Pistas para entender a agonia patriarcal
Quando o ser humano abandonou a cultura matrística para a de dominação? O biólogo Maturana tem uma hipótese: no momento em que rompeu a sociedade de parceria com a Natureza. Podem estar aí as raízes remotas da crise civilizatória que atravessamos
por Antônio Sales Rios Neto
“Nossa possibilidade de sair da contradição emocional básica em que estamos imersos em nossa cultura patriarcal ocidental – e assim escapar do sofrimento que essa contradição traz consigo – está em nossa possibilidade de perceber que sua origem é cultural e não biológica.”
(Humberto Maturana)
Refletir sobre a natureza humana, trata-se talvez do tema mais complexo e inquietante para a humanidade, haja vista a dedicação que tantos pensadores expressivos deram a ele e, sobretudo, o impacto que suas ideias tiveram para a intratável convivência humana, ao longo da História, como foi o caso de Hobbes e Rousseau. Sabemos que qualquer conjectura que tente explicar a condição humana, por mais que esteja lastreada cientificamente, sempre será aproximativa. Logo, o que será apresentado aqui é apenas o que me parece mais razoável, dentre tantas formulações já especuladas, inclusive no âmbito da Ciência, para a compreensão sobre como chegamos a atual agonia civilizatória. Desde já, antecipo que as respostas aqui apresentadas refletem sim uma visão de mundo muito particular, por isso limitada, mas que, no entanto, não é autorreferenciada, pois é articulada reunindo convergências nas ideias de alguns pensadores contemporâneos que normalmente utilizo para abordar outros temas correlacionados.
“Como isso ocorreu?”
A bifurcação cultural desencadeada pelas invasões kurgan
É muito comum atribuir as causas dos problemas civilizatórios de cada época a fatores diversos, como a suposta agressividade inata do ser humano, a influência das religiões monoteístas, o colonialismo europeu nos séculos XV a XX, as sucessivas hegemonias imperialistas ocidentais – como a estadunidense no século passado –, o advento da Revolução Industrial, o sistema-mundo capitalista, os regimes totalitários do século XX, o ultraliberalismo inaugurado nos anos 1970, o declínio das democracias neste século XXI, a matriz energética mundial termo-fóssil, o sistema alimentar globalizado, o militarismo estatal, o capitalismo de vigilância patrocinado pelas Big Techs, dentre tantos outros fatores que já foram apontados. Todos certamente têm sua considerável parcela de contribuição para as recorrentes, e por vezes agudas, crises da civilização. Porém, se tomarmos em conjunto todas essas causas, terminaremos convergindo para uma noção mais ampla acerca do que move a ação humana que é a ideia de cultura humana, refletida no seu modo de vida. Portanto, as origens do profundo desarranjo antropogênico observado na contemporaneidade pode ser mais bem abordado se considerarmos o elemento Cultura, aquilo que caracteriza o modo de viver das sociedades, conforme destaquei no início. E a Cultura que forjou e preservou o longo processo histórico civilizador do Ocidente foi a Cultura Patriarcal, que não deve ser compreendida simplesmente circunscrevendo-a à ideia de dominação de gênero, da predominância do masculino sobre o feminino – que obviamente é um dos mais graves problemas da convivência humana e que permeia o entendimento do senso comum –, mas como um modo de viver que valoriza atributos de dominação, controle, separação e apropriação da Natureza, a qual é percebida como a grande inimiga do homem, incluída nela o próprio homem. Como afirmava Freud, “a tarefa capital da cultura, sua verdadeira razão de ser, é nos defender contra a natureza.” Por isso é que, na sua essência, a ideia de Civilização carrega em si um profundo e incontido desejo de dominação e apropriação da realidade.
Antes de seguir adiante, é importante ressaltar que adotarei, doravante, o entendimento de Cultura elaborado pelo neurobiólogo chileno Humberto Maturana, que definiu esse modo de viver patriarcal do Ocidente (chamado adiante de cultura patriarcal), que caracterizou todo o processo civilizatório, “pelas coordenações de ações e emoções que fazem de nossa vida cotidiana um modo de coexistência que valoriza a guerra, a competição, a luta, as hierarquias, a autoridade, o poder, a procriação, o crescimento, a apropriação de recursos e a justificação racional do controle e da dominação dos outros por meio da apropriação da verdade”. A antítese da cultura patriarcal é o que Maturana chamava de Cultura Matrística originária (importante não confundir com a ideia de matriarcado, que tem o mesmo sentido de patriarcado) observada nos povos pré-patriarcais que habitavam a Antiga Europa (seis mil anos atrás), e que se tratava de “uma cultura na qual homens e mulheres podem participar de um modo de vida centrado em uma cooperação não-hierárquica”, atributos que evidenciavam a existência de uma cultura “centrada no amor (alteridade) e na estética, na consciência da harmonia espontânea de todo o vivo e do não-vivo, em seu fluxo contínuo de ciclos entrelaçados de transformação de vida e morte”.
Esta concepção de Maturana está amparada não só nos seus estudos sobre os seres vivos (ver sua obra El árbol del conocimiento: las bases biológicas del entendimiento humano, de 1984, escrita em parceria com o biólogo chileno Francisco Varela), mas também nos estudos da arqueóloga lituana Marija Gimbutas (1921-1994), para quem o início desse processo civilizador do Ocidente foi fortemente impactado por invasões patrocinadas pelos povos pastores guerreiros indo-europeus ou arianos, vindos das estepes euroasiáticas, ocorridas entre sete e seis mil anos atrás, também conhecida por ondas kurgan, que teriam mudado radicalmente o padrão cultural até então predominante dos povos pré-patriarcais (povos de culturas matrísticas) que habitavam a Antiga Europa. Essas descobertas de Gimbutas são tratadas nos seus últimos livros: The Goddesses and Gods of Old Europe (1974), The Language of the Goddesses (1989) e The Civilization of the Goddess (1991).
