
A anistia e a erosão da consciência constitucional
por Salvio Kotter
Erosão gradual da Constituição segundo Loewenstein
Karl Loewenstein ensinou que as Constituições raramente são destruídas de um só golpe; muito mais frequente é seu esvaziamento gradual pela erosão da consciência constitucional. Esse fenômeno ocorre quando há uma desvalorização prática da Constituição escrita – os poderes públicos omitem-se em cumprir e fazer cumprir os preceitos constitucionais, de modo que o texto permanece formalmente em vigor, porém a sociedade deixa de reconhecê-lo como um compromisso inviolável. Em outras palavras, a Constituição perde sua força normativa e passa a ser tratada como mera carta de intenções, sem eficácia real. Loewenstein desenvolveu esse conceito ao analisar a decadência da democracia liberal, notadamente observando como a República de Weimar na Alemanha sucumbiu não por uma única ruptura dramática, mas pela corrosão paulatina dos valores constitucionais diante da conivência institucional e da indiferença social.
O projeto de anistia e o risco de impunidade institucionalizada
No Brasil atual, essa ideia ganha perturbadora relevância. O jurista Eduardo Appio, em recente artigo no ConJur, resgatou o conceito de erosão da consciência constitucional para discutir o projeto de anistia em tramitação no Congresso. Trata-se de uma proposta legislativa que, travestida de “reconciliação”, na prática visa legalizar a impunidade de crimes que atentaram contra o próprio Estado Democrático de Direito. Conforme destaca Appio, pretende-se aprovar uma lei de anistia manifestamente inconstitucional, cujo alvo são casos concretos já em julgamento no Supremo Tribunal Federal – notadamente os envolvidos na tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023. Em outras palavras, o Parlamento discute perdoar, por via legal, atos considerados dos mais graves pela Constituição, abrindo mão de punir aqueles que conspiraram contra a ordem democrática.
Essa proposta de anistia abrange uma gama ampla de condutas ilícitas cometidas desde 2019, muitas das quais relacionadas aos ataques golpistas de 8 de janeiro. O texto preliminar concede perdão a todos que tenham sido ou venham a ser investigados ou condenados por ações antidemocráticas nesse período. Dentre as condutas especificadas estão, por exemplo:
- Ofensas e ataques a instituições públicas (e a seus integrantes), bem como atos de incitação ao descrédito do processo eleitoral ou dos Poderes da República;
- Reforço à polarização política e geração de animosidade na sociedade mediante disseminação de desinformação e discursos de ódio;
- Danos ao patrimônio público, incluindo a depredação de prédios tombados como o Congresso Nacional, o STF e o Palácio do Planalto, além da constituição de milícias privadas e associações criminosas visando atentar contra a ordem institucional;
- Apoio logístico, financeiro ou material a tais atos (desde financiamento até estímulo e organização das manifestações violentas).
Além de perdoar essas práticas, a anistia proposta anula sanções civis, administrativas e eleitorais conexas a elas, afastando inclusive todas as inelegibilidades impostas pela Justiça Eleitoral contra os beneficiários da lei. Esse ponto evidencia o caráter feito sob medida da iniciativa: beneficia diretamente o ex-presidente Jair Bolsonaro, hoje inelegível por decisão do Tribunal Superior Eleitoral, bem como outros políticos envolvidos. Em suma, o projeto pretende “zerar” as consequências legais de ofensas gravíssimas ao Estado de Direito, num aceno de impunidade geral.
Violação ao artigo 5º e a desmoralização do pacto constitucional
Essa anistia, vendida como gesto de pacificação, opera como um solvente corrosivo sobre pilares constitucionais. Ela enfraquece especialmente o disposto no artigo 5º, inciso XLIV, da Constituição de 1988, que trata tais atentados como crimes de altíssima gravidade. Esse dispositivo estabelece expressamente: “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático”. Ou seja, o constituinte elevou a proteção da ordem democrática ao nível máximo, tornando-a princípio intocável e vedando indulgências como fianças ou prescrições para esses delitos. Ao transformar essa norma peremptória em moeda de barganha política, a anistia proposta desvirtua o pacto constitucional: o que deveria ser cláusula pétrea de defesa da democracia passa a ser tratado como ornamento retórico, descartável conforme conveniências parlamentares.
