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Democracia, capitalismo e anticapitalismo

por Luis Felipe Miguel

Na semana passada, ocorreu na Universidade de Brasília o V Simpósio Nacional sobre Democracia e Desigualdades. Dividi uma mesa com a profª Andréia Galvão, com mediação da cientista política Gabriela Lopes Sales.

Publico aqui a minha intervenção no evento:

Vou começar esta fala com duas citações, que de alguma maneira indicam o caminho que pretendo seguir. A primeira é do falecido Mark Fisher, que em geral nem é um autor do meu panteão. Ele disse, e muita gente cita, que estamos atravessando uma era em que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que imaginar o fim do capitalismo. Esta tirada se tornou, aliás, o subtítulo da edição brasileira do seu livro Realismo capitalista. E é verdade. Mas o fato é que está cada vez mais claro que, se não formos capazes de avançar para o fim do capitalismo, com certeza vamos encarar o fim do mundo.

A segunda citação é de um livro da Anne Phillips, uma importante cientista política também britânica, com origens na esquerda socialista. Ela escreveu, ainda no final do século passado, que “não ganhamos nada ao afirmar a incompatibilidade entre o capitalismo e a democracia, além de um ataque agudo de depressão”.

Minha relação com a frase da Philips é mais ambígua do que a que eu tenho com a frase do Fisher. Ela está dizendo que precisamos buscar maneiras de implementar e aprimorar mecanismos democráticos de gestão da vida social mesmo dentro da sociedade capitalista, já que sua ultrapassagem não está no horizonte. Posso até concordar com isso. Mas, com ataque de depressão ou sem ataque de depressão, se não colocarmos na nossa conta, centralmente, o fato de que o regime capitalista é incompatível com qualquer democracia real, vamos estar vendendo ilusões.

Para começar, é preciso ter em mente que a democracia nunca foi um projeto burguês. Os marxistas popularizaram o conceito de “democracia burguesa” para caracterizar o regime representativo concorrencial que se firmou no Ocidente, mas a expressão leva à impressão errônea de que a democracia procedimental que foi construída no Ocidente ao longo dos séculos XIX e XX correspondia a uma vontade histórica da burguesa. Ou, de forma mais radical, à ideia de que a democracia representaria uma superestrutura política acoplada às relações de produção capitalista, que surgiria como que naturalmente do desenvolvimento da vida econômica capitalista. Estou fazendo aqui uma paráfrase de um texto crítico de Antoni Domènech, mas essa visão – de continuidade necessária entre capitalismo e democracia – tornou-se parte do credo liberal contemporâneo, parte da ideologia pluralista de justificação do capitalismo, na forma de uma homologia entre “liberdade econômica” e “liberdade política”.

(“Liberdade econômica”, vocês sabes, é o apelido que eles dão à competição no mercado.)

Mesmo uma autora como Wendy Brown, reconhecida como uma voz crítica importante nos debates atuais, reproduz a ideia de que democracia, Estado-nação e capitalismo seriam (eu cito) “trigêmeos nascidos no início da modernidade europeia”. Fica patente, assim, que existiria uma interpenetração necessária entre capitalismo e democracia, o que desloca a compreensão da luta de classes nos regimes “democráticos burgueses”.

Embora a democracia tenha se tornado burguesa, ela nunca foi o projeto da burguesia. Seu projeto original era o de uma sociedade liberal, em que direitos eram formalmente estendidos a todos, em particular o direito (abstrato) de propriedade. Rousseau, em sua crítica ao contrato social enganoso que teria dado origem ao Estado, já dizia que os pobres tinham sido levados a abrir mão da única coisa que tinham (a liberdade) para proteger o que não tinham (a propriedade). É mais ou menos isso.

Assim, no projeto liberal, estes direitos ficavam garantidos para todos, contra o arbítrio estatal, mas a participação política era restrita aos proprietários.A ordem política ambicionada pela classe burguesa pouco tinha de democrática. Era baseada na exclusão da maior parte da população e em uma competição restrita à minoria de proprietários. Isto já está presente nos escritos de John Locke, que pode ser contado, por bons motivos, dentre os ideólogos iniciais da burguesia em ascensão.

