A ideia de que todas as correntes da esquerda radical podem um dia se unir para conformar uma única organização centralizada é, claro, ingênua. A complexidade do mundo contemporâneo e a fragmentação da classe trabalhadora impõem a existência de várias organizações socialistas. É inevitável que, no curso da luta, surjam distintas compreensões sobre o país, o mundo, as formas organizativas e as tarefas dos revolucionários. Essa é a base objetiva mais profunda da divisão dos socialistas. A unidade pode e deve ocorrer em um nível mais elevado, por exemplo, na construção de um instrumento como o PSOL, um partido socialista amplo que, por admitir correntes organizadas em seu interior, serve de abrigo político e frente eleitoral para socialistas de vários matizes. Parece difícil exigir da história mais do que isso. Até onde o horizonte histórico permite vislumbrar, permaneceremos divididos.
Mas divisão é diferente de fragmentação e dispersão. A divisão é um fato objetivo e até certo ponto inevitável. Já a fragmentação e a dispersão, ainda que também operem sobre bases objetivas (um tempo sem revoluções, de questionamento e crise do projeto socialista), são enfermidades de cunho subjetivo, causadas pela incapacidade dos revolucionários de garantir a unidade de suas organizações mesmo diante de divergências às vezes táticas e secundárias. Ao final e ao cabo, rupturas não são fenômenos da natureza. São o desenlace de uma série de processos e decisões humanas e por isso não se pode menosprezar seu componente subjetivo.
Como apontou Glória Trogo em um texto recente, nas últimas décadas, nos parecemos com Sísifo, que, por enganar os deuses tantas vezes, foi condenado a erguer uma enorme pedra montanha acima e vê-la rolar de volta toda vez que chegava ao cume. Construímos coletivos, adquirimos certo peso na realidade, mas nossas organizações se rompem diante da primeira divergência séria, reiniciando um ciclo infernal que parece infinito, como a punição aplicada contra aquele que foi o mais esperto dos mortais. Esse círculo vicioso acrescenta ainda mais angústia à vida militante e aprofunda a crise que vivemos.
A pergunta que surge é: como construir organizações não-sectárias, com a vocação para intervir na luta de classes e ao mesmo tempo capazes de suportar as inúmeras e às vezes profundas divergências que surgem da própria prática e reflexão militante em um mundo turbulento? Sem pretender esgotar a questão (haveria muitos outros temas a abordar), analisaremos três elementos: a autoridade da direção, o regime interno e a visão de mundo.
O problema da autoridade
A atual fragmentação dos revolucionários contrasta com a unidade conquistada pelo bolchevismo ao longo dos cerca de 30 anos de sua existência, desde o final do século 19, até mais ou menos 1927, ano da expulsão da Oposição de Esquerda do Partido Comunista Russo e início da divisão (e logo dispersão) do movimento revolucionário.
Em todos os episódios mais dramáticos e importantes da história do bolchevismo, a autoridade de Lênin parece despontar como fator determinante (embora não único) para a unidade do partido. Mesmo antes da tomada do poder, Lênin não deixa dúvidas de sua incrível capacidade dirigente. Funda o bolchevismo em uma dura luta contra as concepções terroristas do movimento populista; derrota ideologicamente o espontaneísmo ao forjar uma organização política centralizada nacionalmente; formula a concepção de revolução que guiará o bolchevismo até 1917, mas ao mesmo tempo não hesita em introduzir modificações na teoria quando a realidade o exige. Com o refluxo de 1907-1910, se dedica às questões filosóficas e teóricas mais abstratas que ameaçam contaminar o movimento revolucionário com uma visão metafísica sobre a relação entre o sujeito e o mundo objetivo. Durante a Primeira Guerra Mundial, lidera um bloco internacionalista contra o chauvinismo no qual se encontram mergulhados os dirigentes históricos da social-democracia internacional. Lênin chega a 1917 como um dirigente completamente maduro, que soube conduzir a organização em cada virada, em cada luta, sempre equilibrando a luta pelos princípios com a necessária flexibilidade política e organizativa. Suas posições não são de todo inquestionáveis, e o partido passa por crises que ameaçam a unidade, mas sua palavra tem um peso desproporcional. O balanço de cada fato dá razão a Lênin e amplia sua autoridade.
