínio

Adolf Eichmann foi capturado pelo Mossad em maio de 1960, na Argentina, onde vivia sob identidade falsa. Seu julgamento começou em 11 de abril de 1961, no Tribunal Distrital de Jerusalém, sob a presidência de Moshe Landau, com os juízes Benjamin Halevi e Yitzhak Raveh. Acusado de crimes contra o povo judeu, crimes contra a humanidade e crimes de guerra, ele enfrentou 15 imputações baseadas na Lei de Punição dos Nazistas e Seus Colaboradores de 1950.

Como peça central da Solução Final, Eichmann organizou a deportação de cerca de 1,5 milhão de judeus, gerenciando trens e recursos com precisão burocrática. O processo durou oito meses, com mais de 1.500 documentos e depoimentos de mais de 100 testemunhas, incluindo sobreviventes do Holocausto. Eichmann defendeu-se alegando obediência a ordens, sem ódio pessoal – uma postura que Arendt viu como a essência da banalidade do mal: um homem movido por ambição, não por fanatismo, incapaz de refletir sobre suas ações.

Em 11 de dezembro de 1961, foi declarado culpado. Após apelação rejeitada, foi executado por enforcamento em 31 de maio de 1962. Transmitido globalmente, o julgamento buscou não apenas punir, mas educar sobre os perigos do totalitarismo. A comunidade internacional aguardava um veredito que fizesse justiça às vítimas do Holocausto. Israel via o processo como afirmação de sua memória coletiva, embora alguns temessem um tom vingativo. Arendt criticou o foco nos crimes contra judeus, em detrimento da humanidade, mas destacou como o mal floresce na ausência de pensamento crítico.

Retrospecto do caso Bolsonaro: a trama golpista de 2022

Jair Bolsonaro no canto direito de foto, em close, sério
O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) – Reprodução

O inquérito contra Jair Bolsonaro começou após os tumultos pós-eleitorais de 2022, quando perdeu a reeleição para Luiz Inácio Lula da Silva. Investigações da Polícia Federal, supervisionadas pelo STF, apontaram uma conspiração para reverter o resultado democrático. O ápice foi a invasão de 8 de janeiro de 2023, quando apoiadores de Bolsonaro atacaram o Congresso, o Planalto e o STF, em atos que lembraram o assalto ao Capitólio nos EUA.

Evidências incluem mensagens criptografadas, reuniões secretas e tentativas de envolver as Forças Armadas. O julgamento inicia-se hoje, 2 de setembro de 2025, em sessão virtual da Primeira Turma do STF, com ministros como Alexandre de Moraes, Flávio Dino, Cármen Lúcia, Luiz Fux e Cristiano Zanin. O veredito é esperado para 12 de setembro, com penas que podem chegar a 43 anos de prisão.

Bolsonaro é julgado com oito réus do “núcleo crucial”: Alexandre Ramagem, ex-diretor da Abin; Almir Garnier Santos, ex-comandante da Marinha; Anderson Torres, ex-ministro da Justiça; Augusto Heleno, ex-GSI; Mauro Cid, ex-ajudante de ordens; Paulo Sérgio Nogueira, ex-Defesa; e Walter Braga Netto, ex-Casa Civil e Defesa. Eles enfrentam acusações de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático, golpe de Estado, organização criminosa armada, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.

O cenário global acompanha com preocupação, em meio ao avanço do autoritarismo. Organizações como Anistia Internacional e ONU esperam que o julgamento fortaleça a democracia latino-americana.
No Brasil, a polarização é evidente: apoiadores de Bolsonaro denunciam perseguição política, enquanto opositores demandam justiça por ameaças à democracia. A defesa nega envolvimento golpista, alegando falta de provas concretas. Tudo isso em voto em fantásticas fábricas de notícias falsas e busca de emparelhamento das investigações.

Provas contra Bolsonaro: um exame das evidências

Minuta do golpe revisada: Mauro Cid, em delação, afirmou que Bolsonaro revisou e simplificou uma minuta para declarar estado de defesa, anulando as eleições, em reuniões no Palácio da Alvorada. Mauro Cid gravou dezenas de horas em seu processo de “delação premiada”. A grande maioria dos fatos por ele confessados e que tiveram a participação ativa do ex-presidente Bolsonaro foram confirmadas com provas robustas.

