O Brasil é o país das “Emendas Pix”, que permitem a deputados e senadores controlar, sem qualquer vestígio de transparência, a destinação de 4,5 bilhões de reais em verbas públicas por ano. É também o país dos “penduricalhos”, onde juízes federais e estaduais aumentam seus próprios salários com remunerações extras que, somadas, chegaram a 7 bilhões de reais em 2024. Os exemplos vindos dos poderes da República são claros ao indicar que a nossa frágil democracia funciona, de fato, à base de muito dinheiro – e seria de se estranhar que fosse diferente no comando do futebol brasileiro. Ainda assim, a figadal disputa de poder travada em torno da presidência da CBF, entidade que no ano passado apresentou receita líquida recorde de 1,5 bilhão de reais, comprova que, em termos de distribuição de recursos e participação democrática, aquele que já foi também o “país do futebol” ainda vive no tempo das capitanias hereditárias.
As últimas semanas foram marcadas por reviravoltas que culminaram no afastamento do presidente da CBF, Ednaldo Rodrigues, que estava no cargo desde 2021 e já se preparava para um segundo mandato, mas acabou pagando por acumular, nas palavras de uma pessoa próxima à entidade que conversou com a reportagem de CartaCapital, “muito dinheiro e muito poder, só que ainda mais inimigos”. Em uma série de decisões tomadas em menos de uma semana, um dos vice-presidentes da CBF, Fernando Sarney, foi nomeado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro como interventor e já marcou novas eleições para domingo 25 de maio.
Ex-presidente da Federação Baiana de Futebol, Rodrigues nunca fez parte do alto clero da CBF. Acabou alçado como solução provisória pelos grupos em disputa pelo poder na entidade após o afastamento do então presidente Rogério Caboclo, que havia sido eleito em 2019, mas foi afastado do cargo em 2021 após ser acusado de assédio moral e sexual por assessores. Após um breve período como interino, Rodrigues foi eleito presidente em 2022. “Os problemas do Ednaldo começaram quando perceberam que ele não queria devolver o poder, como havia sido acordado”, diz a fonte.
Cartola de Roraima, Samir Xaud já tem a bênção da maioria das federações estaduais
O gatilho para o desejo de permanência do cartola baiano foi um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado entre a CBF e o Ministério Público do Rio de Janeiro, protagonista de uma ação que pedia a anulação das eleições da entidade em 2018, uma vez que estas não respeitaram, segundo a denúncia, as regras estatutárias. Ao concordar, já no exercício da presidência, com a anulação da eleição de Caboclo, Rodrigues, na mesma tacada, afastou do núcleo decisório da CBF o grupo que o levou ao poder, representado, entre outros, pelas famílias Sarney e Zveiter. Desde então, sua cabeça tornou-se um objeto de desejo.
Ciente dos perigos que o cercavam, Rodrigues tratou de se fortalecer no poder. Usou o argumento mais convincente ao distribuir, segundo informe contábil da CBF, 1 bilhão de reais para o “desenvolvimento do futebol em todo o Brasil”. Na prática, isso significou polpudas remessas às federações estaduais e o notável aumento na remuneração dos presidentes das mesmas que, de um salário de 50 mil reais, passaram a receber 215 mil por mês. Tanto “desenvolvimento” à disposição de quem escolhe o presidente da CBF resultou em um contexto favorável para Rodrigues tentar um novo salto, a reeleição obtida, no fim de março, com os votos de todas as 27 federações estaduais e dos 40 clubes das séries A e B do Campeonato Brasileiro.
Tudo parecia correr às mil maravilhas para Rodrigues, que ainda tinha um trunfo a apresentar. Após uma novela que se arrastou por dois anos, ele anunciou, em 12 de maio, a contratação do técnico multicampeão Carlo Ancelotti para comandar a Seleção Brasileira no restante das Eliminatórias e na Copa de 2026. A partir de junho, o italiano será o treinador mais bem pago do planeta bola, com um salário anual de 50 milhões de reais e bônus de 5 milhões de euros em caso de conquista do hexa: “Mais do que um movimento estratégico, trazer o Ancelotti é mostrar ao mundo que o Brasil está determinado a recuperar o lugar mais alto do pódio”, disse o dirigente.

Troca. Rodrigues tentou distrair o público com a contratação do técnico Ancelotti. O presidente interino, Fernando Sarney, já convocou nova eleição para 25 de maio – Imagem: Buda Mendes/Getty Images/AFP, Cristina Quicler/AFP e Rafael Ribeiro/CBF
Curiosamente, a chegada do italiano está prevista para 26 de maio, um dia após as eleições marcadas para a entidade. Quem não estará mais no pódio é o próprio Rodrigues. Ancelotti ainda não se manifestou sobre as questões políticas que envolvem a CBF. Antes de, finalmente, tombar, Rodrigues havia vencido importantes percalços. Um deles ao sepultar a candidatura do ex-jogador e atual cartola Ronaldo Nazário, que desistiu de concorrer à presidência da CBF após obter respaldo zero das federações: “A maioria dos presidentes estaduais não quis nem me receber”, lamentou o “Fenômeno”, após o choque de realidade.