De fevereiro a outubro de 1917, a autoridade pessoal de Lênin é decuplicada. Demonstra a correção de seu ponto de vista contra a opinião de uma boa parte da organização em várias ocasiões: quando, ao chegar à Rússia vindo do exílio, chama o partido a ser oposição de esquerda ao Governo Provisório (uma parte da direção bolchevique pensava que Lênin estava apenas “mal informado” e que desistiria dessa posição em breve); quando recusa uma ação esquerdista em julho; quando defende a Frente Única com Kérenski contra Kornílov em agosto; quando advoga pelo boicote ao pré-parlamento em setembro e, finalmente, quando passa à luta pelo poder em outubro.
Com a vitória da insurreição, esse processo só se aprofunda: Lênin está certo contra a opinião da maioria quando defende uma paz a qualquer preço em Brest-Litovski; quando aceita oficiais czaristas no Exército Vermelho; quando defende que a única forma de avançar em direção ao socialismo em uma Rússia atrasada e isolada é fazer concessões ao capitalismo (Nova Política Econômica – NEP).
A autoridade de Lênin é tão grande e cresce em tamanha desproporção a cada novo evento que isso impede que ele cumpra a tarefa estratégica de qualquer dirigente: a construção de sua própria superação dialética – a renovação da direção. Como anotou o historiador francês Pierre Broué em sua monumental história do partido bolchevique, com o tempo, os discípulos de Lênin estavam demasiado acostumados e ceder diante dele, e isso paralisa o processo de sucessão. Ninguém, nem mesmo um coletivo de dirigentes, é capaz de substituir o mestre. Pelo menos não sob o regime do centralismo democrático.
O que nos ensina esse processo? Algumas coisas. Talvez a principal lição seja a ideia de que é impossível centralizar e manter a unidade de uma organização unicamente em base à autoridade. Alguns de nós elegeram parlamentares e conquistaram sindicatos. Mas quem de nós dirigiu uma revolução? Quem de nós pelo menos viu uma revolução? Quem de nós acertou em quase tudo e certamente no essencial? Quem de nós construiu uma organização de dezenas de milhares de militantes disciplinados, organizados e formados?
A autoridade pessoal de algum dirigente, ou mesmo a de um coletivo, parece muito pouco para evitar a explosão de uma organização quando as diferenças se tornam insuportáveis. A direção revolucionária neste século 21 é uma engenharia complexa. Não pode espelhar o modelo que imperou nos partidos que, ao longo do século 20, tinham referência no bolchevismo e que recebiam por herança parte da autoridade dessa corrente histórica. No nosso tempo, não adianta gritar, ameaçar, bater com a mão na mesa. É preciso ser mais flexível, mais gentil, mais paciente e admitir que ninguém é Lênin, que nenhuma corrente atualmente existente é o embrião do futuro partido revolucionário. Com uma direção verdadeiramente coletiva, baseada não na autoridade conquistada (porque ela é muito pouca), mas no programa, na confiança mútua e na aposta no futuro, pode-se talvez navegar com um pouco mais de segurança nas águas agitadas do nosso tempo, sempre pensando que vamos errar, que será preciso admitir o erro e corrigi-lo com humildade.
O regime interno
Essa inflexão tolerante e paciente com nós mesmos não implica em abandonar o preceito fundamental do centralismo democrático. Ao contrário. Só pode manter a unidade uma organização que aplique a fundo a ideia de que as políticas votadas por maioria se aplicam e depois faz-se o balanço. O caminho aparentemente indolor de formas como o horizontalismo, o federalismo ou o consenso progressivo não têm sido mais eficazes que o centralismo democrático em impedir as rupturas e resolver as crises. O que sim se necessita é um centralismo democrático capaz de absorver as inevitáveis lutas, ao mesmo tempo em que promove a intervenção na realidade.