O liberalismo tornou-se a base comum do pensamento político dos últimos séculos, sobre o qual se estabelecem mesmo as correntes que buscam criticá-lo. (Refiro-me ao liberalismo político, que, embora tenha raízes comuns, possui trajetória diferenciada do liberalismo econômico.) Ele postula uma igualdade abstrata entre todos os seres humanos, nascendo em oposição às hierarquias da ordem feudal e da ordem absolutista, que operam com uma divisão estamental que alardeia a desigualdade. Como regra, este igualitarismo é logo abandonado, em favor da aceitação das assimetrias sociais existentes. Assim, para Locke, como para a maioria dos outros autores liberais iniciais, um déficit considerado natural inferioriza tanto as mulheres quanto as populações não-europeias.

O caso dos trabalhadores é um pouco mais complexo. A chave para a compreensão da teoria política de Locke está na relação entre liberdade e propriedade, que constitui o núcleo daquilo que C. B. Macpherson chamou de “individualismo possessivo”. Por um lado, isso significa que cada pessoa se relacionaria com seus direitos da mesma maneira como se relaciona com suas propriedades externas, isto é, tem a possibilidade de negociá-los ou aliená-los, o que leva à doutrina que legitima todas as formas de subordinação pessoal, desde que sejam produzidas por meio de contratos pretensamente livres e espontâneos.

Por outro lado, aqueles que não têm propriedades se tornam também desprovidos de direitos, a começar pelo mais básico de todos, que é o direito de usufruir dos frutos do próprio trabalho (algo que aparece de forma cristalina nos escritos de Locke). A exclusão de mulheres, de crianças e também de trabalhadores do contrato social é justificada por sua racionalidade inferior, mas também pelo fato de não serem proprietários. Não há solução de continuidade entre uma afirmação e outra: no caso dos trabalhadores, a inferioridade intelectual seria demonstrada por sua própria incapacidade de amealhar riquezas.

Este tipo de raciocínio sustentou as políticas de exclusão dos regimes liberais, como o voto censitário e a diferenciação entre cidadania ativa (aqueles que participavam da gestão da comunidade) e cidadania passiva (quem apenas tinha a obrigação de obedecer às regras estabelecidas). Os regimes de concorrência política que emergem junto com a ascensão da burguesia não são, nem se apresentam como democráticos. Pelo contrário, sempre houve o esforço de garantir que o governo representativo respondesse a uma parcela limitada do povo e impedisse a edificação de um sistema democrático.

Os regimes concorrenciais que hoje aceitamos correntemente como democráticos, alicerçados na igualdade política formal e no sufrágio universal, adaptaram-se à dominação burguesa, é verdade, e tornaram-se mesmo uma espécie de “modelo padrão” para o Estado capitalista. Embora as exceções a este padrão nunca tenham deixado de ser muito numerosas, eram sempre vistas como desvios a serem sanados em algum momento do futuro. Mas eles devem ser entendidos como o resultado de processos históricos contraditórios, em que os excluídos do projeto oligárquico original brigaram por sua inclusão e a obtiveram à medida em que suas lutas obtiveram sucesso. Uma maneira de visualizar este processo é por meio da conquista do sufrágio. Foi a pressão de trabalhadores, de mulheres, de minorias raciais e de outros grupos deixados à margem que expandiu o acesso à franquia eleitoral, o que era acompanhado com temor por alguns e esperança por outros – temor e esperança fundados na mesma crença de que, caso a igualdade política fosse alcançada, não tardaria o dia em que as maiorias dominadas a usariam para promover uma transformação social profunda.

Como sabemos, não foi o que ocorreu.

A concessão dos direitos políticos contribuía para apaziguar conflitos, servia para a validação de todo o sistema e fornecia o feedback necessário para aquilatar os níveis de insatisfação social e, assim, dimensionar as concessões que precisavam ser feitas. Ao mesmo tempo, reduzia a legitimidade de outras formas de ação, mais coletivas e mais ofensivas: para que fazer barricadas, ocupações, greves e motins se era possível expressar a opinião pelo voto? Por suas próprias características, de chamamento a uma participação política isolada e mesmo secreta, o mecanismo da votação conduz ao individualismo, em oposição à ação coletiva de classe, e à acomodação dentro do sistema vigente.

