Mais uma vez, a Volkswagen terá de responder, perante a Justiça, por crimes contra os direitos humanos. Desta vez, por manter trabalhadores em situação análoga à escravidão no interior do Pará entre os anos de 1974 e 1986. O caso será julgado a partir da próxima sexta-feira (30), na Justiça do Trabalho de Redenção, no mesmo estado.
O julgamento responde a uma ação civil pública, movida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) no final do ano passado, solicitando que a empresa assuma a responsabilidade pelos casos, peça desculpas publicamente, e pague R$ 165 milhões por danos morais coletivos.
Além disso, reivindica que a empresa implemente medidas de combate ao trabalho escravo, tráfico de pessoas e demais violações dos direitos humanos dos trabalhadores em suas cadeias de suprimentos e que sejam criados mecanismos de coleta e apuração de denúncias disponíveis aos trabalhadores e prestadores de serviços.
Ao dar entrada no processo, o procurador do Trabalho Rafael Garcia Rodrigues, que coordenou as investigações, destacou que os documentos e depoimentos obtidos “comprovaram as gravíssimas violações aos direitos humanos na fazenda naquele período. Foi constatada a submissão dos trabalhadores à condição semelhante à escravidão por meio de jornadas exaustivas, condições degradantes de trabalho e servidão por dívida”.
A ação resulta de longa apuração feita pelo MPT, a partir de 2019, tendo como base inicial uma farta documentação reunida pelo padre Ricardo Rezende Figueira — à época, coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT) para a região do Araguaia e Tocantins da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
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Os documentos retratavam situações análogas à escravidão ocorridas na Fazenda Vale do Rio Cristalino, pertencente à Companhia Vale do Rio Cristalino Agropecuária Comércio e Indústria (CVRC), uma subsidiária da Volkswagen.
Dentre as violações apontadas estão trabalho forçado, jornadas exaustivas, tratamento violento e desumano, tortura, perseguições, ameaças e escravidão por dívida.
Nesse rol de tipificações, o processo aponta a ocorrência de falta de tratamento médico nos casos de malária; impedimento de saída da fazenda em razão de vigilância armada ou de dívidas contraídas; alojamentos instalados em locais insalubres, sem acesso à água potável e com alimentação precária.
Funcionários e intermediários da antiga fazenda da montadora foram apontados como responsáveis por impor tal tratamento aos trabalhadores.
Segundo a ação movida pelo MPT, os materiais entregues continham relatos de vítimas dessas violações e de seus familiares, muitos deles sob a forma de escritura pública declaratória; matérias jornalísticas e debates parlamentares; relatórios de visitas e entrevistas com diretores da CVRC; diligências realizadas no curso de investigações policiais; demanda judicial trabalhista, entre outras bases de evidências.
Ação do MPT

Finalizada a fase de apuração das denúncias, o MPT realizou cinco audiências com representantes da empresa entre 2022 e 2023 para discutir a reparação pelos casos e a possibilidade de assinatura de um termo de ajustamento de conduta (TAC). Conforme relatado, a Volkswagen do Brasil se retirou da mesa de negociação em março de 2023 e demonstrou não ter interesse em firmar o acordo com o MPT.
Nesse cenário, o órgão resolveu processar a empresa no final do ano passado. Pela natureza informal e irregular do trabalho feito na fazenda, bem como sua natureza intermitente, o número de pessoas afetadas é incerto.
Segundo a ação, a Fazenda Volkswagen tinha cerca de 140 mil hectares — o equivalente à cidade de São Paulo — “e a vegetação nativa foi transformada em áreas de pasto mediante queimadas e desmatamentos, a partir de empreiteiros, conhecidos na região como ‘gatos’, que recrutavam lavradores em pequenos povoados, sobretudo no interior do Mato Grosso e de Goiás, bem como do território que, hoje, forma o Tocantins”.