Não por acaso, juristas e autoridades têm alertado para a flagrante inconstitucionalidade de tal anistia. Qualquer lei aprovada nesse sentido deve ser questionada no Supremo Tribunal Federal, por ofensa direta ao artigo 5º da Constituição. Vale lembrar que o próprio STF, em 2023, já deu um recado contundente ao derrubar o indulto que o então presidente Bolsonaro concedera ao ex-deputado Daniel Silveira – condenado por ataques antidemocráticos – exatamente sob o argumento de que crimes contra o Estado Democrático de Direito não admitem graça ou perdão. Ou seja, a Corte Suprema reconheceu que tais afrontas são “impassíveis de anistia”. Ignorar esse entendimento e legislar o perdão geral seria, portanto, afronto duplo: à letra expressa da Constituição e à autoridade do Judiciário que a guarda.
O estrago institucional de uma anistia assim não se limita ao texto legal – ele atinge em cheio a consciência coletiva sobre o valor da Constituição. Um ordenamento democrático vive não apenas de normas, mas da crença disseminada de que elas devem ser cumpridas. Se o próprio Estado sinaliza que violar a ordem constitucional pode ser algo perdoável, a mensagem implícita é devastadora: as cláusulas constitucionais são flexíveis, adaptáveis a pressões políticas, e a fidelidade à Carta Magna torna-se opcional. O artigo 5º, XLIV, antes tido como garantia solene contra aventuras golpistas, passaria a valer menos que uma nota de rodapé histórica.
Efeito pedagógico perverso: o incentivo aos golpistas
Os efeitos pedagógicos de uma anistia desse tipo seriam profundamente perversos. Ao perdoar hoje os responsáveis pela intentona de 8 de janeiro, o Parlamento estaria ensinando aos potenciais golpistas de amanhã que suas ações poderão ficar impunes. Ficaria demonstrado que podem agir “sem medo”, pois mesmo que sejam inicialmente punidos, a sanção acabará convertida em moeda de troca política no futuro. Não por coincidência, Appio compara esse entorpecimento cívico a uma espécie de anestesia coletiva: estamos todos correndo o risco de nos habituar a exceções gravíssimas como se fossem parte do jogo normal. Aceitar uma anistia que ofende o princípio da separação dos Poderes e a essência do Estado Constitucional é, nas palavras dele, “o primeiro passo para o tecnototalitarismo”.
Convém sublinhar que os atos de 8 de janeiro de 2023 não foram trivialidades — foram crimes de enorme alcance, tratados com rigor justamente para resguardar a democracia. Em menos de dois anos desde aquele ataque, o STF já responsabilizou 1.198 pessoas envolvidas, das quais 643 réus foram condenados em ações penais pelos diversos crimes cometidos. Entre os condenados, 270 foram punidos por delitos mais graves como invasão e depredação das sedes dos Três Poderes, recebendo penas que variam de 3 a 17 anos de prisão, além de multas e indenizações coletivas pelos danos morais causados à sociedade. Outros 555 acusados assumiram culpa em acordos de não persecução penal (destinados aos participantes de menor envolvimento), comprometendo-se a medidas alternativas e educação cívica em troca da suspensão dos processos. Esse extenso esforço punitivo – que inclui desde prisão efetiva para os mais violentos até reeducação para os cúmplices menores – teve um claro objetivo pedagógico e dissuasório: reafirmar que investidas contra a democracia não seriam toleradas nem recompensadas.
Entretanto, uma anistia geral inverteria esse ensinamento. Todos esses processos, sentenças e acordos, concebidos para restaurar o Estado de Direito ferido, seriam jogados por terra. Os condenados e investigados sairiam da condição de infratores a anistiados, quiçá vangloriados como “mártires” por grupos antidemocráticos. A lição passada à sociedade seria a pior possível: vale a pena tentar um golpe, pois na pior das hipóteses o tempo tratará de apagar as consequências. Esse é um recado extremamente perigoso em qualquer democracia – um convite para que futuros aventureiros não temam arrombar as portas das instituições, já que um dia elas mesmas poderão escancará-las em nome de acordos políticos espúrios.
