O presidente do Brasil enfrenta um mundo em transformação.
Luiz Inácio Lula da Silva sobre Trump, Putin e uma ordem global em colapso.
Por Jon Lee Anderson, para a New Yorker.
Há pouco tempo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva me recebeu em seu gabinete em Brasília e contou que tivera um sonho perturbador. Nos últimos meses, Lula completara 79 anos e passara por uma cirurgia de emergência para tratar uma hemorragia cerebral. Embora parecesse saudável quando nos encontramos, estava em um clima reflexivo. Ele sonhara na noite anterior com seu antecessor José Sarney, hoje com 94 anos. Sarney é uma figura querida no Brasil: nos anos 1980, tornou-se o primeiro presidente a assumir após duas décadas de ditadura militar. “No sonho, ele veio até minha casa e dormiu no chão, e de manhã eu preparei o café para ele”, disse Lula. “Acordei preocupado, pensando se algo havia acontecido com ele.”
Sarney estava bem, mas não foi por acaso que Lula se preocupou com um símbolo da democracia. Ele me disse que todo o sistema ocidental parecia ameaçado. “A democracia com a qual aprendemos a conviver após a Segunda Guerra, o funcionamento do multilateralismo como papel importante nas relações entre Estados, o respeito à diversidade, à soberania de cada país, isso está se desfazendo”, disse. “O que virá depois, não sabemos.” Toda a ordem mundial criada após a guerra, em grande parte pela intervenção dos Estados Unidos, parecia prestes a colapsar. “Achávamos que estávamos criando uma sociedade mais civilizada, mais solidária, mais humana”, disse. “O resultado é pior. É como se houvesse uma lâmpada e, ao abrir a tampa, saíssem pessoas más.”
Lula construiu sua carreira com princípios firmemente de esquerda, mas sempre se orgulhou de dialogar com variados líderes. Agora, confessou estar desconcertado com o avanço de populistas de direita e antiglobalistas. Na Assembleia Geral da ONU, em setembro, tentou organizar uma reunião de presidentes progressistas. “Quando sentamos para fazer a lista, percebi que não havia mais progressistas!”, disse. Na América Latina, restam poucos: Gustavo Petro, da Colômbia, Gabriel Boric, do Chile, e Claudia Sheinbaum, do México. “Para não deixar o encontro muito pequeno, mudei ‘progressistas’ para ‘democratas’ e assim pude convidar Biden, Macron e outros”, explicou. “Fizemos dois encontros desde então para discutir como criar uma narrativa que justifique a importância da democracia como o melhor sistema já criado para a convivência da humanidade — um sistema com regras, onde todos têm direitos e o direito de um termina quando invade o do outro. Isso funcionou. Monarquias, impérios não funcionaram. O nazismo não funcionou. O comunismo de Stalin não funcionou.”
Ele sugeriu que, em seu país e nos EUA, parte da população perdeu a noção da realidade. “Há pessoas que acreditam em coisas que todos deveriam saber que são mentiras, de tão absurdas”, disse. “Minha preocupação é como vamos construir uma narrativa para destruir isso.” O problema, disse, é que “ainda não temos resposta.”
Parte do problema, afirmou, é econômica. “A democracia começa a ruir quando não atende mais aos interesses do povo. Desde 1980, os trabalhadores dos países que criaram Estados de bem-estar só perderam, enquanto a concentração de renda aumentou. Que resposta podemos dar à sociedade brasileira? À alemã? À americana?” Também há a questão da liderança. “Os EUA eram o espelho da democracia, o pilar da democracia no planeta”, disse. “Apesar de ser o país que mais faz guerras, é o que mais fala de paz e democracia. Mas agora existe Trump, que às vezes se comporta como…” Lula se interrompeu. “Vi recentemente um discurso dele no Congresso dos EUA e era absurdo — aqueles republicanos aplaudindo qualquer besteira que dissesse. Parecia o tipo de discurso que anarquistas faziam na Itália e no Brasil no começo do século, pregando uma sociedade sem instituições, onde o império do capital reina.”
O presidente Donald Trump deixou claras suas intenções intervencionistas na América Latina assim que reassumiu o cargo; em seu discurso de posse, prometeu “retomar” o Canal do Panamá. Desde então, a maioria dos líderes da região tratou Washington com extremo cuidado. Os populistas de direita fizeram questão de exibir lealdade e afinidade. Javier Milei, libertário radical que extinguiu metade dos ministérios do governo argentino, presenteou Elon Musk com uma motosserra gravada e saudou Trump como “um dos dois políticos mais relevantes do planeta” (o outro, claro, sendo o próprio Milei). Em troca, recebeu apoio dos EUA para um empréstimo de US$ 20 bilhões do FMI, além de elogios de Trump, que disse que Milei estava fazendo “um trabalho fantástico”.
