Nascido em 16 de novembro de 1951, na cidade de Provins, na França, François Abou Salem — originalmente François Gaspar — viria a desempenhar um papel central na construção de uma tradição teatral verdadeiramente nacional na Palestina. Filho de Loránd Gáspár, poeta e cirurgião húngaro radicado na França, e de Francine Gáspár, figurinista e cenógrafa, François foi levado ainda criança para Jerusalém, quando seu pai assumiu a direção do hospital francês da cidade, em 1954.
A família se estabeleceu na parte oriental de Jerusalém, onde Abou Salem cresceu até os treze anos. Com o agravamento da situação política e buscando prosseguir os estudos, foi enviado ao Líbano para cursar o ensino secundário no Collège Notre Dame de Jamhour. De lá, partiu para a França, onde estudou teatro nas cidades de Estrasburgo e Paris, integrando-se ao Théâtre du Soleil, grupo experimental liderado por Ariane Mnouchkine. Embora os registros sobre essa etapa da sua vida sejam escassos, ela foi decisiva para a formação artística que traria de volta ao retornar à Palestina.
Instalado novamente em Jerusalém no início dos anos 1970, Abou Salem começou a atuar como bibliotecário da École biblique et archéologique française, fotógrafo de imprensa e, principalmente, como ator e diretor de teatro. Nesse momento, adotou o sobrenome Abou Salem, como afirmação de sua identidade árabe-palestina. O gesto era, em si, uma tomada de posição: ao contrário da postura assimilacionista típica de muitos filhos de colonos europeus, Abou Salem se comprometia integralmente com a construção de uma cultura nacional palestina, sob ocupação estrangeira.
Experimentos teatrais e primeiras companhias
Em 1971, fundou o grupo Balalin (“Os Balões”, em árabe), uma companhia experimental com sede em Jerusalém. Embora tenha deixado o grupo devido a divergências internas, deu continuidade ao projeto com a criação da Bilā līn em 1974. A nova formação, que contava com atores como Emile Ashrawi, Mohammad Anis e Adel al-Tartir — todos nomes que depois se destacariam no teatro palestino — foi responsável por mais de meia dúzia de peças encenadas entre 1971 e 1976.
Entre elas estão Qiṭʿat hayat (Pedaço de Vida), al-Atma (A Escuridão), al-Kanz (O Tesouro), al-Qaʿida wa-l-istithnaʾ (A Regra e a Exceção, inspirada em Brecht), al-Ibra (O Exemplo), Musaraʿa hurra (Combate Livre) e Lamma enjannayna (Quando Ficamos Loucos). A abordagem do grupo se diferenciava da prática comum da época ao evitar textos prontos e recorrer à escrita coletiva e à improvisação, discutindo de maneira crítica as contradições da sociedade palestina sob ocupação e o peso das tradições conservadoras, especialmente sobre as mulheres.
Esse período consolidou Abou Salem como um dos principais nomes da arte cênica palestina e estabeleceu as bases para o passo seguinte: a criação de uma companhia profissional com reconhecimento internacional.
El-Hakawati: uma nova etapa
Em 1977, junto a Jackie Lubeck, sua então companheira, fundou a companhia El-Hakawati, nome que faz referência ao contador de histórias tradicional no mundo árabe. O grupo pretendia romper com a ideia de que o teatro era uma prática exógena, europeia, e reaproximá-lo das formas locais de expressão cultural. A estreia, com a peça Bism al-abb wa-l-umm wa-l-ibn (Em nome do pai, da mãe e do filho), em outubro de 1978, foi um marco: provocadora, a montagem denunciava tanto a repressão sionista quanto o autoritarismo familiar, abrindo caminho para uma nova forma de teatro político.
Em 1980, o grupo iniciou uma turnê internacional por diversos países da Europa e do norte da África, tornando-se a primeira companhia teatral palestina a se apresentar fora da Palestina. No mesmo ano, encenou Mahjoub Mahjoub, peça que alcançou enorme sucesso com mais de 120 apresentações. Em seguida vieram Alf layla wa layla fi suq al-lahhamin (Mil e Uma Noites no Mercado dos Açougueiros), em 1982, e Jalili ya ‘Ali (Ali, o Galileu), em 1983, aprofundando a crítica social e o trabalho de resgate cultural.
O Teatro Nacional Palestino
Em 1984, o grupo assumiu a gestão do antigo cinema Al-Nuzha, no coração de Jerusalém Oriental, então abandonado. Após meses de trabalho coletivo, transformaram o espaço no primeiro teatro nacional palestino. O local contava com dois auditórios: um principal, com capacidade para 400 pessoas — hoje batizado Sala François Abou Salem — e um menor, de 150 lugares, que recebeu o nome do poeta nacional Samih al-Qasim.
Com melhor infraestrutura técnica, o El-Hakawati pôde expandir seu alcance, acolhendo outras companhias, artistas, cineastas e músicos. Exposições, mostras de cinema e eventos literários passaram a compor a programação, consolidando o teatro como referência cultural em Jerusalém ocupada. Em 1998, o então presidente da Autoridade Palestina, Yasser Arafat, concedeu a Abou Salem o Prêmio Palestina de Teatro em reconhecimento à sua contribuição à cultura nacional.
A partir dos anos 2000, a instituição passou a se chamar oficialmente Teatro Nacional Palestino – El-Hakawati. Até hoje, é o único teatro ainda em funcionamento em Jerusalém Oriental.
Obra e legado
A produção artística de Abou Salem inclui dezenas de peças originais e adaptações de obras internacionais. Entre as criações autorais estão Qissat al-‘ayn wa-l-sinn (1986), Qissat Kufur Shamma (1987), Ariha ‘am sifr (1994), Mutel (1997) e Fi dhill al-shahid (2011). Adaptou autores como Brecht, Dario Fo, Kafka, Jarry e o poeta medieval Farid al-Din Attar. Também trouxe para o palco obras da literatura árabe, como Dhakirat al-nisyan, de Mahmud Darwix, e a epopeia Gilgamesh.
Dirigiu dois filmes, Bread and Salt (1978) e Jerusalem, Gates to the City (1995), e encenou óperas em festivais europeus, como O Rapto do Serralho de Mozart, Carmen de Bizet e Romeu e Julieta de Gounod.
Sua morte, em 1º de outubro de 2011, por suicídio em al-Tira, Ramala, representou uma perda irreparável para a cena cultural palestina.