A chantagem do andar de cima

A chantagem do andar de cima

por Leda Paulani

Campos Neto cumpriu com bravura covarde sua missão pusilânime de iniciar o movimento de reversão das expectativas positivas que se desenhavam para o cenário econômico sob o governo Lula

Há exatamente seis meses, em 22 de junho deste ano, publiquei, no site A Terra é Redonda um artigo em que me perguntava qual era a hecatombe que fizera as tão alvissareiras expectativas sobre nossa economia dos primeiros quatro meses do ano terem se transformado num cenário sombrio, carregado de funestos prognósticos.

Na inexistência de qualquer fundamento objetivo capaz de explicar tamanha transmutação (a inflação estava dentro da meta, as expectativas sobre o crescimento do PIB se elevavam, a arrecadação tributária surpreendia, e o desemprego continuava a se reduzir), concluí que a resposta à minha pergunta não era técnica e que quando se trata de analisar os humores do mercado é preciso levar em conta também fatores de outra ordem.

Alertei ali que, dada a autonomia do Banco Central, instituída em fevereiro de 2021, e a forma específica em que se estruturam as relações entre o mercado financeiro e a autoridade monetária, além, é claro, do peso superlativo da riqueza financeira, haviam se criado no Brasil condições institucionais para uma espécie de autismo da política monetária, apta a falar só consigo e virar as costas ao país.

Diagnostiquei então o início desse processo de reversão numa fala do presidente do Banco Central, indicado por Jair Bolsonaro, que, em meados de abril, a partir de Washington, onde participava de reunião do FMI, começou a afirmar que havia, naquele momento, “mais insegurança” do que a percebida durante encontro anterior do mesmo organismo.

Com a continuidade das ilações infundadas de Campos Neto sobre o futuro da economia, o Comitê de Política Monetária (Copom), na reunião da primeira semana de maio, em decisão dividida, reduziu a Selic em apenas 0,25%, quando a expectativa era de que o corte acompanharia os anteriores, ficando em 0,5%.

É legítimo, no entanto, perguntar: mas não existe agora nenhum fator objetivo que justifique a escalada do preço da divisa? É tudo resultado de uma manipulação de interesses mesquinhos e reacionários? Sim, existem alguns fatores objetivos, mas nada que justifique tamanha escalada da taxa de câmbio.

Além disso, também tende a subir ao final do ano (outro fator sazonal) a procura por dólares para envio de lucros e dividendos ao exterior, elevando a demanda pela moeda e pressionando seu preço.

Ora, se considerarmos que boa parte desses fatores objetivos faz jus ao nome – sazonais, sobra muito pouco deles para explicar o movimento para cima do câmbio, não sendo suficientes, em hipótese alguma, para justificar o preço que o dólar vem alcançando no mercado brasileiro.

Ressalve-se, pra concluir, que mesmo tal resultado primário negativo (indesejável, mas em nada escandaloso comparado ao que ocorre hoje, mesmo nas economias mais desenvolvidas) seria ainda substantivamente menor e ficaria dentro dos parâmetros previstos pelo arcabouço fiscal (resultado primário zero com intervalo de 0,25% para cima e para baixo), não fosse outro fator de enorme importância: a reiterada insistência do Legislativo – a outra cobertura ampla e confortável em que desfila o andar de cima – em não abrir mão dos privilégios fiscais detidos por vários setores, desonerações de folha à frente, e que implicam enorme gasto tributário para o país.

Por conta desse poder do Legislativo, alguns analistas políticos dizem que vivemos hoje num sistema semipresidencialista, ou seja, um sistema em que o Executivo tem efetivamente muito menos poder do que parece ter.

A necessidade de dar um cavalo de pau na forma auspiciosa como vinha se desenhando o cenário econômico sob o governo Lula foi o que levou Campos Neto, famigerado entusiasta do bolsonarismo, que via se aproximar o fim de sua gestão à frente do Banco Central, a iniciar o movimento de reversão das expectativas cerca de oito meses atrás.

Ele cumpriu com bravura covarde sua missão pusilânime, criando uma situação em que as margens de manobra da nova direção do Banco Central tornaram-se extremamente reduzidas, como o atesta a previsão do último Copom em elevar a Selic em mais dois pontos percentuais até março de 2025.

Leda Maria Paulani é professora titular sênior da FEA-USP. Autora, entre outros livros, de Modernidade e discurso econômico (Boitempo)

Nota

[i] https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2024/12/17/dolar-abre-a-terca-feira-em-alta-apos-recorde-e-alcanca-r-614.htm

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Last Update: 20/12/2024