No dia 5 de janeiro de 2025, o jornal O Globo destacou uma “boa notícia” para o governo Lula: após quase dez anos, o Brasil voltou a ser considerado “um país de classe média”, com 50,1% das famílias apresentando renda acima de 3,4 mil reais, posicionando-se nas classes A, B e C.
Esse fenômeno, porém, não é inédito. E é fundamental revisitar a história recente para compreender as complexidades dessa ascensão social. Durante a transição do governo Lula para o de Dilma, o Brasil vivenciou o auge das políticas do lulismo: crescimento econômico aliado à distribuição de renda, que reduziu conflitos políticos e construiu um consenso nacional, promovendo a inclusão dos mais pobres sem prejudicar a renda dos mais ricos.
Lula deixou o governo com mais de 90% de aprovação, enquanto Dilma governou, nos dois primeiros anos, com popularidade superior a 70%. Essa hegemonia tão consistente alimentou a tese de que o Brasil teria se tornado um “país de classe média”. Naquele período, milhões de brasileiros deixaram as classes D e E para integrar a classe C, enquanto as classes A e B mantiveram sua proporção. Assim, consolidou-se a narrativa de um país predominantemente de classe média.
São muitos, contudo, os problemas dessa visão – e todos foram debatidos na época, embora sem ressonância no governo. O primeiro equívoco é confundir renda intermediária com pertencimento à classe média. Em um país tão desigual como o Brasil, muitos integrantes da classe C têm condições de vida mais próximas aos estratos mais pobres do que aos mais ricos. Essa era a realidade da maioria que ascendeu socialmente no período.
Além disso, ser de classe média no capitalismo ocidental, especialmente no capitalismo periférico, envolve um conjunto de valores, comportamentos, padrões de consumo, códigos e preconceitos que não apenas são absolutamente inacessíveis para pessoas de renda intermediária, como se tornam, muitas vezes, opressores e excludentes.
Um exemplo emblemático é o ensino superior público. À época, políticas como as cotas e a expansão universitária iniciaram a democratização do acesso. Contudo, mesmo hoje, essa democratização encontra limites. Jovens da “nova classe média” enfrentam desafios distintos dos da classe média tradicional. Enquanto este último, geralmente branco e residente em áreas bem estruturadas, conta com suporte familiar e experiências que o preparam para a vida acadêmica, o jovem da “nova classe média”, muitas vezes negro e periférico, lida com infraestrutura precária, necessidade de contribuir com a renda familiar e barreiras sociais como a violência policial, que ceifa milhares de vidas da juventude negra periférica brasileira.
Além disso, a identidade de classe média é frequentemente associada a valores individualistas, consumo e meritocracia. Ao exaltar o “feito” de ser um país de classe média, governos de esquerda podem inadvertidamente reforçar valores neoliberais – que, mais cedo ou mais tarde, se voltarão contra o projeto da esquerda.
Naquele período, uma narrativa alternativa buscava enfatizar o surgimento de uma nova classe trabalhadora, reconhecendo sua coletividade e os desafios persistentes das desigualdades sociais. Valorizavam-se os laços familiares, comunitários, de trabalho e fé (já impulsionado pelo crescimento evangélico), bem como dinâmicas de solidariedade que poderiam potencializar um projeto de desenvolvimento nacional voltado ao combate às desigualdades.
Mais de uma década depois, o governo corre o risco de repetir o erro equiparar a ascensão da classe C com uma chegada a classe média. Eleitoralmente, isso pode até ser eficaz, mas pouco contribuirá para mudanças na correlação de forças políticas, seja no curto prazo, em relação ao Congresso, seja no médio prazo, no enfrentamento à extrema-direita. É fundamental promover uma ascensão que vá além da picanha e da cerveja aos finais de semana, mas também em uma vida melhor em todos os aspectos. Isso só será possível por meio de mobilizações baseadas na solidariedade e no combate às desigualdades: não apenas como uma melhoria individual, mas como um avanço coletivo.