Apesar de sua abundância em recursos energéticos e da existência de um vasto sistema elétrico interligado, o Brasil possui uma das tarifas de eletricidade mais elevadas do mundo. As tarifas residenciais têm aumentado acima da inflação, reduzindo o nível de bem-estar das famílias e agravando o quadro de pobreza energética no País. Esse cenário aprofunda desigualdades sociais preexistentes – de classe, gênero, raça, etnia e território – e compromete os princípios de uma transição energética com justiça socioambiental.
Com o objetivo de amenizar esse cenário, o governo apresentou a Medida Provisória nº 1.300, de 2025, da Reforma do Setor Elétrico, assinada pelo presidente Lula e encaminhada ao Congresso Nacional. O esforço representa, sem dúvida, um avanço significativo no enfrentamento da pobreza energética – ainda presente de forma latente no País – ao prever a isenção da tarifa de energia elétrica para 17 milhões de famílias de baixa renda. Embora positiva, a medida está longe de solucionar a complexidade estrutural do setor elétrico brasileiro. Ainda há um longo caminho a ser percorrido até alcançarmos um sistema verdadeiramente universalizado, com tarifas acessíveis, ancorado em uma matriz energética cada vez mais descarbonizada e sob a liderança estratégica do Estado brasileiro.
Um dos principais elementos para a extrema complexidade tarifária e da estrutura do setor elétrico brasileiro é a adoção de um modelo liberal para o setor, iniciado nos anos de 1990, com Fernando Henrique Cardoso, e consolidado durante os anos de Jair Bolsonaro, com a privatização do Sistema Eletrobras – processo que resultou no encarecimento das tarifas, priorizando o lucro dos acionistas e, ao que tudo indica, conta com a anuência do governo Lula.
Soma-se a isso a influência do lobby da indústria de combustíveis fósseis, que, por meio do Congresso Nacional, tem conseguido aprovar medidas contrárias ao planejamento do setor elétrico. Exemplo disso são os “jabutis” incluídos na Lei de Privatização da Eletrobras e, mais recentemente, no Projeto de Lei das eólicas offshore, que impõem a obrigatoriedade de contratação de termelétricas a gás natural em regiões sem infraestrutura, como gasodutos. Além de encarecer a tarifa, isso pode frear a expansão das fontes renováveis. Esse processo acaba por comprometer qualquer possibilidade de implementação de um programa e de um planejamento estratégico estatal voltado à transição energética.
Outro aspecto crítico diz respeito à estrutura tarifária do setor, marcada por um profundo desequilíbrio. Os consumidores vinculados ao Ambiente de Contratação Regulado (ACR) acabam arcando com o custo do sistema, o que tem se mostrado cada vez mais insustentável. Como já apontado em estudos do Inesc, o avanço das fontes renováveis no País vem sendo subsidiado, em grande medida, pelos próprios consumidores de energia elétrica, por meio de encargos repassados nas contas de luz.
O lobby da indústria de combustíveis fósseis continua forte no Congresso
Além disso, a MP não enfrenta uma das principais expressões da injustiça tarifária, que são as bandeiras tarifárias. Cobradas exclusivamente dos consumidores do ACR – e não dos grandes consumidores inseridos no Ambiente de Contratação Livre (ACL) –, essas tarifas adicionais punem ainda mais as famílias de baixa renda em períodos de escassez hídrica, aprofundando desigualdades. Esse fenômeno está intrinsecamente relacionado às mudanças climáticas e ao atual modelo tarifário brasileiro, revelando a urgência de políticas públicas mais equitativas, que considerem os diferentes contextos sociais e promovam o acesso universal e possível à energia elétrica como um direito fundamental.
Diante desse cenário, a Medida Provisória nº 1.300, proposta pelo governo, representa apenas um pequeno alento diante da complexa realidade do setor elétrico brasileiro. A proposta é tímida em dizer quem deve arcar com o custo do sistema, optando mais uma vez por aprofundar a abertura do Ambiente de Contratação Livre, onde apenas uma parte dos consumidores tem o benefício de negociar energia elétrica diretamente do agente gerador.
É fundamental analisar criticamente o impacto real das tarifas de energia elétrica sobre a renda e o cotidiano de grupos historicamente marginalizados, como a população negra, as mulheres e as pessoas em situação de pobreza. O aumento contínuo das tarifas compromete de forma significativa o orçamento doméstico dessas famílias, intensificando sua vulnerabilidade e dificultando o acesso a condições mínimas de dignidade.
Enfrentar as distorções e as injustiças do atual modelo do setor elétrico exige coragem política. É urgente revisar os subsídios atualmente concedidos e retomar o debate sobre os impactos da privatização da Eletrobras, considerada, inclusive pelo presidente Lula, um crime de lesa-pátria. Da mesma forma, é preciso construir, de forma participativa, uma visão estratégica para o setor, que seja orientada pelo interesse público e para uma transição energética com justiça socioambiental. •
Publicado na edição n° 1364 de CartaCapital, em 04 de junho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Pela metade’