Vem das notícias dos mais recentes dias:
“Mahmoud al-Haw é um dos vários palestinianos reunidos junto a uma sopa dos pobres, abanando freneticamente as taças vazias. Na linha da frente, crianças choram e empunham baldes de plástico, na esperança de receber algumas conchas de sopa. O homem avança até à sua vez, ritual que pratica todos os dias, por temer que os seus quatro filhos estejam a morrer à fome.
Através das ruínas de Jabalia, no norte de Gaza, Haw passa até seis horas entre multidões que, tal como ele, ambicionam recolher o bastante para alimentar a sua família. Por vezes, tem sorte, e encontra sopa de lentilhas. Outras, regressa a casa de mãos a abanar”.
E mais, que bom seria se fosse menos ou nada mais:
“Tenho uma filha doente. Não lhe posso dar nada. Não há pão, não há nada. Estou aqui desde as oito da manhã, só para ter um prato para seis pessoas, quando não chega para uma pessoa”, confessou o homem de 39 anos, à agência Reuters’. “As crianças estão a morrer”. A busca desenfreada por comida em Gaza
“O controle de Israel sobre os alimentos e a ajuda a Gaza tem sido um tema constante nos últimos 18 meses. De fato, apenas duas semanas após o início da campanha militar maciça de Israel na Faixa de Gaza no final de 2023, a Oxfam International informou que apenas cerca de 2% da quantidade normal de alimentos estava sendo entregue aos residentes no território e alertou contra o “uso da fome como arma de guerra” Israel prometeu uma “quantidade básica” de alimentos para Gaza – mas suas políticas já criaram um risco catastrófico de fome para milhões de pessoas
Essas notícias me remetem ao grande livro “É isto um homem?” de Primo Levi, que releio nestes dias por dever e necessidade de ofício para novo romance. Esta era a fome no campo de concentração nazista, em páginas do relato do indispensável escritor:
“Os companheiros dormem. Respiram, roncam, alguns se queixam e falam. Muitos estalam os lábios e mexem os maxilares. Sonham que comem; esse também é um sonho de todos, um sonho cruel; quem criou o mito de Tântalo devia conhecê-lo. Não apenas se vê a comida; sente-se na mão, clara, concreta; percebe-se seu cheiro, gordo e penetrante; aproximam-na de nós, até tocar nossos lábios; logo sobrevém algum fato, cada vez diferente, e o ato se interrompe. Então o sonho se dissolve, cinde-se em seus elementos, mas recompõe-se logo, recomeça, semelhante e diverso; e isso sem descanso, para cada um de nós, a cada noite enquanto a alvorada não vem…
Aprendemos o valor dos alimentos; nós também, agora, raspamos o fundo da gamela, e a seguramos debaixo do queixo quando comemos pão, para não desperdiçar migalhas. Nós também, agora, sabemos que não é a mesma coisa receber uma concha de sopa retirada da superfície, ou do fundo do panelão, e já estamos em condições de calcular, na base da capacidade dos diversos panelões, qual é o lugar mais conveniente quando entramos na fila”.
E já perto do fim do inferno, Primo Levi narra a véspera da libertação do campo pelos Exército Vermelho, quando os nazistas fugiram em debandada:
“Extrair as batatas não era um trabalho fácil. Por causa do gelo, a terra estava dura como mármore. Precisava-se dar duro com a picareta para furar a crosta e destapar o depósito. A maioria de nós, porém, preferia entrar pelos furos deixados pelos outros, penetrar profundamente na abertura e alcançar as batatas aos companheiros que esperavam fora.
Um velho húngaro tinha sido colhido lá pela morte. Jazia duro na postura do faminto: a cabeça e os ombros por baixo da terra, o ventre na neve, estendendo as mãos para as batatas. Os que chegaram depois afastaram um pouco o cadáver e, desobstruída a abertura, retomaram o trabalho.”
É uma tragédia irônica, a ofender profunda o nosso coração, que descendentes dos assassinados por nazistas apliquem hoje a execução pela fome nos campos de Gaza. O que Primo Levi diria dessa traição de valores de fraternidade? É isto um homem? Mas sinto que eles próprios, os soldados do Estado de Israel, sabem que não são homens. E por isso matam como feras enlouquecidas.
A minha capacidade e incapacidade de ficcionista não me permitem escrever à semelhança de Primo Levi. Nem mesmo fazer uma tentativa de caricatura. Sou incapaz. Então posso dizer que aos soldados do Estado fascista de Israel se aplica a pergunta de Primo Levi: é isto um homem? E respondo por fim: – Esses assassinos, que cometem mais uma vez crime de guerra contra a humanidade, não são homens. Levanta-te do túmulo, Primo Levi! Fala de novo “é isto um homem?”.