Baseado no livro “Ney Matogrosso: a biografia”, de Júlio Maria, nas memórias do cantor (“Vira-lata de raça”) e tendo sido acompanhado e “abençoado” pelo próprio Ney, “Homem com H”, escrito e dirigido por Esmir Filho, é um daqueles filmes que precisa ser visto, em primeiro lugar, porque oferece o que há de melhor no cinema: uma história bem contada através da criativa, inteligente e instigante manipulação da câmera, das imagens, do som e tudo mais que faz um filme.
É verdade que a história, no caso, já é um espetáculo, uma vez que estamos falando de uma figura que, ainda em plena atividade aos 83 anos, tem mais de meio século de carreira, é dono de um talento enorme e multifacetado e delicioso ícone da liberdade em seus sentidos mais amplos. Seja a artístico, cultural e criativa. Seja a sexual e política.
Não faltam exemplos de vidas espetaculares que foram transformadas em cinebiografias medíocres. Este, felizmente, não é o caso de “Homem com H”. E não só porque o próprio Ney acompanhou toda a produção muitíssimo de perto.
O filme é digno de Ney exatamente porque consegue transformar algumas das essências do cantor em imagens em movimento e sons. Consegue, nas palavras do diretor Esmir Filho, “traduzir Ney Matogrosso para o cinema”, sendo “ousado, provocativo, debochado e profundo (…), avesso aos hábitos impostos”, e, ao mesmo tempo, uma jornada de afeto e celebração da vida.
Tensionado entre opressão e exercício da liberdade
Esmir falou sobre o desafio em tentar dar conta, em duas horas, de “uma lenda viva da música brasileira, uma força da natureza (…) um homem que canta com o corpo, traduz nossa libido, emana a liberdade que a gente tanto almeja. Uma liberdade que nunca foi dada, mas conquistada”.
Algo particularmente evidente na iluminada interpretação de Jesuíta Barbosa, que, pra além de incorporar a presença de palco, os trejeitos, as caras e bocas do Ney-cantor e “performer”, deixou se impregnar de tal forma pelo artista que consegue carregá-lo e transmiti-lo em olhares que falam, em gestos que dançam, na voz que embala e seduz.
Cobrindo um período que vai dos 17 aos 50 e tantos anos (nos lançando, então, para o presente), o filme parece ser tensionado pelos “extremos” que moldaram a vida e obra do cantor. O da opressão e o do exercício da liberdade, acima de tudo. Mas, também, de uma figura que transborda nos palcos ao mesmo tempo que, na sua vida cotidiana, é contido pelas mesmas dores e marcas que todos e toda nós experimentamos.
Uma bandeira desfraldada nas telas do cinema
Não causa surpresa que algumas das “críticas” recorrentes a Ney também estejam respigando no filme. Principalmente a que teima em afirmar que o cantor nunca assumiu “bandeiras”, mesmo sob a ditadura, deixando de se manifestar sobre questões políticas e sociais.
Crítica que Ney sempre respondeu com inteligente ironia, lembrando que ele próprio foi, durante a vida inteira, uma “enorme bandeira”. Mesma ironia que no filme, inclusive, é utilizada na representação patética da censura ditatorial, numa cena no camarim de um Ney completamente nu. Ou fazendo de si próprio uma bandeira desfradada, se preferirem.
Uma bandeira que sempre se ergueu na luta pela liberdade tendo como contraponto ou obstáculo a opressão que não só caracteriza uma ditadura, mas toda uma sociedade há muito contaminada por distintas formas de marginalização e discriminação que, no filme, são praticamente sintetizadas na figura do pai de Ney, o conservador e preconceituoso militar Antonio Mattogrosso, que no início do filme tenta “arrancar” a homossexualidade de seu filho através de surras e abusos.
Homossexualidade que, no decorrer do filme, é celebrada não só através de cenas recheadas de uma desavergonhada sensualidade homoerótica (tendo, ironicamente, como trilha a música título do filme), como também através de citações que só poderiam emergir de uma equipe marcadamente LGBTI+, a começar pelo diretor e o protagonista.
Afinal, é preciso conhecer nossa história para resgatar as cenas que reproduzem as imagens de corpos masculinos zanzando sensualmente por Ipanema, captadas pelo fotógrafo Alair Gomes, nos anos 1970, ou o quadro, que fica sobre a cama de Ney, presenteado pelo grafiteiro Keith Haring, em 1983, durante o Festival de Montreux (Suiça), mostrando Ney literalmente “soltando os bichos”.
Humano, extremamente humano
O filme ainda possibilita ver um Ney que o grande público desconhece. O artista que teve que encarar o preconceito até mesmo de seus parceiros no Secos & Molhados. O cara que teve muitos, muitíssimos amantes e, quando quis, também esteve com mulheres.
O sujeito que teve uma apaixonada relação com Cazuza (coisa invisibilizada no filme sobre o cantor) e também o homem que transformou seu próprio apartamento em enfermaria para cuidar de Marcos Maria, com que viveu durante 13 anos, quando ele estava morrendo em decorrência de complicações causadas pela Aids.
Tudo isto pontuado e costurado por alguns dos maiores sucessos do cantor que, além de tudo, sempre estabelecem um interessante diálogo com a narrativa. Por exemplo, é impossível não se comover com “inversão poética” que brota de “O mundo é um moinho”, de Cartola, servindo como trilha sonora para a morte do pai. Ou ainda, não dá pra sair do cinema sem estar cantarolando “Eu quero é botar meu bloco na rua”. Não só porque é esta música que, entoada por milhares e milhares, ao vivo, em 2024, fecha a narrativa. Mas porque é assim que Ney nos faz sentir.