Em El Salvador, o presidente Nayib Bukele ofereceu ao governo americano aceitar deportados indesejados, que seriam mantidos em prisões insalubres. Durante uma visita à Casa Branca, Bukele e Trump trocaram piadas sobre o acordo. Trump disse que também gostaria de mandar “criminosos caseiros”, e Bukele ironizou a possibilidade de devolver o migrante deportado por engano Kilmar Abrego Garcia aos EUA.
Na Colômbia, Petro foi o primeiro líder da esquerda regional a enfrentar Trump. Recusou-se a permitir que aviões americanos transportando deportados pousassem no país e comparou Trump a um “escravagista branco”, associando-se ao personagem Aureliano Buendía de Cem anos de solidão. Trump retaliou com tarifas punitivas e restrições de visto a autoridades colombianas. Petro cedeu em poucas horas, o que serviu como lição para outros líderes.
Em março, a empresa CK Hutchison Holdings, de Hong Kong, concordou em vender seus portos no Canal do Panamá para um consórcio liderado pela americana BlackRock. Trump rapidamente reivindicou a reapropriação do controle do canal. O presidente do Panamá, José Raúl Mulino, tentou manter a dignidade com declarações públicas desafiadoras, mas acabou cedendo à pressão de Washington. No mês passado, Panamá e EUA assinaram um novo acordo de segurança que permite o uso de antigas bases militares pelos EUA na Zona do Canal. No comunicado conjunto, divulgado durante a visita do secretário de Defesa Pete Hegseth, a frase sobre o respeito americano à soberania panamenha foi propositalmente excluída da versão em inglês. Um amigo influente no Panamá me escreveu: “Mulino não para de entregar tudo para Trump, em troca de nada.”
A presidente do México, Claudia Sheinbaum, também evitou conflitos com Trump. Reforçou a segurança na fronteira, extraditou narcotraficantes de alto escalão e aumentou a apreensão de fentanil. Até Nicolás Maduro, da Venezuela, parabenizou Trump por voltar à presidência e libertou prisioneiros americanos. Depois que os EUA deportaram centenas de supostos membros de gangues venezuelanas para a prisão de Bukele, Maduro criticou a medida como “fascista”, mas direcionou a declaração a Bukele, não a Trump.
Lula e Boric, do Chile, foram os líderes latino-americanos mais críticos. Em visita à Índia, Boric classificou a posse de Trump, com bilionários da tecnologia “jurando lealdade a um novo imperador”, como algo “de outra era”. Criticou as tarifas americanas como “irracionais” e “insustentáveis”. Embora o cobre chileno ainda estivesse isento, Boric afirmou que buscaria novos acordos comerciais com Índia, Japão e outros. Advertiu que, caso Trump taxasse o cobre chileno — 11% do qual foi exportado para os EUA no ano anterior —, os consumidores americanos acabariam pagando mais. “A lei do mais forte tem pernas curtas”, declarou.
Lula sabe que sua coalizão é frágil. Em discurso recente, disse: “Os presidentes sul-americanos devem entender que somos muito fracos se estivermos isolados.” Em Brasília, defendeu maior cooperação internacional. “Temos que convencer o mundo de que não é possível acabar com o multilateralismo”, afirmou. “O multilateralismo é uma forma de civilidade encontrada entre Estados para coexistirem em paz, com regras que todos devem seguir.”
Ele continuou: “Já está provado que, se não controlarmos o ar, todos seremos vítimas da poluição atmosférica. Se o mar subir, todos seremos vítimas. Ainda não caiu a ficha para os líderes mais importantes do mundo de que precisamos de governança global para tomar algumas decisões em escala planetária.”
Lula destacou o meio ambiente como uma das prioridades globais, mas reconheceu os limites do multilateralismo para lidar com o tema. Este ano, o Brasil sediará a conferência climática COP30, em Belém — local escolhido, na borda da Amazônia, para chamar atenção para a crise do desmatamento. Ainda assim, é difícil imaginar que o encontro traga mudanças radicais. Países europeus, em particular, provavelmente doarão menos, priorizando orçamentos militares. Lula reagiu com ceticismo. “Não acredito em dinheiro de países desenvolvidos”, disse. “Eles prometeram cem bilhões de dólares em 2009 e não entregaram até hoje. Já se passaram dezesseis anos. Agora a necessidade é de 1,3 trilhão de dólares — e não vão entregar.”
Lula defendeu um mundo em que as grandes potências possam competir sem recorrer à guerra e cooperem mais em questões como fome e mudanças climáticas. Lembrou que o Brasil, como economia em desenvolvimento, precisa manter boas relações mesmo com países de valores muito diferentes. “Ainda bem que temos a China, que, do ponto de vista tecnológico, é muito avançada e pode competir no mundo da inteligência artificial, oferecendo uma alternativa nesse debate”, disse.