O partido de tipo leninista se caracteriza por levar às últimas consequências a ideia de que o conhecimento é social. A verdade não está em um documento genial que propõe uma nova linha. Está em uma longa cadeia de eventos em que a organização formula coletivamente uma política, aplica essa política de maneira centralizada através de seus “tentáculos” (organismos de base), recebe da realidade as respostas e reações, envia essas respostas de volta pela estrutura organizativa até a direção, que finalmente corrigirá parcial ou totalmente a linha, iniciando um novo ciclo. Ou seja, trata-se da visão profundamente marxista de que a verdade é um processo – e um processo material (prático). Chega-se a ela por aproximações sucessivas. Ela também é sempre parcial e provisória. Nessas aproximações sucessivas, a elaboração e a ação coletivas cumprem um papel determinante. Por isso, o centralismo democrático é o melhor regime interno. É o que permite esse mecanismo de aproximação coletiva da verdade fluir, resultando (idealmente) em políticas cada vez mais precisas e ajustadas à realidade.
Mas o centralismo democrático tem muitos outros mecanismos. Ele precisa de balanços periódicos e honestos das políticas aplicadas; precisa que o conjunto da organização (que aplicou na prática a política) se engaje nesses balanços e garanta que as conclusões cheguem à direção. Os balanços de uma organização séria não podem servir à luta fracional: nem ser ufanistas ou autoindulgentes, nem pisotear os camaradas que cometeram erros. O critério para a elaboração de um balanço não é mostrar quem estava certo desde o início, mas o aperfeiçoamento da linha.
O centralismo democrático precisa de uma direção formada segundo critérios claros: capacidade política e dedicação profissional. Ao mesmo tempo, a direção não pode ser uma abstração ideal. Ela precisa expressar a organização em todos os seus aspectos: suas distintas sensibilidades políticas, origens regionais, raça, gênero, orientação sexual, tarefas, gerações. O regime centralista democrático precisa de congressos periódicos que possam resolver questões, votar linhas, aliviar a pressão, repactuar as relações fraturadas, restabelecer a confiança entre os quadros, promover a renovação da direção. No regime centralista democrático, os gabinetes parlamentares, figuras públicas e sindicatos devem estar sob o controle coletivo da organização. A corrente não pode ser uma federação de trabalhos semi-independentes entre si, cada um respondendo à sua própria base e às suas próprias pressões. É necessária uma estrutura profissional de quadros organizados nacionalmente em organismos reais, vibrantes, que discutem, dividem tarefas, votam, definem prioridades. Por fim, mas não menos importante: o regime centralista democrático precisa de organismos de base que funcionem, reúnam, formem, organizem, eduquem, coloquem a militância em ação.
Em um regime centralista democrático, maioria e minoria têm responsabilidades. A maioria tem o direito de dirigir a organização segundo a linha votada no congresso. Mas precisa ser sábia: medir, prever crises; se preciso, recuar e transigir; estender a mão à minoria e chamá-la a dirigir a organização juntos, confiar nos camaradas, na discussão e na própria realidade. A minoria também tem as suas responsabilidades: acatar disciplinadamente o resultado desfavorável, aplicar a linha votada como qualquer militante, ter paciência, não transformar cada discussão em um minicongresso que retoma questões já superadas, seguir adiante e aguardar o momento e o fórum adequados para a revisão da linha.
Não há, claro, uma receita fixa. São critérios gerais. Cada organização precisa avaliar como concretiza esses e outros elementos do centralismo democrático de forma a criar uma corrente plástica, viva, não-monolítica. Para isso, uma compressão correta do centralismo democrático segue sendo chave.
A visão de mundo
Essa talvez seja a questão mais complexa. Em primeiro lugar, é preciso rejeitar a ideia de que as organizações socialistas revolucionárias devem ser homogêneas, ou pior: monolíticas. Nada menos leninista do que uma organização que tem uma “posição oficial” sobre tudo: da queda do Muro de Berlim à Guerra do Peloponeso, passando pela IA e redes sociais, natureza do materialismo dialético, física quântica e tendências culturais e artísticas da atualidade. Uma organização revolucionária no século 21 é necessariamente heterogênea, não deve buscar uma centralização das posições relativas a fatos históricos, características particulares do mundo contemporâneo, vida privada etc. Aliás, não apenas no século 21. É bom lembrar que, nos tempos de Lênin, a discussão sobre questões gerais era absolutamente livre e até pública. Lênin convivia tranquilamente dentro do partido bolchevique com figuras pitorescas como Aleksandr Bogdánov, um médico deísta, teórico do movimento “proletkult” por uma nova cultura proletária e que morreu fazendo experiências com transfusão de sangue em si mesmo. Lênin não concordava em quase nada com Bogdánov. Entre uma partida de xadrez e outra (jogavam juntos), combatia com fervor as posições de seu amigo. Mas nunca propôs a sua expulsão. Bogdánov permaneceu no partido bolchevique até quando quis. Depois morreu sozinho em seu laboratório.