Essa hipótese foi apresentada por Gimbutas em 1956, na qual ela combinava pesquisas de arqueologia e linguística com o objetivo de colher evidências no estudo dos povos de língua proto-indo-europeia. Ela mapeou três ondas migratórias desses povos kurgan que devastaram populações inteiras e causaram um enorme choque cultural na Antiga Europa: Primeira Onda, de 4300-4200 a.C.; Segunda Onda, de 3400-3200 a.C.; e Terceira Onda, de 3000-2800 a.C. “Graças ao número crescente de datações com radiocarbono, hoje é possível traçar as várias ondas migratórias dos pastoralistas da estepe ou povo kurgo, as quais varreram a Europa pré-histórica”, afirmava Gimbutas.
Um dos estudos mais aprofundados sobre este longo processo de ruptura cultural está registrado no livro O Cálice e a Espada: nossa história, nosso futuro (1ª edição em 1987, prefaciado por Humberto Maturana), da socióloga austríaca Riane Eisler, no qual ela aborda não só o trabalho de Gimbutas mas de outros renomados arqueólogos como o britânico James Mellaart, que chamou essas ondas kurgan de “padrão desintegrador”. Eisler reuniu muitos dados arqueológicos que demonstram como a “encruzilhada evolutiva em nossa pré-história, quando a sociedade humana foi violentamente transformada”. Ela se refere à gradual passagem da “sociedade de parceria” para a “sociedade de dominação”, ocorrida ao longo de aproximadamente 1500 anos. Amparada em estudos de conceituados arqueólogos, antropólogos e sociólogos, Eisler defende a ideia de que houve uma “transformação cultural”, a partir de uma revisão socioantropológica de como se deu a evolução das sociedades humanas, na qual ela propõe dois modelos básicos de sociedade: “O primeiro, que eu denominaria modelo dominador, é popularmente chamado patriarcado ou matriarcado – a supremacia de uma metade da humanidade sobre a outra. O segundo, no qual as relações sociais se baseiam primordialmente no princípio de união em vez da supremacia, pode ser mais bem descrito como modelo de parceria.”
Inclusive quanto a esse aspecto de que a “sociedade de parceria” era o padrão vigente na Antiga Europa, a longa pesquisa empreendida por Graeber e Wengrow parece convergir com a pesquisa de Eisler e Gimbutas, quando eles sugerem:
“Se de fato quiséssemos chegar a uma conclusão geral sobre a forma original das sociedades humanas, com base nas frequências estatísticas dos indicadores de saúde extraídos das sepulturas antigas, teríamos de chegar à conclusão contrária à de Hobbes (e de Steven Pinker): poderíamos dizer que, na origem, a nossa espécie é uma espécie que cuida e atende aos seus semelhantes, e não havia nada que tornasse necessário que a vida fosse sórdida, brutal ou curta.”
Dentre as muitas referências utilizadas por Eisler, está também o filósofo, antropólogo e arqueólogo Gordon Childe. Embora alguns o vissem como marxista, ele não aceitava a justificativa da luta de classes como principal indutor de mudança social. Eisler valeu-se dos estudos de Childe, consignados no seu livro intitulado The Dawn of European Civilization (em português recebeu o título A Pré-história da Sociedade Europeia, editora Europa-América, 1974), publicado em 1925, com o qual ganhou enorme notoriedade.
Ao contrário do que pensam os hobbesianos, Eisler afirma que “um dos traços mais notáveis e instigantes da antiga sociedade europeia revelada pela pá arqueológica é seu caráter essencialmente pacífico”. Para entender a grande bifurcação cultural que se deu à medida em que a guerra se transformou em regra entre os povos indo-europeus, ela recorreu também aos estudos de Childe. Para ele, a cultura dos europeus primitivos era “pacífica” e “democrática”, sem traços de “chefes concentrando a riqueza das comunidades”, o que o levou à conclusão de que “a antiga ideologia foi modificada, o que pode refletir uma mudança da organização da sociedade, de matrilinear para patrilinear”. E isso é evidenciado em sítios arqueológicos como o da Creta minoica (em referência ao lendário rei Minos), investigada pelo arqueólogo grego Nicolas Platon, e os assentamentos neolíticos de Çatal Hüyük e Hacılar Höyük estudados por Gimbutas e Mellaart, situados na região chamada Planalto da Anatólia que compreende a atual Turquia, os quais foram devastados na época das incursões kurgan.
Nesta acepção, a cultura patriarcal constitui o modo de viver que permeou toda a trajetória da humanidade nos últimos seis ou sete mil anos, tendo, inclusive, forjado uma visão muito peculiar acerca da evolução das sociedades. A própria ideia de Civilização, do homem que se concentra na cidade e organiza a divisão social, que tanto o senso comum quanto a Ciência e a Filosofia entendem como sendo um estágio avançado das sociedades humanas, alcançado a partir da transição ocorrida com a chamada revolução do neolítico ou revolução agrícola, foi concebida a partir de um modelo reducionista e linear de pensamento. Segundo este modelo, o que existiu antes da civilização foi antecedido primeiro por uma fase de “selvageria” (caçadores-coletores) e depois de “barbárie” (agricultores e pastores). A este respeito, o sociólogo estadunidense Immanuel Wallerstein fez a seguinte reflexão crítica: “somos mais civilizados? Eu não sei. Esse é um conceito dúbio, primeiro porque o civilizado causa mais problemas que o não civilizado; os civilizados tentam destruir os bárbaros, não são os bárbaros que tentam destruir os civilizados. Os civilizados definem os bárbaros: os outros são bárbaros; nós, os civilizados.”