Outra vitória foi a liminar do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, que reconduziu Rodrigues ao poder em dezembro de 2023, quando o TJ do Rio decidiu pela primeira vez por seu afastamento, com base na ADI 7.580, que proíbe o Ministério Público de intervir em entidades esportivas. Mendes foi criticado pela decisão, uma vez que o Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), faculdade fundada por ele e administrada por seu filho, tem contratos firmados com a CBF para a “formação de técnicos de alto rendimento”, mas o ministro afirmou não enxergar conflito de interesses em sua decisão.
O humor de Mendes mudou, porém, após Fernando Sarney dar entrada no início de maio em um novo pedido de afastamento de Rodrigues. Com a acusação de que o comandante da CBF teria fraudado a assinatura de um de seus vices, Antônio Carlos Nunes de Lima, conhecido como Coronel Nunes, no documento que o reconduziu a novo mandato, o ministro do Supremo decidiu remeter a questão à instância inferior. Ao assumir a condução do caso, o desembargador Gabriel Zéfiro pediu ao Coronel, que tem 86 anos e foi diagnosticado com demência e déficit cognitivo, que comparecesse em juízo para confirmar sua assinatura. Como isso não aconteceu, Zéfiro determinou o afastamento imediato do presidente da CBF.
Rodrigues chegou a ensaiar uma resistência, mas jogou a toalha, na segunda-feira 19, ao comunicar ao STF que iria abrir mão da disputa judicial para “preservar a estabilidade institucional” da entidade e pôr fim a “narrativas que ferem a minha honra e a de minha família”.
O rei morreu? Viva o rei! Com Ednaldo Rodrigues fora do baralho, todas as atenções voltam-se agora para seu provável sucessor, o até aqui desconhecido empresário Samir Xaud, filho do “histórico” cartola Zeca Xaud, que, com breves períodos de interrupção, é presidente da Federação de Futebol de Roraima desde 1975. Após meio século no comando da inexpressiva federação, que tem um único clube a disputar o Brasileirão – o São Raimundo, na série D –, Zeca estava pronto a passar o trono ao filho, mas este agora foi alçado a um até então impensável voo bem mais alto. Com o apoio do clã Sarney, de Flávio Zveiter e de Gustavo Feijó, ex-presidente da Federação de Alagoas e próximo ao deputado Arthur Lira, do PP, Samir havia angariado, até o fechamento desta edição, o apoio de 25 federações o que, pelas regras eleitorais da CBF, inviabiliza a inscrição de qualquer outra chapa, pois é necessário um apoio mínimo de oito federações.
Em 2024, a CBF registrou um faturamento de 1,5 bilhão de reais
Presidentes das federações estaduais e dirigentes de clubes já começaram a desembarcar no Rio para participar, no domingo 25, do que está sendo chamado de “conclave da CBF”. Só que, ao contrário do que acontece em Roma, por aqui já se sabe de antemão o nome do futuro “papa”. A não ser que algum outro pretendente consiga reunir o apoio de pelo menos 36 clubes das séries A e B – fato pouco provável porque uma dezena de clubes já manifestou apoio a Xaud –, o pleito terá mesmo candidato único. Alguns clubes ainda tentaram emplacar o nome do presidente da Federação Paulista, Reinaldo Carneiro Bastos, mas ele só conseguiu reunir o apoio de 32 clubes, quatro a menos que o mínimo necessário para a inscrição da chapa.
Divididos em dois grupos – Libra e LFU – e incapazes de chegar a um acordo para se livrar da tutela da CBF, organizar o Campeonato Brasileiro e vendê-lo com o valor que um produto tão atrativo deveria ter, os clubes terminaram por se render em mais esta batalha e acataram o nome de Xaud. No domingo, apresentarão ao novo presidente da entidade máxima do futebol brasileiro um documento com oito “exigências”, como, por exemplo, a mudança nas regras do processo eleitoral na CBF, diminuindo o poder das federações estaduais, dando mais peso ao voto dos clubes e acabando com as atuais cláusulas de barreira. Também será exigido de Xaud, entre outras coisas, o compromisso para a criação da Liga Nacional de Clubes e a profissionalização da cada vez mais suspeita arbitragem de futebol no País.
Além de Xaud, serão escolhidos os oito novos vice-presidentes e também os integrantes do Conselho Fiscal da CBF. A fonte ouvida pela reportagem afirma que nessa escolha residirá a principal disputa para ver quem dará as cartas na nova gestão: “Será a volta da velha guarda”, prevê. A Liga, no entanto, ainda pode prosperar: “A proposta ganha força com o retorno de Zveiter. Ele estava à frente do processo de discussão com os clubes quando foi afastado por Ednaldo”. Mas nem todos compartilham dessa esperança: “Muda a página, mas o livro é o mesmo. Tudo farinha do mesmo saco”, diz Ronaldo Nazário.
Enquanto aguarda para exercer o importante cargo para o qual não tem nenhuma experiência, Xaud apressa-se em, pelo menos, garantir o emprego de Ancelotti. “É o melhor treinador do mundo. Vamos manter o contrato e garantir sua autonomia e segurança jurídica”, diz. Reverter dentro de campo a má fase da Amarelinha, galinha de bilionários ovos de ouro, como o bilionário contrato firmado com a Nike no ano passado, é tarefa fundamental para qualquer futuro treinador da Seleção ou presidente da CBF. Na última vez que entrou em campo, a equipe nacional levou um baile de 4 a 1 da sua maior rival, a Argentina. •
Publicado na edição n° 1363 de CartaCapital, em 28 de maio de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Conclave bilionário’