O artigo A aventura da democracia, de Luiz Marques, publicado no sítio A Terra Redonda nesta terça-feira (9), esbarra no problema da discussão acadêmica e seus jargões. O olho da matéria, por exemplo, diz que “a democracia nasceu como um furacão participativo na Grécia e na Revolução Francesa; hoje, sobrevive como uma brisa anêmica, ameaçada pela necropolítica e pelo despotismo moderno”.
Antes de se falar em “necropolítica” e “despotismo moderno”, precisamos clarificar que a democracia nada mais é que um sistema de dominação. Se, na Grécia Antiga, representava os interesses dos homens livres sobre os demais; representa, hoje, a ditadura da burguesia, ou, se preferirmos, a ditadura do capital.
Falta aos acadêmicos, de modo geral, para uma análise precisa do tema, ter em mente a frase que inicia o capítulo I do Manifesto Comunista: A história de toda a sociedade até aqui é a história da luta de classes. Sem isso, invariavelmente, a discussão se perde em necropolítica, biopoder etc.
No ponto 1, Marques diz que “cidadãos de Atenas nos séculos V e IV a.C. inventam a democracia e lhe dão a acepção que não coincide com a atualidade: ontem se cobrava participação; hoje obediência à representação. ‘A democracia representativa moderna muda a ideia de democracia a ponto de fazê-la irreconhecível, deixando de ser a ideia relacionada aos irremediáveis perdedores da história para se identificar com os contumazes vencedores’, diz o professor da Universidade de Cambridge, John Dunn, em A história da democracia: um ensaio sobre a libertação do povo”.
Segundo Engels, em A Origem da Família, da Propriedade e do Estado, a democracia ateniense foi fruto da derrocada da sociedade gentílica (baseada em clãs), que deu lugar ao surgimento das classes sociais e do Estado. Este, por sua vez, servia aos interesses das classes dominantes: os proprietários, comerciantes e cidadãos livres atenienses.
É um equívoco dizer que “a democracia representativa moderna muda a ideia de democracia”, pois não se trata de um conflito de ideias, mas da alteração objetiva de condições sociais e econômicas. Grécia e Revolução Francesa são coisas completamente diferentes. A democracia ateniense era um sistema de dominação de uma minoria (masculina de cidadãos livres) que excluía a participação de escravos, mulheres e estrangeiros. Enquanto na França a burguesia se consolidava em sua conquista do Estado.
A participação dos cidadãos na política grega visava a organização e fortalecimento do Estado para garantir sua dominação sobre os escravos; bem como servia para gerenciar os conflitos de interesses entre as classes dominantes, o que proporcionou uma relativa unidade e estabilidade política.
Marques sustenta que “na antiguidade, participar da esfera pública não é um direito; é uma obrigação cívica. Considera-se quem privatiza a vida alguém inútil. O debate não bloqueia a ação; instrui a hora de agir. A inusitada comunidade política deixa de fora o sexo feminino, os escravos e os estrangeiros (metecos). O projeto retrata as limitações ideológicas da época. Calcula-se em cem mil o contingente de cidadãos livres, um terço com cidadania plena por ascendência de várias gerações; quarenta mil mulheres e crianças; e cento e cinquenta mil escravizados majoritariamente no campo”.
O fato de que a participação pública era muito mais uma obrigação cívica que um direito é, antes de tudo, uma necessidade. O sistema escravagista liberou os homens livres do trabalho, restando a estes a tarefa de gerir a coisa pública e defender seus interesses e os interesses comuns, dado que a luta de classes nunca descansa.
A democracia ateniense não se tratava de um “projeto”. Nunca houve um dia no qual algumas pessoas se sentaram, discutiram um projeto e o colocaram em ação. Foi um processo histórico determinado por leis. Dizer que se trata de um “projeto” acaba levando a discussão para o campo moral, como se aqueles indivíduos, por pura maldade, tivessem excluído da vida pública a maioria da população. A democracia grega, é preciso que se diga, representou um avanço.
Ideologia
Adiante, Marques diz que “a liberdade política serve de assoalho para a igualdade dos livres na polis, onde a existência social é repleta de satisfação. A democracia mantém os ricos sob controle para enaltecer o valor da isonomia. ‘As pessoas não querem um bom governo no qual sejam escravas; elas querem ser livres e governar”, sublinha Péricles no Discurso aos gregos mortos na guerra do Peloponeso’.
Qualquer Estado traz consigo o estabelecimento de uma ideologia e esta serve de apoio para sua manutenção. A liberdade, portanto, não era uma ideia geral, como um valor universal. Assim como a ideia do dever cívico estava arraigada na sociedade ateniense porque servia ao fortalecimento e à coesão do Estado. É aí que a frase de Péricles ganha sentido.
Luiz Marques diz que “o que derrota a empreitada de 175 anos não são os fatores endógenos, os ódios de classe, e sim o poder militar do reino da Macedônia”. Mas isso é um erro.
A democracia ateniense tinha como base econômica a escravidão. Conforme o sistema foi se expandindo, e a consequente concentração de renda, as diferenças sociais foram se aprofundando. Cidadãos livres pobres nunca poderiam ter os mesmos direitos que os mais ricos. Sendo assim, a unidade política necessariamente se deteriorou.
Endividamento, perda de terras para grandes proprietários, aumento da população urbana empobrecida, foram fatores que alteraram a base social da democracia, criando-se assim contradições insolúveis dentro da classe de homens livres.
As pretensões imperialistas atenienses, a Guerra do Peloponeso, enfraqueceram Atenas, foi que isso que proporcionou a dominação macedônica.
O autor escreve também que “a condenação à morte de Sócrates por uma corte colegiada é a mancha na honra da democracia. Atribui-se ao acontecimento a ojeriza demonstrada por Platão ao participacionismo”. Mas, de novo, essa condenação precisa ser compreendida considerando-se o momento histórico.
Sócrates viveu o auge de Péricles, a Guerra do Peloponeso, a derrota contra Esparta, o governo dos Trinta Tiranos, a restauração democrática. Foi um período de intensa crise.
Finalizando esse ponto, Luiz Marques diz que “na filosofia clássica, Aristóteles opta pelo governo correspondente à politeia: mistura constitucional equilibrada entre uma oligarquia (governo de poucos, com posses) e uma democracia (governo de muitos, em especial pobres). Governantes de classe média assegurariam a virtuosa gestão no interesse de todos cidadãos. A politeia tem sentido normativo. Em doses homeopáticas, alguns sábios rejeitam a democracia direta pura”.
Aristóteles pertence à geração seguinte de Sócrates, seu questionamento sobre o sistema de governo se dá durante a crise da democracia. Os ideais antigos tinham que se adaptar à nova realidade, a da dominação macedônica. O filósofo chegou a ser tutor de Alexandre, o Grande. Alguns o chamam de “último filósofo da polis”. Nesse sentido, pode se considerado o representante do fim de uma era.
(continua)