O fato é que o longo período das incursões kurgan, dada as evidências arqueológicas e antropológicas documentadas por Gimbutas e Eisler, parece um argumento bem razoável para explicar a “queda” do homem de seu estado primordial matrístico. Portanto, trata-se da mais provável origem da profunda transformação cultural que terminou por desencadear na evolução humana uma dissociação entre o biológico e o cultural. A humanidade ficou, desde então, aprisionada num grande impasse cognitivo, que o biólogo e antropólogo inglês Gregory Bateson, autor do conceito de cismogênese (o termo significa “criação da divisão”, tendência a um padrão de comportamento em que indivíduos se definem em contraposição uns aos outros), expressou da seguinte forma: “a fonte de todos os problemas de hoje é o hiato entre como pensamos e como a natureza funciona”. Resumindo, a vida matrística está no DNA da nossa espécie, conflitando por milênios com o desvio patriarcal desencadeado pelo ideário guerreiro kurgan. Contrariando a sordidez da lógica hobbesiana – competitiva, excludente e predatória – do sistema-mundo capitalista, podemos agora afirmar que “a origem antropológica do Homo sapiens não se deu através da competição, mas sim através da cooperação”, como sustentava Maturana.
“Como acabamos aprisionados?”
O processo de autoconservação, constitutivo da Cultura
Maturana sustentava, amparando-se em estudos de registros fósseis de 3,5 milhões de anos, de primatas hominídeos que precederam o Homo sapiens, que a origem do humano está no surgimento da Linguagem e no seu entrelaçamento com a Emoção. O âmago do modo de viver humano está nesse entrelaçamento, ao contrário do que pensa o senso comum que dá centralidade à razão e à objetividade nas nossas ações, entendimento que constituiu a base do desenvolvimento da Ciência Moderna, surgida nos séculos XVI e XVII, na Europa. Como ele mesmo dizia, “todo sistema racional tem um fundamento emocional”. No entanto, “pertencemos a uma cultura que dá ao racional uma validade transcendente, e ao que provém de nossas emoções, um caráter arbitrário.”
Daí resultam duas premissas sobre o comportamento humano e de suas sociedades, ou seja, de sua Cultura, que, segundo Maturana, explicam as origens desses dois modos de sociabilidade (o patriarcal que definiu o modo de vida ocidental, desencadeado com as ondas kurgan, e o pré-patriarcal ou matrístico originário, que vigorava na Antiga Europa), como parte de uma fenomenologia cultural que direciona e condiciona o modo de viver do animal humano. São elas:
1) O viver humano está fundado no emocional e não no racional, a despeito de toda uma longuíssima construção filosófica e científica ter sido histórica e culturalmente desenvolvida em sentido contrário, o qual Maturana definia nos seguintes termos:
“A vida humana, como toda vida animal, é vivida no fluxo emocional que constitui, a cada instante, o cenário básico a partir do qual surgem nossas ações. Além disso, creio que são nossas emoções (desejos, preferências, medos, ambições…) – e não a razão – que determinam, a cada momento, o que fazemos ou deixamos de fazer. Cada vez que afirmamos que nossa conduta é racional, os argumentos que esgrimimos nessa afirmação ocultam os fundamentos emocionais em que ela se apoia, assim como aqueles a partir dos quais surge nosso suposto comportamento racional.”
2) A deriva evolutiva que deu origem à linhagem do primata Homo sapiens foi fortemente influenciada pelo aparecimento e desenvolvimento da linguagem, que Maturana chamava de “linguajear” e sintetizava nos seguintes termos:
“Nós, humanos, surgimos na história da família dos primatas bípedes à qual pertencemos quando o linguajear – como maneira de conviver em coordenações de coordenações comportamentais consensuais – deixou de ser um fenômeno ocasional. (…) Além disso, penso que, ao surgir como um modo de operar na convivência, o linguajear apareceu necessariamente entrelaçado com o emocionar.”
É a partir dessas duas premissas e do entrelaçamento recursivo entre o emocionar e o conversar que Maturana observava como uma Cultura é forjada e se conserva como modo de viver, isto é, como surgem os padrões de comportamento que sustentam o cotidiano das sociedades humanas. Essa noção de Cultura é caracterizada por Maturana como “uma rede fechada de conversações que constitui e define uma maneira de convivência humana como uma rede de coordenações de emoções e ações”. Portanto, “uma cultura é, constitutivamente, um sistema conservador fechado, que gera seus membros à medida que eles a realizam por meio de sua participação nas conversações que a constituem e definem”. E uma cultura “desaparece ou muda quando tal rede de conversações deixa de ser preservada.”
Em razão dessas premissas e considerações sobre a noção de Cultura, Maturana afirmava que “se não entendermos que o curso das ações humanas segue o das emoções, não poderemos compreender a trajetória da história da humanidade.” Daí a importância de compreendermos o processo civilizatório e sua agonia atual a partir da noção de Cultura, compreendendo-a como capacidades desenvolvidas, no sentido antropológico do termo, no qual criamos crenças, valores, moral, técnicas, convenções, instituições, costumes etc., que, em conjunto, expressam as visões de mundo por meio das quais se desencadeiam dois tipos de comportamento observados nas culturas humanas: somos impelidos a querer moldar a nossa realidade segundo a nossa vontade patriarcal de controle e dominação (o caso da cultura de dominação ocidental na qual estamos imersos), ou nos adaptamos e nos integramos aos nossos contextos ambientais (modelo observado nas culturas dos povos originários, provavelmente remanescentes das culturas matrísticas pré-patriarcais).
Assim, essas duas culturas, a matrística e a patriarcal, que teve como divisor de águas as invasões kurgan, têm a ver com dois casos específicos de modos de viver estudados por Maturana: “um é a cultura básica na qual nós, humanos ocidentais modernos, estamos imersos – a cultura patriarcal europeia. O outro é a cultura que, sabemos agora, a precedeu na Europa e que chamaremos de cultura matrística. Essas duas culturas constituem dois modos diferentes de viver as relações humanas.” Para chegar a essa percepção acerca do que forjou essas duas culturas, Maturana amparava-se também nos achados arqueológicos das pesquisas de Gimbutas, reforçando a hipótese da ocorrência de uma grande transformação cultural no modo de viver do Homo sapiens, promovidas pelas ondas de invasões kurgan.