Quer isso dizer que, dentro de uma organização revolucionária, as questões relativas à visão de mundo não importam? Absolutamente, não. O problema reside em saber quais questões são efetivamente importantes na construção de uma corrente anticapitalista. Toda corrente política revolucionária, se quer ser um instrumento útil na luta de classes (e não um clube de discussão), deve desenvolver uma visão comum sobre o mundo em que vive. Mas essa visão não pode abarcar tudo. É preciso centrar nos debates que realmente afetam o programa revolucionário: caracterização do capitalismo e imperialismo contemporâneos, formação social e econômica do país em que se vive, características da burguesia, morfologia da classe trabalhadora, particularidades do Estado nacional, questões sociais, políticas e econômicas mais importantes etc etc etc.
Sobre questões desse tipo, vale a pena fazer discussões, seminários, buscar posições comuns, inscrever os acúmulos coletivos no programa da organização. Assim como seria errado montar uma corrente nacional em base unicamente à política imediata (que pode mudar amanhã), também seria um erro montar uma organização baseada apenas em conceitos genérico-abstratos: “socialismo”, “revolução”, “proletariado”. A questão é: Qual socialismo? Qual revolução? Qual proletariado? Qual organização? Em que mundo e em que país vivemos? Quais as principais tarefas deste tempo histórico? O que os atuais movimentos contra as opressões podem nos ensinar e qual o seu papel na luta pelo socialismo? Qual nosso projeto para o médio prazo?
Assim, não é possível construir uma organização sólida e ao mesmo tempo não-monolítica sem formação básica marxista para o conjunto da militância, espaços de debate entre todos, boletins internos, publicações, seminários e uma busca permanente pela compreensão do mundo. Nada disso quer dizer que teremos cem por cento de acordo em todas as questões fundamentais. O que importa aqui é o próprio movimento por buscar uma visão comum. Nesse contexto, haverá na organização companheiros que manterão desacordos pontuais com certos acúmulos coletivos. Esse é um mal menor, desde que se aceite a essência do programa da organização. Esse programa só pode ser construído com muito debate, estudo, democracia interna e formação
É possível superar a dispersão?
Como assinalamos anteriormente, a dura realidade que vivemos certamente impõe limites aos nossos desejos de superar a dispersão das forças revolucionárias. Até certo ponto, pode-se dizer que é uma fase pela qual teremos que passar, é parte do nosso luto pelas derrotas do passado, da nossa “melancolia de esquerda”, como indicou o grande historiador italiano Enzo Traverso. Mas a história é história justamente porque é a ação humana no tempo, mediada (se quisermos, limitada) pelas condições objetivas. Provavelmente não seja possível superar a dispersão dos revolucionários nesta quadra histórica, mas talvez possamos torná-la menos dramática. Ao mesmo tempo em que provoca desmoralização, abandono da luta, crise e questionamento das possibilidades do socialismo, o turbilhão de eventos do mundo atual também está fazendo as pessoas pensarem. E quem pensa muda. Nada mais natural porque esses seres humanos conscientes aos quais nos referimos quando falamos da história somos nós mesmos. Há crise e dispersão, mas há também uma importante camada de ativistas espalhados por dezenas de organizações e pequenos grupos socialistas que anseiam e lutam por um outro desfecho. E que estão se questionando, buscando. As próprias organizações estão mudando, reavaliando, corrigindo velhos erros, construindo novas rotas. Outras se encontram em meio a crises porque seu projeto se esgotou e a realidade está batendo à porta a ponto de derrubá-la. Queremos crer que todo esse movimento pode desembocar em algo positivo. Nesse ainda modesto processo de reorganização, nenhuma corrente ou líder individual cumprirá o papel de farol, de guia genial. Se algo de positivo ocorrer, será com o esforço coletivo de todos. Como disse Trótski certa vez, “ninguém pode ser Lênin, mas todos podemos ser leninistas”. Ser uma partícula desse pequeno mas importante movimento talvez seja a maior satisfação que esses tempos ingratos que vivemos – tempos melancólicos – podem nos oferecer.