A arte de ensinar tergiversando
Observações à aula de Jornalismo dada por Lígia Maria
Nossas observações vão em itálico
Sérgio Buarque de Gusmão – Jornalista
“MEMES
Lygia Maria
Mestre em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.
O jornalismo precisa voltar à sua tradição
Reação de parte da imprensa aos memes sobre Fernando Haddad é um acinte à checagem e à liberdade de expressão
Começa daí. É o Jornalismo inteirinho ou parte da imprensa que precisa voltar ser correto e honesto?
“Um famoso aforismo atribuído ao compositor Gustav Mahler diz que “tradição não é o culto das cinzas, mas a preservação do fogo”. O jornalismo precisa voltar à sua tradição. Refiro-me à checagem dos fatos e à defesa da liberdade de expressão.
A reação de parte da imprensa aos memes satíricos sobre o ministro da Fazenda escancara essa necessidade.
Como agora, às vezes a sociedade patina em conjunturas tão caóticas que ao debatedor convém esclarecer se é a favor da energia elétrica (há quem tenha medo de choques e explosões…). Na atual, a clivagem da liberdade de expressão forja partidarismos. Se é um truísmo afirmar que todos têm direito a manifestar livremente sua opinião, é igualmente óbvio que calúnias, injúrias e difamações nelas contidas, antes de expressarem um julgamento pessoal soberano, constituem crimes tipificados no Código Penal.
A opinião garantida pela liberdade de expressão deve obrigatoriamente basear-se em fatos. A ninguém é dado o “direito” de dizer “na minha opinião, os judeus é que perseguiram os nazistas”.
“Em programa da GloboNews, por exemplo, jornalistas disseram que o fenômeno é “coisa de profissional” e que, segundo fontes do governo, ’tem dinheiro investido”.
Em qual programa? Dizer onde se deu o “fato” noticiado/comentado é uma das tradições mais venerandas do Jornalismo. E quais jornalistas disseram isso? Como em geral os programas da GloboNews têm a participação de três ou mais, todos disseram ao mesmo tempo ou foi um só – e aí a autora usou outra fraude do mau jornalismo: citar anonimamente um para englobar todos. E mais: se não fossem jornalistas, seriam nomeados? Não os identificando, evita-se o confronto corporativo com colegas que se está a criticar.
“Mas aplicativos de memes e de inteligência artificial são acessíveis e facilmente usados por quem não tem formação técnica. A propagação massiva é a essência dos memes.
Tal facilidade de acesso não exclui os amadores, em rigor, exceções, atuando como meros repassadores. Tais memes jorram de grupos financiados para divulgar calúnias e injúrias a bordo de invencionices. O inquérito do ministro Xandão demonstra isso a mancheias.
“Como a clássica orientação dada aos alunos em faculdades de jornalismo: se uma pessoa diz que está chovendo e outra diz que está ensolarado, seu trabalho não é citar as duas, mas abrir a janela e descobrir quem diz a verdade. Ou seja, é preciso desconfiar das fontes sempre e checar dados e informações para respaldar afirmações com evidências.
O exemplo da “clássica orientação” é indigente. Um repórter não precisa que uma fonte lhe diga se está chovendo – exceto se estiverem em lugares diferentes. E dificilmente pode testemunhar, ele mesmo, se o fato está acontecendo ou aconteceu. O Jornalismo noticioso é essencialmente reconstituição. Há casos em que o repórter ou comentarista colhe testemunhos antagônicos, e a única atitude possível é ouvir outras fontes. Mas resta o problema da interpretação. Foi ou não pênalti? Se uma fonte diz que sim, outra, não, a solução é publicar os diversos relatos ou entendimentos do fato polêmico.
Afirmar que “é preciso desconfiar das fontes sempre e checar dados e informações para respaldar afirmações com evidências” é pitaco de amador que nunca entrou numa redação. Se os jornalistas tiverem de seguir esse roteiro perfeccionista, trabalho de Sísifo, desconfiando “sempre” das informações recolhidas, e sobretudo checá-las (com outras fontes a serem checadas?), o jornal não sai no dia seguinte.
“Assim fez reportagem da Folha. Ao consultar plataformas que monitoram fluxos de conteúdo nas redes sociais, constatou-se que o fenômeno surgiu de modo espontâneo, atrelado a notícias sobre aumento da arrecadação de impostos.
Aqui há evidente má-fé a contraditar a alegada defesa da verdade. Os memes satíricos eram infamantes e injuriosos, simplesmente mentirosos. Se se basearam na taxação das “blusinhas”, ignoraram de propósito que o aumento da arrecadação federal não se se deveu a majoração de impostos. E que a reforma tributária encaminhada pelo ministro irá reduzir a carga tributária do país dos atuais 34% para 26,5%.
“Para piorar, houve jornalista que sugeriu “identificar a origem e proibir esse tipo de operação”. Tal proposição é um acinte à atividade da imprensa, que nasce no século 18 pautada pela defesa ferrenha da liberdade de expressão. Sem contar seu entrelaçamento histórico com a sátira política, por meio de caricaturas e charges que apontam falhas de figuras de autoridade.
“… houve jornalista…” De novo, quem? O mais tosco manual manda identificar as fontes, exceto para protegê-las de retaliações, e o pecado da omissão é mais grave se há transcrição entre aspas.
“O jornalismo é a chama que ilumina os fatos e aquece a democracia. Seus profissionais têm o dever de preservá-la, ainda mais no cenário de produção intensa e caótica de informação das redes sociais e de polarização política que incentiva ataques, tanto da direita quanto da esquerda, à imprensa. É um disparate fornecer munição contra si mesmo.
Bravo! Mas a afirmação grandiloquente é, como um palíndromo, sentença que se pode ler ao contrário. O jornalismo também pode ser, e frequentemente o é, a labareda que incinera a verdade e esquenta a perversão dos cascateiros (mentirosos, no jargão do ofício).
Se esse último parágrafo serve à reflexão de alguém, mais bem serviria à autora. É mesmo um despautério apontar o canhão contra a correção e a exatidão, a pretexto de defendê-las.
Oxalá ela não se ofenda. Fiquemos com a magnifica lição do poeta e estadista John Milton (1608-1674), na Areopagítica: “Deixemos que a verdade e a falsidade se batam. Quem jamais viu a verdade levar a pior num combate franco e livre?”
Pra isso deveriam servir os jornais…
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