Houve, conforme essa perspectiva, um longo processo de bifurcação cultural no qual Maturana endossava o trabalho de Gimbutas: “a cultura pré-patriarcal europeia foi brutalmente destruída por povos pastores patriarcais, que hoje chamamos de indo-europeus e que vieram do Leste, há cerca de sete ou seis mil anos”. A partir dessa grande transformação cultural, o patriarcado passou a moldar todo o curso da História. O patriarcado constitui, assim, a matriz cultural do nosso modo de viver, que subjaz a todas as dimensões da experiência humana, inclusive nos âmbitos da Ciência e da Filosofia, tendo tudo o mais se desdobrado a partir dessa dinâmica de apropriação patriarcal, nos mais diversos campos da experiência do projeto civilizatório do Ocidente (com seus reflexos também no mundo oriental).
Estamos, desse modo, presos a um condicionamento cultural gerador de inúmeros massacres e destruições pela História. Isso nos induz a pensar que a conflituosa convivência humana é algo inerente à natureza humana, ideia justificada e aceita pela visão hobbesiana de que “o homem é o lobo do homem”. Pelo contrário, o processo de condicionamento da cultura patriarcal está atrelado a outra dinâmica que é a da autoconservação da Cultura e que Maturana expressava da seguinte forma: “as crianças, homens e mulheres devem tornar-se patriarcais na vida adulta, cada um segundo o seu gênero. Os meninos devem tornar-se competitivos e autoritários, as meninas serviçais e submissas. Os meninos vivem uma vida de contínuas exigências, que negam a aceitação e o respeito pelo outro, próprios de sua infância. As meninas vivem uma vida que as pressiona continuamente para que mergulhem na submissão, que nega o autorrespeito e a dignidade pessoal que adquiriram na infância. A adolescência e seus conflitos correspondem a essa transição.”
Surge aqui uma nova pergunta: Como ocorreu, então, a mudança cultural nesses povos pastores periféricos, antes das três ondas de invasão kurgan na Antiga Europa? Qual seria o fenômeno que teria originado o comportamento patriarcal do povo kurgo? Obviamente, deve ter havido também um longo e gradual processo de transição da cultura matrística original para a patriarcal, também nesses povos pastores guerreiros. A hipótese levantada por Maturana foi a de que isso se deu quando as relações de apropriação e de hierarquia passaram a tornar-se mais frequentes entre os humanos e os outros animais de seu convívio, dentro da vida pastoril dos nossos ancestrais pastores indo-europeus, na qual “a rede de conversações que constituiu a vida pastoril patriarcal se tornou a mesma rede que estruturou o patriarcado”, desencadeando uma “mudança emocional” e, ao mesmo tempo, uma alteração no linguajear, cuja dinâmica comportamental Maturana descreveu no seguinte trecho do seu ensaio Conversações Matrísticas e Patriarcais:
“Se quisermos compreender como ocorreu uma mudança de cultura histórica, teremos de imaginar as condições de vida que tornaram possível a modificação no emocionar sob o qual se deu tal mudança, dando origem a uma rede de conversações que começou a se manter como resultado de sua própria realização.
Voltemos agora ao que creio ter acontecido na adoção do modo de vida pastoril por nossos ancestrais indo-europeus pré-patriarcais. O primeiro passo foi a operação inconsciente que constitui a apropriação, isto é, o estabelecimento de um limite operacional que negou aos lobos o acesso a seu alimento natural, que eram os animais da mesma manada da qual vivia a família que começou tal exclusão. A implementação do limite operacional cedo ou tarde levou à morte dos lobos. Matar um animal não era, seguramente, uma novidade para nossos ancestrais. O caçador tira a vida do animal que irá comer. Contudo, fazer isso e matar um animal restringindo-lhe o acesso a seu alimento natural – e agir assim de modo sistemático – são ações que surgem sob emoções diferentes. No primeiro caso, o caçador realiza um ato sagrado, próprio das coerências do viver no qual uma vida é tirada para que outra possa continuar. No segundo caso, aquele que mata o faz dirigindo-se diretamente à eliminação da vida do animal que mata. Essa matança não é um caso no qual uma vida é tirada para que outra possa prosseguir; aqui, uma vida é suprimida para conservar uma propriedade, que fica definida como tal nesse mesmo ato.
As emoções que tornam essas duas atitudes completamente diferentes são de todo opostas. Na primeira circunstância o animal caçado é um ser sagrado, que é morto como parte do equilíbrio da existência; aqui, o caçador que tira a vida do animal caçado fica agradecido. Na segunda alternativa, o animal cuja vida se tira é uma ameaça à ordem artificial, criada em seu ato pela pessoa que se transforma em pastor. Nessa situação, ela fica orgulhosa. Entretanto, note-se que tão logo as emoções que constituem essas duas ações se tornam aparentes, também fica claro que na ação de caça o animal caçado é um amigo, enquanto que na ação de matar o animal morto é um inimigo.
Com efeito, acho que com a origem do pastoreio surgiu o inimigo – aquele cuja vida a pessoa que se torna um pastor quer destruir para assegurar a nova ordem que se instaura por meio desse ato, que configura a defesa de algo que se transforma em propriedade nessa mesma atitude de defesa. Ou seja: mantenho que a vida pastoril de nossos ancestrais surgiu quando uma família que vivia seguindo os movimentos livres de alguma manada silvestre adotou o hábito de impedir a outros animais – que eram comensais naturais – seu livre acesso à dita manada. Em tal processo, esse hábito se transformou numa característica conservada de modo transgeracional, como forma de vida cotidiana dessa família. Doravante, falarei em caçada apenas para referir-me ao primeiro caso. Na segunda hipótese, falarei em matar ou assassinar.
