Esta semana escolhi para análise um filme que me marcou quando assisti há décadas atrás chamado Invasores de Corpos (Invasion of the Body Snatchers, 1978), dirigido por Philip Kaufman, diretor americano de filmes importantes nos anos 1980 e 1990. Nunca esqueci especialmente da cena final, quando o funcionário público Matthew (Donald Sutherland) aponta o dedo para a câmera e começa a gritar. Há um corte e o novo plano mostra que ele está denunciando a dissidente Nancy (Verônica Cartwright). É extremamente impactante e a melhor representação de delação premiada que já vi no cinema.

O filme é a segunda adaptação do romance de Jack Finney, escrito em 1955, década que viu surgir muitos livros de ficção científica nos Estados Unidos na esteira do pós-guerra e em pleno macarthismo. Após esta, outras duas adaptações foram feitas: uma em 1994 e outra em 2007. A história se passa em São Francisco e acompanha um pequeno grupo de amigos que descobre uma invasão silenciosa: formas alienígenas botânicas replicam os corpos humanos durante o sono, destruindo os originais e substituindo-os por cópias fisicamente idênticas, porém com uma personalidade diferente, como se tivessem passado por alguma lavagem cerebral e entrado em algum culto. Esses seres passam a trabalhar como aliciadores de novos entrantes. À medida que a cidade vai sendo tomada por esses “clones perfeitos”, os protagonistas descobrem a verdade, percebem que qualquer um pode ter sido transformado e que não há mais como confiar em ninguém.

Produzido ao final da década de 1970, o filme reflete a conjuntura sócio-histórica que o gerou. Os Estados Unidos estavam imersos numa crise política após o escândalo de Watergate (1974), que culminou com a renúncia de Richard Nixon, e o final vexatório da Guerra do Vietnã.  No plano econômico, a crise do petróleo de 1973 colocou fim ao otimismo do pós-guerra. O modelo de crescimento industrial entrou em crise e, com ele, o chamado “American Dream”. Começava a emergir o neoliberalismo, que pregava a flexibilização do trabalho, a privatização de direitos sociais e a adaptação constante do indivíduo às exigências do mercado. O Estado de bem-estar dava lugar à lógica do desempenho individual. Por fim, o fim das utopias sociais da década de 1960 deu lugar à repressão e à despolitização. Mesmo assim, é nessa época que a crítica cultural materialista começou a surgir como campo de conhecimento em oposição à corrente pós-estruturalista francesa que havia dominado as décadas anteriores.

A relevância do enredo está na metáfora da transformação de indivíduos conscientes em alienados políticos. Ao dormir, perdem sua capacidade analítica e crítica e acordam completamente subjugados por uma nova forma de organização social a qual aderem completamente e passam a agir como agentes de um mundo autoritário. A figura do “desajustado” é vista como ameaça, não como sinal de força política. É nesse cenário que Invasores de Corpos ganha seu sentido, representando o conformismo, a adesão incondicional a causas ilusórias e a degenerescência social. O filme representa a opção social pelo conformismo e a capitulação da luta política real.

Quando a campanha eleitoral de 2017 e 2018 aconteceu e a possibilidade de vitória de Bolsonaro ficou evidente, o sentimento de ver as pessoas “transformadas” em bolsonaristas me levou a lembrar desse filme imediatamente. De repente, parentes, amigos e colegas de trabalho pareciam que tinham ido dormir e voltado completamente subjugados ao absurdo. Levou anos e muitas horas de análise política da semana para entender o que estava acontecendo. Essa alienação talvez seja a nossa própria, que não vimos o processo social mudar bem na nossa frente. De certa forma, foi e é assustador. Anos depois, encontrei na peça Terror e Miséria no Terceiro Reich, de Bertold Brecht, uma representação parecida. Um dos episódios mostra pais com medo do filho, membro do Partido Nazista Alemão. 

Agora, incluo neste mesmo balaio do absurdo as ideologias identitárias, da qual eu mesma fazia parte naquela época, como representante da pequena-burguesia progressista. É revelador, nesse processo, a importância da formação política e do materialismo histórico e dialético como arma para entender a complexidade da nossa realidade social dentro de uma conjuntura fragmentada e confusa. Os acontecimentos históricos atuais – como a guerra contra a Palestina na Faixa de Gaza – reforçam a importância do caminho materialista diante dos acontecimentos.

Dessa forma, podemos afirmar que, décadas depois, o filme permanece atual e talvez ainda mais inquietante. Isso porque o processo que ele simboliza ainda permanece, mas sob novas formas: o uso das religiões fundamentalistas, o populismo pseudo-fascista, a capitulação e captura das pautas progressistas para fins autoritários, o fim da liberdade de expressão, a ameaça constante de que a marcha autoritária avance, a piora nas condições de vida e de trabalho e a distopia como modo de viver. A alienação que vem de fora é internalizada e convertida em auto exploração e vigilância de si. 

O conformismo agora se manifesta na lógica da felicidade compulsória e da adequação permanente. Mais uma maneira de anular o conflito, a crítica e o afeto autêntico por dentro. Em nome da inclusão, da diversidade ou da superação pessoal, o que se exige é homogeneização afetiva e ideológica. Como no filme, onde os clones apontam e denunciam os humanos que restam, hoje a chamada cultura do cancelamento persegue quem pensa diferente da norma e quem recusa a versão da realidade imposta pela burguesia através de sua máquina de propaganda incessante.

A única saída é continuar a luta e a perseverança. Um mundo que chega a esse ponto não deve tardar a implodir.

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Last Update: 23/05/2025