Segundo Lula, a hostilidade do Ocidente à China é motivada pelo comércio, e não por abusos de direitos humanos ou ameaças à invasão de Taiwan. “Sou de uma geração que aprendeu nos anos 80, com Reagan e Thatcher, que o melhor para o mundo era a globalização e o livre comércio. Os produtos deveriam circular livremente pelo mundo. O dinheiro também.” A China, afirmou, adotou essa teoria como todos os outros. “A China começou a produzir tudo o que era feito nos EUA e na Europa. Não se podia comprar uma calça, sapato ou camisa sem a etiqueta ‘Made in China’. Eles copiaram tudo com muita habilidade e aprenderam a produzir tão bem ou melhor. Agora que se tornaram competitivos, viraram inimigos do mundo”, acrescentou irritado. “E não aceitamos isso. Não aceitamos a ideia de uma segunda Guerra Fria. Aceitamos que, quanto mais semelhantes os países forem — tecnologicamente e militarmente —, mais terão que dialogar, porque não sei se o planeta aguenta uma Terceira Guerra Mundial.”
Lula insiste em uma postura pacifista de maneira idealista, algo raro entre líderes mundiais. “No ano passado, o mundo gastou 2,4 trilhões de dólares em armas, enquanto 730 milhões de pessoas vão dormir toda noite sem saber se terão café da manhã ao acordar”, disse. “Essa deveria ser a principal preocupação da humanidade.”
Mesmo após a invasão da Ucrânia pela Rússia, Lula resistiu a tomar partido. Relatou uma conversa recente com o chanceler alemão: “Meu amigo Olaf Scholz veio aqui, sentou naquele sofá e pediu ao Brasil para vender mísseis para ele enviar à Ucrânia. Eu disse que não venderia, com todo respeito, porque não queria que nenhum ucraniano ou russo morresse com uma arma brasileira.”
Como outros à esquerda (e muitos à direita), Lula criticou os Estados Unidos e a Europa por financiarem esforços para enfrentar Putin na Ucrânia. “Quando você encurrala o inimigo, precisa ter força para derrotá-lo, e não é fácil derrotar a Rússia”, disse Lula. “Conversei sobre isso com Biden. E Biden continuava dizendo: ‘Vamos destruir Putin, e ele terá que reconstruir a Ucrânia.’ O que vai acontecer agora? Se a paz acontecer, organizada por Trump, ele vai ganhar o Prêmio Nobel da Paz, e a Europa terá que pagar pela OTAN, financiar a guerra e reconstruir a Ucrânia.”
Algumas semanas antes, Lula havia apelado à Rússia para encerrar o conflito. “Liguei para Putin e disse: ‘Putin, acho que está na hora de você voltar para a política. Acabe com isso. O mundo precisa de política, não de guerra. Você faz falta. Faltam pessoas para se sentar à mesa e discutir o destino do planeta: o que queremos para a humanidade?’”
Lula ridicularizou o desejo de Trump de assumir controle sobre a Groenlândia e o Canadá. “Só falta agora ele querer tomar a Antártida”, disse. “Por que Rússia e EUA querem ampliar seus territórios se não conseguem nem administrar o que já têm?”
Em sua visão, as ações globais de Trump, do vice-presidente J. D. Vance e de Elon Musk representam uma séria ameaça. “Eles negam as instituições que garantem a democracia mundial”, afirmou. “O fato de o vice-presidente dos EUA interferir na política da Alemanha já é um crime. Eu nunca fui a outro país interferir numa eleição!” Para Lula, a retórica belicista acabará prejudicando-os. “No começo pode parecer bom”, disse. “Mas o resultado pode ser muito pior do que aquilo que eles estão criticando. Quando você solta uma fera selvagem, depois não sabe mais como controlá-la.”
Pouco antes de nossa conversa, o governo dos EUA havia anunciado uma tarifa de 25% sobre o aço brasileiro. “Haverá reciprocidade”, disse Lula. “Mas, antes disso, queremos mostrar aos EUA o que representam duzentos anos de relações diplomáticas e comerciais entre Brasil e EUA.”
Lula lembrou que os EUA tiveram um superávit comercial de sete bilhões de dólares com o Brasil no ano anterior, mesmo incluindo as importações de aço. “O que os EUA importam do Brasil, eles transformam e depois exportam de volta para o Brasil”, disse. “É uma via de mão dupla, então acho que isso vai prejudicar os EUA. Da nossa parte, queremos negociar diplomaticamente. Se não for possível, tomaremos medidas.”
Quando perguntei se Trump havia feito contato com ele, Lula respondeu que não. “Se, como representante do Estado americano, ele quiser conversar com Lula, representante do Estado brasileiro, conversarei tranquilamente”, disse. “Mas até agora não tive interesse em falar com ele. Se um dia tiver algum problema e precisar ligar para ele, ligarei.”
Jon Lee Anderson
Jornalista especializado em política internacional e América Latina.
08/05/2025
The New Yorker