Além disso, sustento que a adoção desse hábito numa família deve ter comportado, como um traço desse mesmo processo, mudanças adicionais no emocionar. Estas a levaram a incluir, juntamente com o emocionar da apropriação, outras emoções, como a inimizade; a valorização da procriação, bem como a associação da sexualidade das mulheres a esta; o controle da sexualidade das mulheres como procriadoras pelo patriarca e o controle da sexualidade do homem pela mulher como propriedade; a valorização das hierarquias e a obediência como características intrínsecas da rede de conversações que constituiu o modo pastoril de vida.”
Inclusive, sobre essa ideia, universalmente aceita, que elegeu o lobo como animal símbolo e justificador de que a Natureza, incluindo-se a dos seres humanos, é inerentemente um ambiente hostil e, portanto, ela deve ser dominada e controlada, Maturana fazia a seguinte observação: “notemos que nos mitos patriarcais o lobo é o grande inimigo. Fala-se do lobo como cruel e sanguinário, mas ele não o é. Em sua vida silvestre, esse animal não ataca o ser humano. O que ele procura são os animais que sempre lhe serviram de alimento, os quais são protegidos pelos humanos em seu pastoreio. É no aparecimento do patriarcado que o lobo surge como inimigo, num processo associado à perda de confiança no mundo natural que ele reforça.”
Em suma, as duas premissas de Maturana, destacadas acima, mostram que tudo que fazemos – e que, portanto, cria o mundo no qual imaginamos viver –, está condicionado ao emocional e à linguagem. Fazendo um paralelo com a nossa sombria atualidade, é fácil percebermos isso observando como tanto a linguagem quanto as emoções, que sustentam a visão tecno-economicista de mundo hegemônica e suas estruturas de pensamento, têm características muito peculiares nos comportamentos e nas interações humanas, seja por parte das lideranças governamentais e empresariais, seja do lado do senso comum. A dinâmica do mundo atual só é compreensível e explicável, por exemplo, pela linguagem da economia e da tecnologia – assim como na época do cristianismo era explicada pela linguagem da teologia –, por isso, a lógica capitalista torna-se praticamente irrefutável – não há como vislumbrar outro mundo possível –, e, portanto, fechada a outras narrativas e visões de mundo, estabelecendo-se desse modo um enorme bloqueio cognitivo que nos aprisiona na subjetivação de uma cultura de dominação milenar.
Estamos, desse modo, presos ao condicionamento cultural patriarcal, que, ao tentar dar um sentido à condição humana apoiando-se, por exemplo, nos mitos do progresso e da superioridade da espécie, terminaram por nos colocar numa conflituosa prisão cognitiva da qual será muito difícil vislumbrar uma saída, pois, uma vez sedimentado um novo modo de viver nos agrupamentos humanos, este assume um status altamente conservador, como bem identificou Humberto Maturana:
“Uma cultura é, constitutivamente, um sistema conservador fechado, que gera seus membros à medida que eles a realizam por meio de sua participação nas conversações que a constituem e a definem. (…) Ao crescer como membro de uma cultura, cresce-se imerso de modo natural e como algo que se aceita como próprio e espontaneamente desejado. Isso ocorre numa rede de conversações que implicam um emocionar que especifica, operacionalmente, o conjunto de premissas que fundamenta as distintas argumentações racionais dessa cultura. Para os membros da comunidade que a vivem, uma cultura é um âmbito de verdades evidentes. Elas não requerem justificação e seu fundamento não se vê nem se investiga, a menos que no futuro dessa comunidade surja um conflito cultural que leve a tal reflexão. Esta última é a nossa situação atual. Como membros da cultura patriarcal europeia, vivemos duas culturas opostas numa só.”
Esse “sistema conservador fechado” explica, em boa medida, a dissonância cognitiva humana, o nosso aprisionamento às sucessivas visões de mundo, todas de cunho dominador, que foram sendo criadas pela cultura patriarcal milenar, cujo principal fundamento está na ilusão de separação e dominação da Natureza e de apropriação da verdade. Essa abordagem nos ajuda a compreender melhor a condição do Homo sapiens moderno e, assim, abre-se uma alternativa de investigação mais razoável para escaparmos das travas cognitivas que sempre tentaram perceber a realidade apenas pelas lentes da teologia e da teleologia, para as quais o mundo humano seria supostamente resultante do desdobramento de um processo progressivo de superação de imperfeições, um mundo governado por Deus e pela Razão, símbolos da perfeição desejada pelos ideais greco-judaicos – o Télos que o “espírito do tempo” estaria nos reservando para um futuro que tem se revelado cada vez mais irrealizável. A História não é guiada por um “espírito do tempo”, mas sim pela agonia patriarcal milenar.
Todas as cosmovisões já vivenciadas, desde o teocentrismo da idade média, passando pelo antropocentrismo da cultura renascentista e moderna, que foi mesclado com o mecanicismo determinista iniciado no século XVII e degenerou no tecno-economicismo atual, e até mesmo a aposta no transumanismo que emanou do Vale do Silício (que poderá num futuro próximo derrapar para um totalitarismo de quem comanda os algoritmos, a temida “deriva orwelliana” que Amin Maalouf também alerta em seu livro), constituem desdobramentos da cultura patriarcal. Por isso, o permanente autoengano da condição humana moderna, hoje refletido no negacionismo das mudanças climáticas, na falácia da transição energética e na negligência dos líderes mundiais, frente à ameaça existencial que esse novo contexto de policrise global representa.
O desconhecimento de trabalhos tão significativos como as descobertas arqueológicas de Gimbutas, disponíveis desde 1956, o inestimável legado científico de Maturana (autopoiese, acoplamento estrutural, biologia da cognição, alteridade etc.), demonstrando o inarredável caráter biocentrado das dinâmicas que sustentam a teia da vida, a pouca relevância dada a obras de fato propositivas para uma mudança de cultura, como a de Luiz Marques e a de Riane Eisler, aqui referenciadas, são apenas alguns dos muitos exemplos que poderíamos elencar para demonstrar como opera silenciosamente esse processo de autoconservação e o bloqueio cognitivo por ele gerado, infligido pela cultura patriarcal do Ocidente.
