Mais uma dose das minhas memórias

por Izaías Almada

Ano de 1995

Senti um arrepio pelo corpo, como já sentira em outras ocasiões. Uma sensação que conhecia muito bem, pois me remetia a uma espécie de aviso de sobrevivência. A última vez, dois ou três anos antes, foi em Lisboa.

Tinha ido visitar um amigo em Campo de Ourique, bairro da classe média lisboeta e freqüentado por intelectuais e artistas. Ia pela rua do bonde, ou do elétrico como dizem os portugueses, preocupado como sempre com a minha sobrevivência num país que não era o meu. Olhava para as pessoas que passavam, mas é como se não as visse.

Nesse caminhar quase mecânico distingui uma fisionomia que me pareceu conhecida e fixei o olhar no tipo moreno de bigodes que vinha em sentido contrário a uns trinta passos à minha frente. Ele percebeu que estava sendo olhado.

À medida que nos aproximamos um do outro, senti-me ridículo e até constrangido, mas não consegui tirar os olhos do gajo. Eu não gostava de passar por pessoas conhecidas sem cumprimentá-las, muito menos por um amigo – se assim fosse – a quem não via há muito tempo. Cruzamo-nos enigmáticos e em silêncio.

Não olhei para trás. Tinha a certeza de que conhecia aquela figura. Alguém que estivera preso junto comigo? Alguém que conhecera recentemente? Curioso, caminhei mais dois quarteirões e a revelação se fez: o homem era adido cultural da embaixada brasileira em Lisboa, figurinha carimbada no esquema de governo do então presidente Collor de Melo.

O indivíduo dera naqueles dias uma entrevista chamando a imprensa portuguesa de primitiva e granjeara imensa antipatia à sua volta. Pensei seriamente em voltar e interpelar o filho da mãe, encher-lhe os cornos de porrada, pois entre outras mazelas, pesava sobre o tipo a acusação, verdadeira ou não, de que recebera dinheiro do esquema de PC Farias, um dos homens da confiança de Collor de Melo.

O coração disparou, mas achei que não valia à pena correr o risco. Afinal, não se tratava de um problema pessoal. Seria apenas uma ação isolada, que até poderia contar com a simpatia de muitos portugueses e brasileiros, ou não, mas que se esgotaria ali mesmo naquela rua de Lisboa.

Ao contrário, poderia trazer-me problemas maiores por se tratar de um funcionário da embaixada brasileira, até mesmo a minha expulsão do país.

O episódio, logo esquecido, serviu – no entanto – para lançar-me em reflexões que já não conseguia evitar há dois ou três anos, sendo o tal adido cultural um exemplo vivo e inquietante daquilo que me preocupava: passei alguns anos da minha vida em movimentos de contestação e lutas políticas coletivas e agora me debatia com grande dificuldade pela própria sobrevivência.

Mudei-me para o exterior na tentativa de evitar um gesto isolado de violência, irresponsável, embora cultivasse com firmeza a idéia de que o Brasil precisava de uma grande tragédia que provocasse mudanças estruturais. Não agüentava mais ouvir no meu país o discurso falso, enfadonho e repetitivo da modernidade e do primeiro mundismo.

Foi quando pensei, pela primeira vez, na possibilidade de me locupletar sem importar com os meios que me levassem a isso. Pensei num assalto a banco, em golpes com cartões de crédito, em seqüestro de um figurão. Porra! Se o trabalho e o exercício honesto de uma profissão deixavam, cada vez mais e com enorme rapidez, de conferir dignidade e orgulho às pessoas, por que não me tornar também um “espertalhão”, corrupto, um homem do meu tempo? Um brasileiro acima de qualquer suspeita, como muitos à minha volta.

Assustei-me ao ser dominado por esses pensamentos. Ainda bem que vivia em Lisboa: não só o fato de viver em outro país chamava-me de volta à realidade, como a cidade em si exercia sobre mim um efeito encantador, de paz e tranqüilidade, servindo como antídoto adequado contra a mediocridade que deixei para trás em São Paulo, cidade onde passei os últimos trinta e dois anos da minha vida até aquele momento.

Meus amigos portugueses não entendiam lá muito bem o porquê desse encanto, já que estavam sempre a falar mal de Lisboa e de Portugal. Parece que as pessoas nunca estão contentes em seu próprio país.

O amigo, comissário da TAP, a quem eu ia visitar, não estava em casa. Morava entre Lisboa e Cascais, na simpática freguesia de Carcavelos. Decidi-me por ir até a pastelaria mais próxima, beber uma bica (o cafezinho) e ler o jornal, enquanto esperava o Alfredo, que trabalhava na TAP, chegar a sua casa. Havíamos combinado sair para jantar aquela noite. Precisava contar ao amigo os problemas que eu enfrentava no casamento.

A figura do adido cultural, com quem acabara de cruzar na rua, gravou-se na minha memória, sendo visível a sua arrogância de brasileiro mal formado e informado, que considerava todos os portugueses como donos de padaria no Brasil e personagens de piadas. A tal ponto, que tivera a deselegância de chamar, na casa do anfitrião, a sua imprensa de primitiva.

Pensei em escrever para um dos jornais diários de Lisboa pedindo desculpas em nome do povo brasileiro. Bobagem. Na verdade, o tal adido cultural era um legítimo representante do moderno poder no Brasil, da sua elite nordestina e rural, urbana e sulista, ambas carcomidas pelo mais avassalador conservadorismo.

Eu não conseguia evitar as lembranças de minha primeira viagem a Lisboa. Quando conheci o país, minha primeira viagem internacional feita vinte anos antes, integrando uma Companhia de Teatro assim que deixei a prisão, foi tal o meu encantamento, que uma sensação de bem estar, de liberdade e de vida nova jamais me abandonariam. Curiosamente em um Portugal sem Salazar, mas ainda salazarista, foi o que encontrei na primeira viagem.

Verão, mês de junho. O sol se pondo às nove da noite deixava-me sempre fascinado. A atriz e produtora Ruth Escobar, nascida em Portugal, conseguiu levar para Lisboa a peça de Fernando Arrabal “Cemitério de Automóveis”, grande sucesso na cidade de São Paulo alguns anos antes e que foi sucesso também na terra de Camões e Fernando Pessoa.

Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.

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Last Update: 24/05/2025