Gostaríamos de produzir um diálogo com relação ao debate programático do PSOL. Acreditamos que o debate acerca da nossa elaboração programática que coloca uma polarização entre “sistema” e “antissistema” precisa ser melhor discutido. Este debate tem sido feito em termos abstratos demais.
As palavras “sistema” e “antissistema” acabam tendo conotações diferentes a depender de quem as usa. Não aparenta ser um debate objetivo e material, mas sim elucubrações pós-estruturalistas onde a ideia de “sistema” vai assumir um contorno subjetivo, relativizável.
Dizemos isso porque, se formos verdadeiramente objetivos, essa polarização desaparecerá e poderemos voltar a debater o programa a partir do que realmente está colocado na realidade.
Sendo assim, primeiro vamos afixar uma compreensão: o “sistema” é, na verdade, a democracia burguesa.
Dizemos isso porque Chantal Mouffe, uma pós-estruturalista, propõe que a esquerda adicione em seu programa, em contraposição ao populismo de direita, palavras de ordem contra a “oligarquia”. Ela está correta quando diz que a esquerda precisa deixar claro quem é o inimigo e pensar seu programa a partir daí, assim como faz a direita quando coloca os universitários, as travestis, a corrupção etc. como seus alvos.
Está correta também quando aponta como o neoliberalismo fez com que o debate político fosse esvaziado, transferindo a mentalidade das massas para um estado ainda mais alienado de supervalorização do indivíduo, da identidade, e do mundo privado (a “liberdade” dos liberais, entendida como direito à propriedade privada) em detrimento do conceito de democracia enquanto participação coletiva na decisão sobre os rumos da sociedade.
O problema na concepção apresentada por ela é falar de “oligarquia” no abstrato, como se a história e a política fossem apenas um jogo de palavras, uma disputa entre discursos sobre quem de fato controla o poder político, não havendo um lado certo. Esse é o problema do pós-estruturalismo. Sabemos muito bem quem controla o poder político. Essas pessoas possuem nome, rosto, telefone, CEP e, principalmente, conta bancária.
Há também o problema inerente em advogar por um “populismo” de esquerda. Ainda por consequência de ter referenciais pós-estruturalistas, é notória a forma com que o próprio termo “populista” fica mal definido, podendo ser qualquer coisa. Nesse escopo, se encaixaria perfeitamente na ideia de populismo o ideal programático do assistencialismo petista que surgiu após a virada para ganhar a eleição de 2002.
Vivemos em um país onde a ampla maioria da população está brutalmente atrasada no quesito ao acesso a itens essenciais. Nessa toada, não podemos nos deixar levar por um debate programático raso e superficial. Quando o governo anuncia medidas tais como a diminuição da conta de luz ou a redução na inflação de alimentos, alguns quadros na esquerda, incluindo muitos em nossas fileiras, ficam surpresos ao não presenciarem um aumento na satisfação das massas. São chamados imprecisamente de “economicistas”.
Os primeiros quatro governos petistas foram capazes de implementar alterações no orçamento público muito mais avançadas do que as implementadas no seu quinto governo e mesmo assim vimos o levante de 2013 acontecer, isso muito antes de podermos falar em um ascenso ideológico da extrema direita. Estas, sim, são políticas que fazem jus à pecha de populismo, sendo reivindicadas inclusive por setores da direita e extrema-direita. Obviamente, quando se inaugura uma ponte, por exemplo, qualquer político fará fila para receber os aplausos.
O petismo notoriamente alterou qualitativamente para melhor a vida da população brasileira. Mas o que ocorre é que os parâmetros do período anterior à redemocratização eram próximos à barbárie, especialmente nas regiões mais afastadas dos grandes centros urbanos ou nas periferias desses centros. Naquela época, a visão católica de um povo miserável e o apelo caridoso ao combate à fome realmente correspondiam à realidade.
O petismo pode lograr a si ao menos a capacidade de ter inserido as camadas mais pauperizadas no lógica do consumo, algo que fazia parte de sua estratégia de fortalecer a própria burguesia brasileira. Mesmo FHC adotou medidas de ampliação dos serviços básicos e melhoria das condições de vida das camadas populares.