“E exatamente até que ponto estamos de fato presos?”
No fio da navalha entre a agonia multipolar e uma governança global democrática restauradora
A marcha da história da civilização ocidental, que se iniciou com as expansões kurgan na Antiga Europa, é, desse modo, orientada por pulsões de controle e de dominação cujo poder de destruição – não só entre os humanos, mas sobretudo do ecossistema Terra –, potencializou-se e amplificou-se na mesma proporção das ferramentas criadas pelo Homo historicus. A cultura patriarcal revela-se, conforme contextualizado aqui, como principal elemento constitutivo do processo histórico e civilizatório, propulsor do que hoje a Ciência vem chamando de Antropoceno, essa nova época planetária em que os efeitos da atividade humana certamente desencadearão, nos próximos milênios, uma profunda modificação na estrutura geológica da Terra, colocando a humanidade num gravíssimo estado de vulnerabilidade global que vem, pouco a pouco, ganhando contornos de crise existencial.
Diante de um impasse civilizatório de tal magnitude, seria então o caso de considerarmos que tanto a noção de História quanto a de Civilização, com as quais tanto nos aferramos, não passaram de uma inútil tentativa de domesticar as pulsões autodestrutivas despertadas pela predominância da cultura patriarcal? Diante da real perspectiva de ameaça existencial, há razões para nutrirmos algum otimismo sobre o futuro da humanidade? Essas agonias atualmente em curso teriam o condam de desencadear novos padrões comportamentais, sugerindo que a dinâmica patriarcal milenar pode estar chegando tanto ao seu ápice quanto ao seu esgotamento neste século XXI? Enfim, qual a possibilidade de uma nova bifurcação cultural que recupere a vida ancestral do animal humano, de modo a reconciliá-lo com sua condição matrística original?
Muitos atores políticos estão apostando que a saída para essa policrise do sistema-mundo capitalista, que irrompeu de forma avassaladora neste início do século XXI e que, inclusive, já incomoda até mesmo o seleto clube de Davos, está em suplantar a hegemonia do Ocidente – capitaneada pelos EUA nos últimos 130 anos – por meio de uma nova ordem mundial multipolar. Para viabilizar esse novo rumo civilizatório, aqueles mais inclinados a uma visão marxista da História apostam na emergência do projeto asiático, tendo China e Rússia como principais protagonistas. Os eventos globais atualmente em curso, forçando o eixo geopolítico e geoeconômico do Oeste para o Leste, ensejam que estaria sendo gestada uma nova ordem capaz de minar a supremacia estadunidense, representando uma redenção para os muitos impasses e conflitos que vêm convulsionando crescentemente o mundo.
De fato, os eventos globais mais recentes indicam que o mundo caminha para uma ordem multipolar, mas nada garante que ela forjará um novo padrão civilizatório e será, desse modo, redentora para a humanidade. Essa nova ordem multipolar é, provavelmente, apenas o resultado da ocidentalização da Ásia, ou seja, o efeito colateral da extrapolação, para o Oriente, da dinâmica neoliberal que financeirizou a economia global, haja vista que todo esse movimento geopolítico, ocorrido nas últimas quatro décadas, vem acompanhado do fortalecimento do novo capitalismo de vigilância, ao custo da debilitação da integridade do Estado-nação, das democracias e do ecossistema Terra, fenômeno que alcança todos os recantos do mundo. Portanto, o que está em curso é certamente uma agudização da cultura patriarcal, que, apesar de antes ter sido sustentada pelo projeto do Ocidente – colonizador, expansionista e predatório –, seus efeitos destrutivos eram, de muitos modos, atenuados pela abundância de recursos naturais (na época ainda intocados) e pelas moderações da alternância de poder de muitos regimes democráticos, especialmente nos EUA e na Europa, que hoje estão num acelerado e perigoso declínio.
A antevisão de que estaríamos caminhando para uma nova ordem multipolar, estabilizadora do sistema-mundo capitalista, revela-se, nessa perspectiva, mais uma utopia de querer tentar regular os conflitos humanos por meio de dinâmicas de poder patriarcais, como tantas outras já testadas no passado. Inclusive porque não há registro de que ao longo de todo o processo civilizatório, que foi guiado pelos ideais greco-judaicos, tenha existido um verdadeiro mundo multipolar, duradouro e pacificado. Ao contrário, o que existiu de mais parecido com um mundo multipolar ocorreu bem antes da longa hegemonia do cristianismo, quando muitos impérios se digladiavam permanentemente entre si, nos primórdios da cultura patriarcal, pós invasões kurgan. Essa época está bem descrita na passagem a seguir do livro Uma Breve História do Futuro (Novo Século, 2008), do escritor e economista francês Jacques Attali, na qual ele relata uma fase da história que ele chama de Ordem Imperial (aproximadamente de 6000 a 1300 a. C.), que foi sucedida pela Ordem Comercial (equivalente ao que chamamos hoje de “democracia de mercado” e que vigora até os dias atuais), e que converge com o processo de surgimento e sedimentação da cultura patriarcal, a partir das ondas expansionistas dos povos pastores guerreiros kurgan:
“Há seis mil anos, alguns reinos reúnem povoados e tribos espalhados em territórios cada vez maiores. O sagrado se apaga diante da força, o religioso, diante do militar. O trabalho dos homens é obtido por meio da violência e o saber essencial se transforma naquele que permite produzir o excedente agrícola. Os objetos não têm mais nome próprio, nem personalidade. São artefatos, passíveis de troca, instrumentos. A escravidão do maior número é a condição da liberdade de uma minoria. O chefe de cada reino ou império é a um só tempo príncipe, sacerdote e chefe de guerra, aquele que domina o tempo e a força, o Homem-Deus. Só ele está autorizado a deixar traços da sua morte por um túmulo identificável. Os outros morrem ainda no anonimato. É, portanto, com o príncipe que nasce a noção de indivíduo. É também com a sua ditadura que surge o sonho de liberdade. (…)
Nessa fase, no planeta, mais de cinquenta impérios convivem, combatem entre si ou se esgotam. É cada vez mais difícil administrar conjuntos cada vez mais vastos. São necessários mais e mais escravos, soldados e terras. A própria Ordem Imperial começa a perder sentido: a força já não basta.”
