A anatomia da máquina da guerra
por Eliseu Raphael Venturi
A máquina da guerra não é feita apenas de aço e pólvora. Ela é construída de símbolos, afetos, palavras. Ao contrário das engrenagens visíveis de um motor, suas peças mais eficientes são invisíveis: são as narrativas que se repetem, os ressentimentos que se reciclam, os desejos de morte que circulam disfarçados de moralidade. Para desativá-la, é preciso antes conhecê-la, como quem desmonta um mecanismo minucioso para entender onde a energia se acumula, por onde corre a corrente, em quais pontos o circuito se fecha.
Seus fios trocados são os atalhos afetivos. O medo, em vez de convocar prudência, é convertido em obediência cega. A raiva, em vez de servir como energia de transformação, é trocada pela certeza de que o inimigo deve ser eliminado. A indignação, que poderia ser força de justiça, é desviada para o ódio moralizante. São esses fios invertidos que fazem o sujeito acreditar que destruição é forma de virtude.
Mas a máquina também expõe fios desencapados. São os pontos em que a violência simbólica transborda em violência real: o insulto que vira bala, o discurso que vira linchamento, a acusação que se converte em sentença de morte. Esses fios brilham como espetáculo – e a mídia, as redes, a política os exibem sem pudor –, mas o que provocam é curto-circuito social, eletrocutando laços de convivência já frágeis.
O visor da máquina mostra apenas duas cores: amigo ou inimigo, herói ou traidor. É um display binário que simplifica o mundo em silhuetas planas, ocultando toda nuance, toda complexidade, toda singularidade. Quem olha por esse visor perde a profundidade: só vê o outro como alvo ou aliado, nunca como sujeito. Essa simplificação é o que permite que a máquina funcione sem atrito, sem hesitação.
O que a máquina quer não é a vitória, mas a permanência do conflito. Ela não se satisfaz com a paz porque a paz a paralisa. O que a alimenta é a produção incessante de inimigos, a indignação que nunca se esgota, o escândalo que sempre se renova. Seu desejo é o gozo da guerra sem fim, não a solução de qualquer impasse.
O que a máquina faz é transformar a vida em campo de batalha permanente. Ela produz cadáveres – reais e simbólicos –, organiza narrativas em torno do sacrifício, reforça identidades rígidas e excludentes. Faz com que a palavra deixe de ser comunicação e se torne munição. Faz com que a política deixe de ser convivência e se torne combate.
Mas como todo mecanismo, a máquina também tem seu ponto frágil. O que ela mais teme é o silêncio, porque o silêncio desarma o escândalo. Ela teme a hesitação, porque a hesitação abre brecha para pensar. Ela teme a escuta, porque a escuta dissolve o inimigo absoluto. Ela teme o riso, quando não é riso cruel, mas riso que desautoriza sua pompa bélica. O que a máquina mais teme, enfim, é a suspensão do seu próprio circuito.
E é justamente por isso que ela nos rouba tanto. Nos rouba a convivência, fragmentando o espaço comum em trincheiras. Nos rouba a linguagem, transformando a palavra em projétil. Nos rouba a ética, reduzindo a vida à contabilidade de perdas e ganhos no campo de batalha. Nos rouba a própria experiência de viver, convertendo cada gesto em ato de guerra, cada silêncio em suspeita, cada presença em ameaça.
Conhecer a anatomia da máquina é o primeiro passo para desativá-la. Pois só se desarma um mecanismo quando se entende que seus fios são afetos, que seus visores são discursos, que sua energia é desejo.
Desativar, então, não é destruir – é recusar a lógica binária, reconectar o desejo ao vivo, suportar a hesitação, reabrir o comum. É retirar peça por peça até que reste apenas o que sempre houve por trás da máquina: a fragilidade humana, que nunca precisou da guerra para existir.
Eliseu Raphael Venturi é doutor em direito.
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