O ponto é que se tratam de medidas remediadas, que nem merecem o nome de reformas. As falas de Lula dizendo que cresceu comendo calango não surtem tanto impacto assim na consciência média das massas. As pessoas querem se livrar do patronato, da superexploração.
Querem melhorar de vida questionando a posição em que se encontram na estrutura da divisão social do trabalho. Por isso são cooptadas pelo discurso do empreendedorismo. O acesso, mesmo que precário, a bens de consumo populares já faz parte da realidade do brasileiro.
Fizemos essa breve digressão para concluir que “populismo” não é o melhor termo para se referir à postura programática a ser adotada pela esquerda, especialmente entre nossas fileiras. A ideia de programa de transição segue mais correta e atual que nunca. O capitalismo está completamente consolidado no Brasil, mesmo que à sua maneira caboclizada.
Isso não significa que devemos adotar um purismo programático, teórico ou estratégico. A política, em grande medida, é o terreno daquilo que funciona e não daquilo que está escrito nos livros ou que se transmite a partir de dogmas. O debate que trazemos aqui diz mais respeito a uma questão de concepção do que sobre regras apriorísticas sem qualquer respaldo na prática diária.
Por fim, pelo outro lado da moeda, queremos trazer uma reflexão de que o problema do debate abstrato demais também pode afetar nossas fileiras, por exemplo, quando agitamos como nossos inimigos o “fascismo” ou a “extrema direita”. Não está errado, está corretíssimo. Mas para a imensa maioria da população, essas palavras não remetem a nada concreto.
Para nós, elas fazem todo o sentido do mundo porque passamos por um extenso processo de formação para entender o que significam. Mesmo assim, ainda há uma lacuna a ser preenchida uma vez que, na maior parte do tempo, temos dificuldade em identificar “fascismo”, “extrema direita” e “burguesia”. Muito embora haja de fato uma separação, ela só importa no âmbito abstrato da análise política da correlação de forças entre as frações dominantes e suas diferenças estratégicas.
Entretanto, no geral, elas devem, sim, ser identificadas.
AOC vem, por exemplo, denunciando o caráter oligárquico do governo Trump em alianças com os magnatas das big-techs. No Brasil, o programa pelo fim da escala 6×1 tem sido capaz de mostrar de que lado a extrema direita efetivamente está.
Colocados os nossos problemas com relação à visão abstrata de “antissistema” e à visão superficial de “populismo”, queremos nos voltar para uma tendência específica que vai no sentido oposto: a defensiva permanente.
Está correto dizer que, numa situação defensiva, não faz sentido adotarmos um programa de ofensiva permanente. Entretanto, estamos vivendo uma forte crise política, as pessoas estão profundamente insatisfeitas com a democracia burguesa. Se não tomarmos cuidado, podemos ser aqueles que, no frigir dos ovos, sucumbem à falácia do mal menor.
Em outras palavras, podemos acabar entrando em um modus operandi que funciona na seguinte lógica: “a democracia burguesa está ruim, mas olha só como o fascismo é pior”; ou então “o governo Lula está ruim, mas você se esqueceu do que era o governo Bolsonaro?”; ou ainda “o Haddad não é tão neoliberal assim, já viu o que era o Paulo Guedes?”. Não são frases incorretas ou inverídicas. Mas o fato é que, dentro de uma perspectiva estritamente defensiva, acabamos nos tornando verdadeiros advogados do diabo.
Todos no Brasil sabem dos casos de corrupção do petismo, por exemplo. Quase ninguém acredita que Lula era inocente. A população é mais ligeira do que pensamos. Não estão errados em acreditar que Lula ao menos sabia dos esquemas, embora não seja possível demostrar.
Novamente, expor os esquemas de corrupção foi uma forma encontrada pela burguesia de se rebelar contra a direção petista e enfraquecer os setores que de alguma maneira aceitavam ser dirigidos pelo Partido dos Trabalhadores.
O que poucos sabem é que o maior número de corruptos punidos pela Lava-Jato eram nada mais, nada menos, que do PP e PL, ambos partidos dos quais Bolsonaro fez parte por muito tempo. O mais irônico nessa história é que os mecanismos para o combate à corrupção foram fortalecidos pela própria presidenta Dilma. Mas a burguesia foi muito mais ardilosa e soube se aproveitar bem dos fatos políticos que se seguiram.
