Quando o algoz se diz vítima: a apropriação perversa do léxico democrático
por Eliseu Raphael Venturi
Nos últimos anos — e nos últimos dias — assistimos a uma curiosa e perigosa inversão semântica: uma postura política crescente, no Brasil e em outros contextos, passou a reivindicar os termos da democracia como se fossem seus.
Essa reivindicação fica deslocada porque as bases de tal postura política são refratárias e contrárias às conquistas democráticas. Composta por uma mistura de autoritarismo emocional, reacionarismo performático, populismo revanchista e conservadorismo insurrecto, sem contar o moralismo punitivista e o antiinstitucionalismo seletivo, as posturas de tal visão política comportam-se de modo perverso e oportunista, segundo um cálculo preciso.
Clama por “liberdade de expressão” ao disseminar desinformação. Denuncia “perseguição política” ao ser responsabilizada por ataques delirantes às instituições. Nomeia de “exílio” a fuga depravada das consequências legais. Essa apropriação dos significantes democráticos, longe de ser um ato incoerente ou ingênuo, é a expressão mais refinada e eficiente do novo autoritarismo.
Um autoritarismo que não chega com farda ou censura explícita, mas se apresenta como vítima — ferido, silenciado, injustiçado. A estratégia é clara: ao ocupar o lugar discursivo da minoria oprimida, o autoritarismo busca desarmar as resistências simbólicas, invertendo os polos do debate público.
A linguagem se tornou campo de guerra. A política já não se decide apenas em votos, mas nas palavras que usamos para nomear o mundo. Termos como liberdade, justiça, escuta, povo ou verdade deixaram de ter sentido unívoco — estão sob constante disputa.
A postura política supra mencionada compreendeu que não precisa negar os valores democráticos: basta esvaziá-los de conteúdo e reinscrevê-los em outra lógica. Liberdade vira salvo-conduto para discurso de ódio. Censura passa a designar qualquer tentativa de responsabilização. Perseguição política transforma-se em retórica de fuga. O termo permanece, mas seu corpo simbólico é colonizado por uma nova função.
Não se trata de um equívoco retórico, mas de uma estratégia: o projeto autoritário fala a linguagem dos direitos para destruí-los por dentro. E esse movimento se encarna também subjetivamente.
O sujeito autoritário contemporâneo não se apresenta como opressor — mas como traído, incompreendido, cancelado. Há, nesse discurso, uma forma específica de gozo: o gozo de se dizer vítima enquanto se detém o poder. O gozo da contradição performada.
A retórica da vitimização torna-se blindagem moral. Não é fragilidade — é licença para revanche. A máscara de vítima autoriza tudo: ataque, silenciamento, negação da responsabilidade.
Esse jogo só se sustenta com o apagamento da memória histórica. A postura política supra mencionada precisa reescrever a história para que sua apropriação semântica funcione.
O torturador vira herói. O exilado é retratado como ameaça. O ditador torna-se “homem de ordem”. A vítima de censura é redescrita como “doutrinador ideológico”. Ao inverter os marcos da memória coletiva, o projeto autoritário dissolve os vínculos entre linguagem e história. E qualquer tentativa de reconstituir esses vínculos é acusada de “revisionismo ideológico”.
A consequência é o esvaziamento do campo simbólico: tudo passa a parecer relativo, intercambiável, desconectado do arquivo. A democracia, porém, exige memória. Sem ela, não há responsabilidade — só manipulação.
Responder a esse cenário exige mais do que indignação. A reação moral ao ressentimento apenas o alimenta. A resposta precisa ser discursiva e ética.
Primeiro, é preciso disputar os significantes: não ceder os termos, mas reconduzi-los à sua densidade histórica. Liberdade não é qualquer coisa. Exílio não é metáfora. Perseguição exige contexto. Em segundo lugar, evitar a simetria: não cair no espelho invertido da linguagem do ódio. Democracia não se defende imitando seus detratores.
Em terceiro lugar, expor a estrutura da farsa — não o indivíduo que a encena. Nomear a operação simbólica, não o “hipócrita” pontual. Em quarto lugar, produzir memória como resistência: sustentar o tempo longo contra o curto-circuito do discurso performático.
E, por fim, escutar — não como aceitação, mas como estratégia de desvelamento. Escutar até que o próprio discurso do outro revele sua lógica de apagamento.
A disputa em curso não é apenas ideológica — é sobre a própria possibilidade da linguagem como espaço comum. Quando os termos da democracia são capturados pelo autoritarismo, o que está em jogo não é apenas o significado de uma palavra: é a existência mesma do comum.
A linguagem democrática não existe para que todos digam qualquer coisa — ela existe para que o dizer de um não anule a existência do outro. Quando alguém fala “liberdade” para justificar o apagamento de um outro corpo, de uma outra voz, não está falando de liberdade — está enunciando domínio com outra roupa.
A tarefa de hoje não é apenas desmascarar a mentira, mas desmontar o campo simbólico que permite que ela pareça verdade. E isso exige paciência discursiva, escuta ética e um compromisso inegociável com a vida em comum.
A democracia, afinal, não é feita apenas de instituições — é feita de linguagem viva. E essa linguagem precisa ser disputada, resgatada e reinaugurada, dia após dia.
Eliseu Raphael Venturi é doutor em direito.
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