Reunião com embaixadores: Em julho de 2022, Bolsonaro convocou diplomatas ao Alvorada, disseminando alegações infundadas contra as urnas eletrônicas para desacreditar o sistema eleitoral.

Reuniões com Forças Armadas: Em 7 de dezembro de 2022, Bolsonaro apresentou a minuta golpista ao Alto Comando do Exército, conforme testemunho de Marco Antonio Freire Gomes, que destacou sua ilegalidade.

Transmissão contra urnas: Em julho de 2021, Bolsonaro usou uma live no Planalto para atacar o sistema de votação, sem provas, minando a confiança no processo democrático.

Manipulação de relatório militar: Mensagens mostram que Bolsonaro adiou a divulgação de um relatório das Forças Armadas sobre urnas para alimentar desconfiança pública.

Plano ‘Punhal Verde Amarelo’: Documentos indicam que Bolsonaro sabia de planos militares, incluindo monitoramento de autoridades e tramas contra Lula, Moraes e Alckmin, em dezembro de 2022.

Outras evidências incluem o uso indevido da Polícia Rodoviária Federal para obstruir eleitores e mensagens confirmando a organização criminosa, reforçando a liderança de Bolsonaro.

Distinções nas acusações: do genocídio à subversão democrática

Eichmann respondeu por crimes de extermínio em massa, integrando a máquina nazista que matou milhões. Sua responsabilidade direta no Holocausto era inquestionável. Bolsonaro é acusado de tentar subverter a democracia, sem envolvimento com genocídio no contexto do golpe. Suas ações pandêmicas, investigadas pela CPI da Covid, finalizada em 2021, estão em outros inquéritos, não no julgamento atual.

Pontos de conexão: aplicando a banalidade do mal

Holocausto em campo de concentração no ano de 1944. Foto: Wikimedia Commons

Em 1961, o julgamento de Eichmann foi um marco contra o totalitarismo, com Israel como guardião da memória do Holocausto. Hoje, o processo de Bolsonaro é um teste para a democracia, com receios de que a impunidade inspire autoritarismos. Organizações como Human Rights Watch e ONU veem no julgamento uma chance de reforçar o Estado de Direito.

A teoria da banalidade do mal conecta ambos os casos. Eichmann, um burocrata sem remorso, agiu por obediência cega. Bolsonaro exibiu indiferença semelhante durante a pandemia, que matou mais de 720 mil brasileiros. Seu negacionismo – promovendo cloroquina contra evidências científicas – e declarações como “e daí?” diante de mortes revelam desprezo pelas vítimas.

A crise de oxigênio em Manaus, em janeiro de 2021, com mortes por asfixia, reflete a negligência de seu governo. Ele vetou lockdowns, incentivou o trabalho durante quarentenas e promoveu motociatas em picos pandêmicos, como em junho de 2021, reunindo multidões sem máscaras. Esses atos transformaram a presidência em um veículo de indiferença, ecoando a falta de reflexão de Eichmann.

O julgamento atual, porém, foca no golpe. Arendt alerta que o mal banal surge da ausência de responsabilidade ética. Bolsonaro, como Eichmann, alega não ter feito nada, mas as evidências apontam uma conspiração contra a democracia.

Que lições podemos aprender com esses julgamentos?

Esses julgamentos vão além da justiça; são advertências contra a complacência.

Eichmann revelou que o mal pode surgir em sistemas desumanizantes. Bolsonaro, com sua retórica divisiva e ações que ameaçaram a democracia e a saúde pública, mostra o mal em gabinetes modernos.

No Brasil, ainda marcado pela pandemia e pela polarização, o veredito de 12 de setembro de 2025 pode afirmar que a lei prevalece. Arendt nos ensina que o mal banal floresce na indiferença.

À sociedade cabe, com memória e vigilância, enfrentá-lo, enquanto a História emite seu julgamento final.

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Last Update: 01/09/2025