Num país marcado por profundas desigualdades e pela forte presença da religião no espaço público, nota-se a associação da fé — especialmente a evangélica — a grupos criminosos. Para a pesquisadora Magali Cunha, do Instituto de Estudos da Religião (ISER) e do Conselho Mundial de Igrejas, esse fenômeno exige atenção e deve ser analisado com cuidado, sem simplificações.
Em entrevista ao programa TVGGN 20 Horas desta sexta-feira (23/05), Magali critica o termo “narcopentecostalismo”, usado por setores da mídia e da academia. Segundo ela, a expressão é imprecisa e promove uma associação indevida entre crime e religiosidade.
“É um grande erro a gente chamar esse fenômeno de narcopentecostalismo. Não se pode atribuir a um grupo religioso o prefixo ‘narco’, dizer que esse grupo é relacionado ao narcotráfico. Isso não é verdade”, afirma a pesquisadora.
Segundo a pesquisadora, o que de fato ocorre é a adesão individual ou familiar à fé evangélica por parte de pessoas envolvidas com o crime. Em muitos casos, essa conversão acontece dentro das prisões, onde grupos evangélicos têm forte presença histórica. “Há uma tradição evangélica de trabalho social nos presídios, de visitar, acolher, apoiar. Isso vem da própria leitura bíblica: ‘Estive preso e me visitaste’”, lembra Magali, citando o Evangelho de Mateus.
Prisões loteadas por religiões
Mas esse trabalho social, que por vezes resulta em transformações reais na vida dos detentos, também pode ser distorcido por uma lógica de controle. Magali denuncia que hoje, especialmente no sistema carcerário do Rio de Janeiro, há uma espécie de “loteamento religioso” das prisões. Detentos são separados conforme sua filiação religiosa, e aqueles ligados a igrejas evangélicas — especialmente as mais alinhadas com lideranças que gozam de prestígio dentro do sistema — recebem tratamento diferenciado.
“Quem é evangélico ou católico tem um tipo de acolhimento. Quem é ligado a religiões de matriz africana, por outro lado, é visto como cidadão de segunda classe”. Essa seletividade, segundo ela, reforça desigualdades religiosas e raciais dentro do sistema penal e se converte, na prática, em mais um instrumento de poder.
“Limpar o território”: intolerância como justificativa
Um aspecto especialmente alarmante desse cenário é a ligação entre crime, fé e intolerância religiosa. Há registros de grupos criminosos destruindo terreiros de religiões afro-brasileiras, motivados por uma suposta “missão de purificação espiritual”.
Magali aponta que isso frequentemente ocorre em nome de uma fé adotada pelos próprios criminosos, ou pelas famílias a que pertencem. “É comum ouvir que estão ‘limpando o território de religiões demoníacas’. Isso se deve à demonização histórica das religiões afro, vistas como ‘do mal’ por uma leitura fundamentalista”, explica.
No entanto, essa lógica tem raízes mais profundas. Para Magali, há uma afinidade histórica e emocional entre fé e crime que não é nova, e tampouco exclusiva do mundo evangélico. Ela cita o exemplo dos bicheiros cariocas, frequentemente ligados ao catolicismo, e da máfia italiana, que historicamente cultivou laços com a Igreja Católica. “Não se fala em ‘narcocatolicismo’ quando se trata disso. Por que então rotular os evangélicos?”, questiona.
A instrumentalização política
Além do crime, a religião também é amplamente instrumentalizada no campo político, e muitas vezes as duas esferas se cruzam. A presença de líderes religiosos na política brasileira, especialmente da chamada “direita cristã” pode ser ilustrada com influenciadores digitais e pastores celebridades usando sua visibilidade para conquistar espaço no Congresso e em outras esferas de poder. Personagens como Pablo Marçal, Nikolas Ferreira e o Pastor Mirim são exemplos dessa nova dinâmica.
“Quando se mistura religião com política ou com o crime, a fé deixa de ser apenas um espaço de transcendência e se transforma em ferramenta de domínio”, adverte.
O cenário descrito por Magali Cunha revela que o entrelaçamento entre religião e crime no Brasil é muito mais complexo do que parece à primeira vista. Trata-se de uma disputa por poder simbólico e territorial, em que a fé é apropriada, distorcida e usada como ferramenta de legitimação.
“Precisamos olhar com cuidado para esse fenômeno, sem cair em rótulos fáceis. É preciso entender que são pessoas, histórias, contextos diferentes. E que a religião, como tudo, pode ser usada para o bem ou para o mal”, conclui a pesquisadora.
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