Após esse longo período de permanente conflagração multipolar, ocorrido na antiguidade, foi que afloraram os ideais do Ocidente. Foi o momento em que gregos, fenícios e judeus romperão com o entendimento cíclico sobre o mundo e passaram a direcionar os desejos humanos para o progresso, a razão, a metafísica, a novidade, a ação e a estética, como meios de alcançar uma redenção humana na História, face à destrutividade vivenciada no tempo dos impérios. Foi nesse contexto que irrompeu o ideal greco-judaico que orientou o turbulento processo civilizatório do Ocidente, tendo alcançado uma escala planetária no final do século passado, com a globalização da doutrina neoliberal.
O que a História tem mostrado é que, após instalado o modo de viver do animal humano sob o condicionamento da cultura patriarcal, só começou a haver alguns lapsos de apaziguamento na convivência humana quando se conseguiu estabelecer consensos entre a política (quem decide sobre os desejos humanos) e o poder (e quem os realiza). No início desse instável jogo de necessidades de dominação e apropriação, a política ficou por muito tempo a cargo das religiões monoteístas, sobretudo do cristianismo, e depois foi distribuída pelos Estados-nação, enquanto o poder foi, gradualmente, sendo submetido aos imperativos do mercado. Daí em diante, o tortuoso processo civilizatório, assentado na cultura patriarcal, foi mantido pela permanência dessa frágil sincronização entre o monopólio da força e a idolatria da mercadoria, nas mãos de algum centro de poder econômico-militar hegemônico.
Foi desse modo que os sucessivos centros comerciais de influência global, que emergiram silenciosamente nas cercanias do Mediterrâneo, há três mil anos, percorreram de Leste a Oeste (Bruges, 1200; Veneza, 1350; Gênova, 1560; Amsterdã, 1620; Londres, 1788; Boston, 1890; Nova Iorque, 1929; Vale do Silício, 1980), inspirando a visão hegeliana de que “a Europa é o fim da história universal, e a Ásia é o começo”. Ao mercado coube a função de atender às necessidades humanas de apropriação e ao cristianismo e, na sequência, aos Estados-nação, o monopólio da força. O conflito humano passou, então, a constituir a norma da dinâmica histórica e civilizatória, verdade constatada em dados históricos apresentados recentemente pelo teólogo Leonardo Boff, ao refletir sobre a atual guerra entre Israel e o mundo islâmico: “segundo o historiador Alfred Weber, irmão de Max Weber, dos 3.400 anos de história da humanidade que podemos datar com documentos, 3.166 foram de guerra. Os restantes 234 não foram certamente de paz, mas de trégua e de preparação para outra guerra.”
O fato é que o atual contexto geopolítico de pré-anarquia global indica que estamos caminhando para uma situação em que “a ordem do mundo”, conforme prevê Attali, “se unificará em torno de um mercado que se tornará planetário, sem Estado”. A ideia de um mundo multipolar, pacífico e democrático, não cabe nesse contexto totalizante que está aflorando, como bem argumentou Attali:
“Semelhante ordem policêntrica não poderá se manter porque, por natureza, o mercado é conquistador. Não aceita limites, divisão de territórios, tréguas. Não assinará tratados de paz com os Estados. Recusará deixar-lhes competências. Logo se estenderá a todos os serviços públicos e esvaziará os governos (mesmo aqueles da ordem policêntrica) das suas últimas prerrogativas, inclusive as da soberania.”
A multipolaridade que já começa a se delinear hoje com o ingresso de novas potências regionais – posicionando-se no mesmo patamar de influência geopolítica do decadente império estadunidense e da desorientada União Europeia – como, China, Rússia, Índia e outros emergentes da Ásia e do Sul Global, no fundo, está nos arrastando para uma convergência de conflitos jamais vista na História. O que ocorre hoje na Ucrânia, na Faixa de Gaza e, talvez em breve, na cobiçada Taiwan, representa só o início de uma profunda anarquia global, num horizonte muito próximo. Se a cultura patriarcal milenar começou a prevalecer com as incursões kurgan há seis mil anos, seguida pela insuportável tribulação de um mundo com “mais de cinquenta impérios”, é razoável imaginar que ela possa se esgotar na confluência das agonias contemporâneas (iminência de colapso ambiental, perspectiva de conflagração nuclear e declínio global dos regimes democráticos), que provavelmente serão ainda mais agudizadas com essa nova desordem multipolar global que vem irrompendo.
Um mundo permanentemente convulsionado pela hegemonia do tecno-economicismo será, infelizmente, o cenário mais provável para as próximas décadas, nas quais a humanidade provavelmente estará se equilibrando no fio da navalha, entre o colapso ambiental ou nuclear da nova desordem multipolar, de um lado, e a construção de uma instância de governança democrática global, de outro, que seja capaz de adotar uma política de civilização para restaurar os fundamentos originários da evolução humana, truncados pelas ondas kurgan. Uma nova política civilizatória restauradora deveria, portanto, contemplar pelo menos as seguintes abordagens: a implementação de estratégias de redução gradual da sobrecarga populacional sobre a Terra (não há como manter mais de 8 bilhões sem desestabilizar o planeta – antes da ruptura kurgan, a população oscilava em cerca de apenas 4 milhões de habitantes), para mitigar o já perigosíssimo déficit de biocapacidade de regeneração; o resgate do sentido de comunidade, do pluralismo de modos de vida e da preservação dos bens comuns (atributos característicos dos povos pré-patriarcais), que foram destruídos pelas relações narcisistas, excludentes e predatórias da dinâmica capitalista; e a formulação de uma nova economia relacional, que recupere o seu sentido original que é dar centralidade à vida e ao cuidado da nossa única Casa Comum.