Pois bem, após mais essa digressão, seguimos dizendo que, quando nos identificamos, mesmo que parcialmente, com a democracia burguesa e suas falhas, podemos, em certos momentos, reforçar nas parcelas insatisfeitas da população o sentimento de que somos parte do problema e não a solução, a alternativa.
Essa é (ou era) uma tendência (não uma regra) real, embora não represente nossa concepção uma vez que temos como objetivo central exigir que o governo seja parte ativa e tome posições na luta de classes, o contrário do que Lula tem feito desde que assumiu seu terceiro governo.
Além do mais, se ficarmos somente na defensiva, não conseguiremos apresentar o que verdadeiramente queremos como alternativa à barbárie do capital, a não ser de maneira abstrata e propagandista. Estaremos apenas reagindo a ataques, deixando que o terreno da disputa política seja completamente pautado pelos nossos inimigos.
Ninguém entre nós deseja algo parecido, mas acabamos tendendo a essa lógica quando dizemos, por exemplo, que devemos organizar as mulheres porque o fascismo vai atacar os direitos reprodutivos, ou os negros porque vão atacar as cotas, ou as LGBTs porque vão atacar a diversidade sexual etc. Não poderiam ser frases mais corretas. Entretanto, são também, em certo sentido, quase tautológicas.
Nosso programa deve ser feito com vistas a evidenciar o caráter autocrático da burguesia brasileira. Deve ser feito com vistas a provocar, instigar, incitar ao máximo a consciência das massas, deixando nossos inimigos sem saídas fáceis, sem a possibilidade de esconder seus mais profundos interesses e objetivos. Devemos trabalhar com a ideia de que saltos de consciência não são impossíveis, evitando nos limitar apenas à consciência real e atrasada da classe trabalhadora. Ou seja, devemos trabalhar com o humanismo, com a utopia do impossível no possível, do consciente no expontâneo.
Não é uma tarefa fácil, não existem fórmulas mágicas nem milagrosas. Muitas mediações serão necessárias nesse percurso. Entretanto, mais que tudo, nossa meta deve ser arrancar o direito ao nosso futuro das mãos de quem realmente nos domina. É isso que está colocado para nossa geração.
A realidade que se impõe
Felizmente, algo mudou. O pleito de 2026 já está acontecendo e a direita aparenta estar preparando o terreno para lançar seu próprio candidato com vistas a fazer avançar seu programa de diminuição do orçamento dos serviços públicos para encaixá-los nas contas do arcabouço fiscal.
O governo, por sua vez, certamente percebeu tal fato e sinaliza uma relocalização na disputa contra a burguesia. Nossa própria localização junto a essa nova realidade que se abre não poderia estar mais correta.
A própria base do governo já aderiu ao que estamos aqui chamando de programa de transição, embora alguns erroneamente chamem de “antissistema” ou “populismo”.
Triste momento este para José Dirceu ao ter afirmado recentemente que a base eleitoral do petismo é de centro-direita. Fato é que a palavra de ordem “congresso inimigo do povo” ascendeu como uma explosão nos corações e mentes da classe trabalhadora. Hugo Motta recebeu o apelido cômico de Hugo Não-Se-Importa.
Sendo assim, parte do que aqui está escrito se torna relativamente supérfluo. Na maioria das vezes, a realidade concreta faz com que divergências políticas desapareçam. Talvez esse seja o caso.
Um verdadeiro aceno de esperança e uma prova do caráter promissor da unidade enquanto o único caminho possível para nos posicionarmos na luta contra as investidas reacionárias da autocracia brasileira.
Esses acenos já foram testados pelo petismo em outros momentos, não resultando em alterações estratégicas e, portanto, se comprovando ineficazes. Está havendo uma mudança qualitativa no programa petista. A pergunta que resta, portanto, é: essa mudança se consolidará?
Ter Edinho na presidência do partido não facilita nosso trabalho. Entretanto, a palavra final será dada pela luta de classes. O quanto o próprio petismo estará disposto a armar uma nova estratégia dependerá do acúmulo de forças até a próxima eleição. O importante, neste momento, é não deixar a peteca cair.