As identidades são parte constitutiva do ser humano em resposta a uma gama de relações sociais. É elemento objetivo nascido da subjetividade e, portanto, vinculado à materialidade. A identidade é algo que se constrói ao longo da vida, inacabada e buscamos sempre nos identificar com o entorno e com o outro para alcançar o que nos constitui enquanto indivíduos e indivíduos em sociedade. A identidade, um produto histórico-social, faz com que nos identifiquemos enquanto um eu.

armadilha da identidade, importante contribuição do americano Asad Haider sobre o identitarismo, é um fenômeno que se coloca quando a política se reduz à mera afirmação de identidades estanques e idealizadas, não as contextualizando historicamente e sem um horizonte de transformação contra as estruturas que orientam a forma hierarquizada de como cada identidade específica é configurada. A armadilha identitária tem funcionamento à direita e a uma esquerda antirrevolucionária, como afirma Sílvio Almeida. 

A direita constitui sua política identitária com conceitos cristalizados de raças puras, identidades brancas absolutas, ultranacionalismo xenofóbico, entre outros exemplos que consagram no Brasil, a identidade masculina, burguesa, branca e heterossexual com status de neutra e geral. Identitários são sempre os outros. A direita liberal pauta também uma maior inserção de setores historicamente oprimidos pelo consumo, garantindo produtos e mercados específicos.

Parte da esquerda cai na armadilha de negar as identidades, construindo uma visão economicista de classe trabalhadora distante da realidade do povo que é atravessado por uma série de preconceitos direcionados a determinadas identidades. Assim, confunde-se política identitária/identitarismo com a análise histórica e materialista das identidades que formam o povo. 

Domenico Losurdo aponta alguns discursos identitários como “populistas”. Cita o exemplo da “nostalgia da plenitude originária” em que identidades são exaltadas a partir de um idealizado passado bucólico, sem contradições e superior ao estado atual com o qual aquela dita identidade é tratada. Porém, a realidade é que nem sempre o passado é superior ao atual. Antes do capitalismo, por exemplo, era hegemônico um sistema estamental.

Outro exemplo de “populismo” é a “transfiguração dos oprimidos” em que determinadas identidades são idealizadas, na sua forma “pura”, na posição de uma dada excelência moral, sem qualquer contradição. A felicidade na pobreza contra a vida vazia na riqueza, a constituição de uma negritude única “original” contra a ganância da natureza do homem branco (como se cada uma dessas categorias não devesse explicações sociológicas historicizadas), a natureza de paz e sensibilidade do gênero feminino contra a violência natural do homem. Muitas são as tentativas de construir uma arché pura da identidade, um exercício vão se não contextualizado historicamente.

No entanto, quando utilizada no sentido de questionar a estrutura de valores que constroem a sua própria opressão, as identidades podem ser instrumentos legítimos de emancipação. O que torna um movimento emancipatório não é necessariamente o tema de sua mobilização. O mais importante é sua capacidade de atrair massas e de possibilitar sua organização, buscando construir uma sociedade na qual as pessoas se governam e controlam suas próprias vidas.

Haider aponta ainda que a análise materialista não pode constituir modelos esquemáticos como a famosa lupa da Santíssima Trindade ou de uns óculos trifocais de “raça, gênero e classe”, já que estas nomeiam relações sociais inteiramente diferentes, e elas em si são abstrações que precisam ser explicadas em termos concretos. Assim, enquanto abstrações, para compreender determinados fenômenos sociais, cada recorte precisa ser realizado na prática, no caso concreto, no contexto histórico, compreendendo suas interseccionalidades sem, no entanto, apresentar hierarquias ou apriorismos entre cada um dos recortes. 

Ao negar a lente trifocal, reafirma-se que o método de análise da realidade para os marxistas é o materialismo histórico dialético. De forma vulgar, alguns marxistas caem no erro de absolutizar a questão de classe para compreender toda a realidade e com algum esforço somam a questão de gênero e raça e, por meio desta operação quase matemática, afirmam que são capazes de explicar qualquer coisa. Não são.

O PCdoB e sua formulação sobre as identidades

A questão da emancipação tem centralidade na formulação do movimento de mulheres do PCdoB chegando a nomear nossa corrente no movimento feminista: o emancipacionismo. A emancipação das mulheres passa, segundo Loreta Valadares, pelo processo de se emancipar dos atributos culturais socialmente impostos às distinções de sexo que estabelecem um sistema de valores e práticas que vão criar uma distinção (hierárquica) do masculino para o feminino. 

Quando nosso movimento feminista clama pela emancipação do gênero, ele reafirma a divergência clara das posições identitárias que atribuem características estáticas ao que é ser mulher. Discordamos da senadora Damares Alves que diz que meninas usam rosa e meninos usam azul e desses atributos impostos ao que é ser mulher. Questionamos o sistema de valores que busca atribuir a um gênero limitações, pois sabemos que as mulheres podem tanto escolher o rosa como qualquer outra cor. 

O movimento de luta contra o racismo do PCdoB também formula no sentido da emancipação dos processos de racialização:

“A luta pela superação dos agravos do racismo que recai sobre as populações negra e indígena no Brasil está intimamente ligada à luta pela desracialização das relações socioeconômicas (…)” (Conf. de Combate ao Racismo do PCdoB 2023)

A justificativa desta formulação passa pela análise de como o processo de racialização se deu em sua história concreta, em especial a partir dos séculos de escravidão de indivíduos racializados. A racialização foi feita de fora para dentro: foram os brancos, com seus objetivos econômicos coloniais, que racializaram as populações de outros continentes. Quando os portugueses chegaram ao Brasil, eram diversas as formas de organização das populações que aqui habitavam. Foi o homem branco que criou o “indígena” para justificar a escravidão. O mesmo podemos dizer sobre como o colonialismo europeu agiu na África, criando a raça dos negros/pretos, já que a complexidade de como se organiza a África e cada uma de suas diferentes nações e agrupamentos, não nos permite dizer que são uma coisa só.

A própria identidade do branco é também construção histórica. Para além de negar por óbvio o conceito biológico de raça, basta uma análise da história para constatar as diversas diferenciações internas entre os brancos. Os discursos de ingleses sobre a “raça” irlandesa são um bom exemplo. Um típico branco brasileiro, ao chegar nos Estados Unidos, pode ter sua “raça” questionada e ser tratado como um não-branco latino.

Ao afirmar que os processos de racialização são históricos, o PCdoB não busca negar que os marcadores raciais são elementos que estruturam as relações sociais. As dores são reais e essas dores reais constroem identidade e podem ajudar na organização do povo. O que se diz é que a ideologia da raça é produzida pelo racismo e não o contrário. Em um movimento emancipador, o indivíduo/coletivo racializado que sente na pele o que é ser negro, transforma o sentido da racialização, organizando a sociedade contra um sistema que cria as diferenças. Abre-se a possibilidade, como diria Lélia Gonzalez, de construir a identidade sem a camisa de força hiperidentificatória do colonizador.

Portanto, a análise marxista do PCdoB das identidades, rejeita tanto o essencialismo estático do identitarismo quanto a negação economicista das opressões. O caminho emancipatório está na luta contra as estruturas que produzem e perpetuam hierarquias, articulando as demandas específicas a um projeto histórico de transformação social. 

Leonardo Guimarães é Secretário de Movimentos Sociais do PCdoB-RJ

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Last Update: 28/07/2025