As pesquisas de Eisler também trazem um alento, nesse sentido de que uma mutação civilizacional restauradora pode estar em curso. Sua abordagem para compreender a “transformação cultural” patrocinada pelas invasões kurgan se ampara também nas recentes Ciências da Complexidade, especialmente na teoria do caos e na auto-organização dos sistemas, em que grandes mudanças podem ser explicadas “nos pontos de bifurcação e nas encruzilhadas críticos dos sistemas”. Essa ideia a faz pensar que o atual “modelo de dominação aparentemente está chegando a seus limites lógicos” e que “hoje nos encontramos em outro ponto de bifurcação potencialmente decisivo”. Essa perspectiva nos dá algum otimismo, que é perceber que um processo de reversão cultural já está em andamento, como nunca antes na História, por uma infinidade de microiniciativas, reintegradoras e convergentes, que atuam na contramão da atual engrenagem tecnocapitalista beligerante e ecocida. As milhares de organizações que integram o chamado terceiro setor da economia, que seguem a lógica do voluntarismo, da solidariedade e do bem-comum (diferentemente dos dois Leviatãs: o de Hobbes, o Estado soberano absoluto garantidor da ordem, e o de Karl Marx, o poder insano do Capital, gerador de desigualdades e predador da Natureza), é talvez a evidência mais forte desse fenômeno. Assim como as invasões kurgan emergiram a partir de pequenas perturbações nas bordas da cultura matrística original, resta apostarmos no movimento periférico daqueles que operam, hoje, por fora das dinâmicas de poder militar, religiosa e, sobretudo, mercadológica, a mais letal na atualidade.
Chegou o tempo de acreditarmos que não estamos definitivamente condenados a viver sob as ilusões de dominação e hierarquia do patriarcado, como imaginou Hobbes. Como todo o percurso civilizatório foi forjado a partir de um modo de viver patriarcal, dentro de um processo multissecular, tendemos a pensar que a cultura de dominação e competição constitui um atributo existencial da condição humana e, o que é pior, nós a antropomorfizamos projetando-a na Natureza – daí a origem da nossa crise de percepção da realidade tão bem identificada por Bateson. Precisamos agora compreender que a agonia da cultura patriarcal na qual estamos imerso é circunstancial, como Maturana, Eisler, Gimbutas e outros aqui mencionados sustentam. Portanto, se foi possível imergir nesse modo de viver autodestrutivo, promovido pelas ondas kurgan, é também razoável imaginar que podemos nos libertar dele, se adotarmos e preservarmos, especialmente no âmbito das estruturas de pensamento e de poder patriarcal, um novo entrelaçar de linguagens e emoções matrísticas.
O ativista indígena Ailton Krenak, com sua cosmovisão integradora, que é muito peculiar aos povos originários, naturalmente matrísticos em sua relação com o mundo, vale frisar, parece ter intuído bem a aflição humana contemporânea, ao afirmar que qualquer futuro imaginável que inclua a nossa espécie será, seguramente, um “futuro ancestral”.
Quero crer que ainda é possível restaurar esse nosso longínquo passado ancestral; que o nosso degradado planeta Terra ainda tem resiliência – não já comprometeu a ultrapassagem dos pontos de inflexão climática que inviabilizariam nossa permanência no planeta – para suportar a agressão antrópica por algum tempo; que ainda é muito cedo para afirmar que a visão de mundo dos ultraliberais hobbesianos, veneradores do mercado, é imutável; que não seremos colapsados pela insensatez de uma nuvem nuclear ou pela inépcia na mitigação do processo de colapso climático, agora em acelerado andamento; enfim, que a humanidade não está irremediavelmente condenada à escuridão da cultura de morte inaugurada pelos povos guerreiros kurgan, conservada durante milênios por sacerdotes, generais e mercadores.
“Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas,
são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado,
esse futuro é ancestral, porque já estava aqui.” (Ailton Krenak)
ANTÔNIO SALES RIOS NETO – Servidor público federal. Estudioso da cultura patriarcal (entendida como principal elemento constitutivo do processo civilizatório e propulsor do antropoceno) e das novas abordagens da Complexidade (um dos meios de superação do patriarcado). Coordenador, representando o Brasil, do projeto “La Emergencia de los Enfoques de la Complejidad en América Latina”, iniciativa da Comunidad de Pensamento Complejo (CPC), sediada na Argentina.
Leitura recomendada
ATTALI, Jacques. Uma breve história do futuro. São Paulo: Novo Século Editora, 2008.
EISLER, Riane. O cálice e a espada: nosso passado, nosso futuro. São Paulo: Palas Athena, 2007.
FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. Porto Alegre: LP&M Editores, 2010.
GRAEBER, David; WENGROW, David. O despertar de tudo: uma nova história da humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. Edição eletrônica.
KRENAK, Ailton. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
LA BOÉTIE, Étienne. Discurso Sobre a Servidão Voluntária (1549). L.C.C. Publicações Eletrônicas, 2006. Disponível aqui.
MAALOUF, Amin. O naufrágio das civilizações: Um olhar profundo sobre o nosso tempo para entender três feridas do mundo moderno: os conflitos identitários, o islamismo radical e o ultraliberalismo. São Paulo: Vestígio, 2022.
MARQUES, Luiz. Capitalismo e colapso ambiental. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.
MARQUES, Luiz. O decênio decisivo: propostas para uma política de sobrevivência. São Paulo: Editora Elefante, 2023.
MATURANA, Humberto R. Conversações matrísticas e patriarcais. In: ______; VERDEN-ZÖLLER, G. Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano. São Paulo: Palas Athena, 2004.
MATURANA, Humberto R. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.
MATURANA, Humberto R.; VARELA, Francisco J. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2010.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Tradução por Nélson Jahr Garcia. Edição eletrônica.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato social. Tradução de Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM. Edição eletrônica.
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