Ainda assim, a democracia liberal encarnou a ideia de que a voz dos dominados precisava de um espaço para ser ouvida no processo de tomada de decisões. Isto levou a uma série de mudanças reais, menos ou mais profundas de acordo com as circunstâncias, culminando no projeto do Estado de bem-estar social, em que o dinheiro dos impostos – isto é, uma taxa retirada da remuneração do capital – sustentava políticas cujo propósito, no fim das contas, era minorar a insegurança existencial da classe trabalhadora sob o capitalismo, garantindo patamares mínimos de sobrevivência (educação para os filhos, acesso à saúde, assistência na velhice). E surpresas vindas de baixo podiam desorganizar o jogo político das elites, permitindo que outsiders alcançassem cargos de poder, por vezes com programas que contrariavam o consenso dos grupos dominantes.

A democracia pode ter sido necessária para a reprodução a longo prazo do capitalismo, protegendo a classe burguesa de sua própria voracidade e obrigando-a a pagar a conta da estabilidade do sistema. Mas não foi seu projeto – como mostra, aliás, sua oposição a todas as políticas redistributivas e seu renitente desejo de reduzir o espaço da decisão democrática, como veremos em seguida.

O regime que se construiu no Ocidente, assim, foi marcado por um equilíbrio instável entre duas pressões contraditórias. De um lado, o poder do voto, concedido às maiorias, que se fazia sentir porque era o caminho necessário para quem quer que buscasse exercer o poder político. Do outro, o poder de veto de grupos minoritários que controlavam recursos escassos – em primeiro lugar, a burguesia, cuja capacidade de influência se manifesta por uma série de mecanismos, menos ou mais sutis.

Não vou me estender aqui sobre os recursos desproporcionais de que a burguesia dispõe para influenciar as decisões públicas. Ela controla as decisões de investimento, das quais depende a saúde da economia, a arrecadação de tributos e, portanto, o financiamento do próprio Estado. Ela controla os recursos financeiros que são o combustível das campanhas eleitorais – para ficar em um único exemplo, as campanhas nos Estados Unidos, no ano passado, consumiram quase US$ 16 bilhões. Estes mesmos recursos levam ao controle dos meios de comunicação, não importa se estamos falando da mídia tradicional ou das big techs, com isso orientando a mentalidade do público. Permitem a contratação de lobistas; nos Estados Unidos, mais uma vez, 98% do dinheiro gasto em lobby se vincula aos interesses de diferentes frações do capital. Permitem ainda a corrupção pura e simples. Por fim, mas não menos importante, o capital organiza a existência da classe trabalhadora, socializando-a de forma inadequada para a ação política democrática, já que o trabalhador não é chamado a participar da tomada de decisões que o afetam, é premiado pela obediência e não pela autonomia. E as condições de vida impostas aos trabalhadores (e ainda mais às trabalhadoras) retiram deles o recurso primário para a participação política, que é o tempo livre.

A democracia é “burguesa” não porque realiza o projeto original da burguesia ou porque suas práticas e instituições encarnam valores especificamente burgueses, mas porque se adapta à dominação da classe burguesa e se organiza em um Estado que é burguês. Como escreveu Claus Offe, trata-se de “um Estado capitalista – e não somente como ‘um Estado dentro da sociedade capitalista’”. Isto é, um Estado em que a dominação de classe está inscrita em sua estrutura.

As democracias se estabeleceram no mundo capitalista, assim, como frutos da luta popular, mas em cenário definido pela dominação burguesa. São democracias limitadas, insuficientes, enviesadas; um purista diria que é inadequado até mesmo usar a palavra “democracia” para classificá-las.

Nem por isso são irrelevantes. E sentimos isso no momento em que elas nos faltam.

Vivemos um período de desdemocratização, no Brasil como no mundo. As democracias entram em declínio por conta de diversos processos simultâneos e interligados. O que eles têm em comum é a redução da capacidade de pressão da classe trabalhadora.

Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular).

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Last Update: 23/05/2025