Fome em Gaza: por que o bloqueio alimentar de Israel deve se tornar (de novo) caso para o TPI

Durante oitenta dias, Israel impediu a entrada de alimentos na Faixa de Gaza, um território superpopuloso que está há 600 dias sob intenso bombardeio, e onde a população civil depende inteiramente de ajuda externa para sobreviver.

A medida era sabidamente uma forma de punir todos palestinos, indiscriminadamente, para, com isso, tentar debilitar o Hamas. A fome foi usada como uma arma de guerra – um método já empregado anteriormente neste mesmo conflito, e pelo qual o Tribunal Penal Internacional havia emitido um mandado de prisão contra o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, em 21 de novembro de 2024, e contra o ministro da Defesa dele à época, Yoav Gallant.

Quando finalmente levantou o bloqueio, Israel decidiu que a única agência autorizada a entrar seria a GHF (Gaza Humanitarian Foundation), uma instituição até agora completamente desconhecida, cujas informações sobre quem a controla e de onde provêm seus fundos continuam sendo um mistério. Organismos internacionais centenários, como o CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha), e agências das Nações Unidas que há décadas trabalham nesse contexto, como a Unicef e a URWA, foram impedidas de operar.

A GHF, então, deu início, na quarta 28 à sua primeira operação de distribuição de alimentos em Rafah, na Faixa de Gaza. Do ponto de vista logístico, foi um desastre: a população palestina foi confinada em corredores metálicos, para se manter em fila, gerando imagens semelhantes às de currais de abate (ou coisa pior). A situação saiu de controle e agentes privados de segurança fizeram disparos de fuzil para o ar, deixando pelo menos 47 feridos, segundo a ONU.

No mínimo, a forma como a ação foi feita violou os princípios de humanidade e de preservação da dignidade humana na guerra. Mas, do ponto de vista israelense, o mais importante talvez tenha sido preservado: o discurso cínico de que se está ‘ajudando’ os palestinos e a captação de informações de inteligência. Essa suspeita de que as ações humanitárias arquitetadas por Israel se prestam, na verdade, a colher dados e imagens de pessoas foi reforçada por uma declaração em particular.

Avigdor Lieberman, ex-ministro da Defesa de Israel, disse que o dinheiro da GHF – cujo custo mensal de operação é estimado em mais de 140 milhões de dólares – “está vindo do Mossad e do Ministério da Defesa”. O próprio governo de Israel não confirma nem desmente a informação. Os EUA, tampouco respondem frontalmente às perguntas sobre essa questão, mas seu Departamento de Estado propagandeia o envio de suprimentos, num momento em que a única agência distribuindo esses itens é a GHF.

Agências humanitárias sabem, há mais de um século, que as atividades de assistência realizadas numa guerra têm de ser executadas de maneira neutra, imparcial e independente. Não deve haver mistura entre a assistência às vítimas e os interesses militares.

O que tem acontecido, entretanto, e não apenas na Faixa de Gaza, é que diferentes governos, em diferentes contextos, vêm tentando encampar a ajuda humanitária através de ações realizadas por suas Forças Armadas e outros órgãos governamentais. O Brasil fez isso quando estava no comando das Forças de Paz da ONU no Haiti, por exemplo.

A queixa das agências independentes, em relação a isso, é que a confusão de atores – a confusão entre agentes humanitários e agentes militares – prejudica os civis, em última instância, porque se um grupo armado nunca sabe se uma determinada ação de distribuição de alimentos que está sendo realizada em sua região é protagonizada por membros de uma entidade neutra ou por pessoas ligadas a seus inimigos, então a segurança de todos passa a estar em risco.

Da mesma maneira, se a população assistida não sabe se está recebendo uma ajuda desinteressada ou se está sendo cooptada por inimigos do grupo armado que opera no local em que ela vive, então a simples decisão de aceitar essa comida se torna complexa, à medida que qualquer envolvimento pode motivar, mais tarde, retaliações e acusações de capitulação, traição e colaboracionismo com o lado oposto. Os civis podem ficar divididos, então, entre morrer de fome ou morrer por uma retaliação posterior, por ter aceitado a comida.

De qualquer forma, permitir que agências internacionais de ajuda humanitária entrem com água e comida em Gaza não é uma liberalidade, uma benevolência ou uma caridade que Israel possa fazer e interromper quando lhe convém. O país é o que legalmente se chama uma “potência de ocupação”. Desse status, decorrem algumas obrigações, dentre elas a de garantir as condições de subsistência para a população que vive na área ocupada.

A interrupção dessa ajuda foi um crime de guerra e a retomada dela enseja outros problemas, pois a forma como foi feita viola os princípios básicos de humanidade e de respeito à dignidade humana. Além disso, ao fazer dessa iniciativa um meio de triagem e coleta de informação, Israel transformou uma ação que deveria ter caráter puramente humanitário numa estratégia militar.

Se a fome não pode ser usada como método de guerra, então o único imperativo para a distribuição de alimentos deve ser a necessidade. Qualquer outro critério é uma violação à norma. Combatentes do Hamas são alvos legítimos, e, como tais, podem ser alvejados e mortos em combate legalmente, mas a imposição da fome ao conjunto da população como meio de afetar o Hamas é um crime.

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