O precedente de Weimar e a normalização da exceção
A história fornece paralelos inquietantes para o que ocorre quando uma democracia transige com golpistas. Na própria República de Weimar – cujo triste destino Loewenstein estudou de perto – houve precedentes de leniência fatal. Em 1923, Adolf Hitler liderou um putsch (golpe armado) contra o governo alemão e foi inicialmente condenado a 5 anos de prisão por alta traição. Contudo, graças a pressões e simpatias nos círculos do poder, Hitler foi libertado após apenas nove meses de cárcere, tempo durante o qual escreveu Mein Kampf e reorganizou seu partido nazista. Essa indulgência custou caro: ao invés de dissuadir os conspiradores, deu-lhes fôlego para voltar mais fortes. Menos de dez anos depois, a democracia alemã sucumbia de vez, corroída por dentro até desabar. Hitler assumia a poder.
Loewenstein identificou nessa derrocada elementos familiares: instituições coniventes, sociedade indiferente e a normalização da exceção como pano de fundo para a morte anunciada da democracia. Perdoar quem viola as regras do jogo democrático – seja pela omissão complacente do Estado ou por leis de anistia oportunistas – equivale a convidar o lobo para cuidar do rebanho. É repetir, em chave tropical, os erros trágicos que permitiram que Weimar se autodestruísse gradualmente. Cada concessão aos inimigos da ordem constitucional mina a confiança do povo nas instituições e robustece a audácia dos autoritários.
Não surpreende, assim, que os defensores da democracia brasileira rejeitem veementemente essa anistia ampla. Integrantes do governo e da sociedade civil denunciam o projeto como inconstitucional e inaceitável, uma verdadeira agressão ao princípio dos freios e contrapesos. Até mesmo setores do chamado Centrão no Congresso admitem, nos bastidores, que uma anistia tão abrangente dificilmente resistiria ao crivo do STF e poderia abrir uma crise institucional sem precedentes. Ministros do Supremo, por sua vez, já sinalizaram publicamente que veem a ideia com grave preocupação – alguns afirmam ser simplesmente “impossível perdoar crimes contra a democracia”, sinalizando que caso a lei passe, o tribunal deverá invalidá-la.
Democracia em pé, porém doente por dentro
Ao propor perdão aos que violentaram a República, o projeto de anistia não ofende apenas a memória recente do traumático 8 de janeiro – ele inaugura um ciclo de autodesgaste constitucional. Nossa democracia, que continuaria talvez de pé formalmente, passaria a carregar em seu interior a doença insidiosa do cinismo institucional. As instituições permaneceriam de fachada, mas esvaziadas de credibilidade e autoridade moral, corroídas pela mensagem de que nem mesmo seus fundamentos mais sagrados são inegociáveis.
Loewenstein adverte que a erosão da consciência constitucional não provoca a morte imediata de uma ordem democrática. O edifício institucional pode até permanecer em pé por algum tempo, silenciosamente corroído em suas bases. Mas chega o dia em que, já podre por dentro, desaba ao menor empurrão. O Brasil arrisca-se a trilhar esse caminho se permitir que a exceção se torne regra e que a impunidade seja exaltada como virtude conciliatória. Manter íntegra a Constituição – em letra e espírito – é um dever inegociável de todos que prezam a liberdade. A anistia ampla aos golpistas, longe de pacificar, seria o fermento de novas crises e um passo rumo ao abismo institucional. É hora de lembrar que certos valores democráticos não admitem desconto nem perdão, sob pena de, ao cedermos hoje, não termos mais uma democracia funcional a defender amanhã.
Fontes Pesquisadas: Loewenstein (Teoria da Constituição), Art. 5º, XLIV da CF/88; Decisões do STF e artigos de ConJur, G1 e CNN Brasil
Salvio Kotter passou formações bem variadas, como Administração de Empresas, Música Erudita, Grego Antigo e Latim. Publicou vários livros, de ficção e não-ficção e é editor da Kotter Editorial, especializada em literatura, filosofia e política.
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