Ainda segundo o processo, os trabalhadores aliciados para esses serviços “já chegavam endividados com os custos do transporte e eram imediatamente levados a uma cantina, mantida por seu
empreiteiro dentro da propriedade da CVRC, onde deveriam comprar lona para montar o barracão que passariam a habitar. Nessa cantina, os peões compravam alimentos, roupas, ferramentas de trabalho, utensílios domésticos, medicamentos, entre outros produtos, todos com preços exorbitantes”.
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O documento também narra que além dos frequentes espancamentos, “trabalhadores foram feridos por golpes de facão e disparos de arma de fogo. Há relatos de desaparecimentos e homicídios, sendo que os corpos das vítimas eram lançados no Rio Cristalino ou em uma gruta. Em geral, as agressões eram feitas em público, com a finalidade de intimidar os peões e dissuadir aqueles que pensavam em fugir. Os pistoleiros também recorriam a seus armamentos e apetrechos para fazer ameaças e humilhações”.
Ao abordar as condições de trabalho, a ação descreve: “Nas matas, as jornadas eram extenuantes e as condições de trabalho degradantes. Os trabalhadores eram obrigados a trabalhar por muitas horas e sem descanso, sob ameaça dos ‘fiscais’, inclusive em fins de semana e feriados. Os peões comiam de pé, ou sentados no chão, a comida que haviam cozinhado de madrugada. Toda a água consumida vinha de um córrego de duvidosa potabilidade. Não havia instalações sanitárias nos barracos ou na frente de trabalho”.
A peça continua recordando que os trabalhadores “ficavam expostos a todo tipo de intempérie e a animais selvagens e peçonhentos. Quase todos foram infectados por malária e muitos sofriam acidentes de trabalho com foices, facões e motosserras. Faziam queimadas e manipulavam herbicidas. Não recebiam qualquer equipamento de proteção. Eram tratados na cantina do empreiteiro, não sendo levados à sede da fazenda ou ao hospital da cidade, havendo muitos casos de
morte por falta de assistência à saúde.”
A Volks outra vez
No processo apresentado em dezembro de 2024, o Ministério Público do Trabalho argumenta que em meio à tentativa da assinatura do termo de ajustamento de conduta (TAC), a Volkswagen não apenas “refutou os fatos apurados” como ainda sustentou que os mesmos estariam abrangidos pelo TAC celebrado em 2020 com Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público de São Paulo (MPSP) e o próprio MPT.
No entanto, explica o órgão, “o referido acordo diz respeito às perseguições políticas e ideológicas a ex-trabalhadores da empresa durante a ditadura militar, o que não se confunde com o objeto da presente demanda (a denúncia de trabalho análogo ao escravo)”.
O fato que irá a julgamento, portanto, é apenas mais uma das manchas na trajetória da empresa. Além da ligação com o trabalho análogo à escravidão, a montadora também apoiou a ditadura militar brasileira (1964-1985) e esteve envolvida diretamente nas perseguições aos seus trabalhadores que se opuseram ao regime.
Relatório conjunto feito pelos três MPs em 2020 apontou que essa cooperação “foi muito além de mero suporte por simpatia política ou da defesa dos interesses comerciais da companhia. A empresa, por decisão de sua alta direção no Brasil e conivência da direção da matriz na Alemanha, se envolveu diretamente na perseguição política a opositores do regime ditatorial. Adotou-se a prática rotineira de delatar trabalhadores e trabalhadoras aos órgãos de polícia política, expondo-os conscientemente a prisões ilegais e tortura”.
Naquele mesmo ano, as três instituições firmaram, com a Volkswagen, o TAC acima mencionado, estabelecendo obrigações à empresa para que não fossem propostas ações judiciais sobre sua cumplicidade com os órgãos de repressão.
No compromisso acordado, a Volkswagen se comprometeu a destinar R$ 36,3 milhões a ex-trabalhadores da empresa presos, perseguidos ou torturados durante a ditadura e a iniciativas de promoção de direitos humanos e difusos. O acordo encerrou três inquéritos civis que tramitavam desde 2015 sobre o assunto.