Maria Nazaré Marchi é professora de Biologia do Instituto Federal da Bahia (IFBA). Ministra aulas de Biologia Geral para alunos da graduação e de Botânica na pós-graduação. Ela ingressou no curso de Ciências Biológicas da Universidade Federal da Bahia (UFBA) em 2004, no primeiro ano em que a instituição implantou em seu processo seletivo uma política de cotas socioeconômicas – um passo decisivo para democratizar o acesso à educação superior, quase uma década antes da Lei 12.711, de 2012, marco legal que uniformizou essa ação afirmativa em nível nacional.

Assim como a UFBA, outras universidades públicas adotaram o sistema de cotas antes da norma federal, tendo a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) como pioneira, ao implementá-lo em 2002. Passadas mais de duas décadas desde o início desse processo, o Brasil colhe os frutos de uma revolução silenciosa, que abriu as portas do ensino superior para estudantes pobres, pretos, pardos e indígenas – e transformou o debate sobre a questão racial em um país marcado por três séculos e meio de escravidão.

Pobres, pretos, pardos e indígenas agora são grupos majoritários no ensino superior

“A política de cotas repara questões históricas que afetam pessoas negras e de baixa renda. Esse sistema mudou a minha vida e a da minha família e, de alguma forma, vai beneficiar meu filho”, diz Maria Nazaré, que cursou todo o ensino básico em escolas públicas do interior da Bahia. A trajetória da professora é semelhante à de Yasmim Vitória, de 24 anos, formada em um dos mais tradicionais e concorridos cursos de Medicina do País. Negra, periférica e também oriunda da rede pública de ensino, ela ingressou na Universidade de Pernambuco (UPE) em 2017 pela cota social – na época, a instituição ainda não havia incorporado o critério racial.

“Esse processo fez uma grande diferença na minha vida e na da minha família. E faz também na assistência médica que ofereço aos pacientes nos hospitais públicos da região metropolitana do Recife”, afirma a médica, atualmente residente em Cirurgia Geral – vaga também conquistada por meio de cotas. “A sociedade só tem a ganhar quando o meio acadêmico abre as portas para que a gente chegue nesses espaços e nos forneça o arcabouço para seguir em frente, nos qualificando cada vez mais.”

Ex-cotista, a médica Yasmim Vitória trabalha em hospitais da rede pública de Recife – Imagem: Arquivo Pessoal

Maria Nazaré e Yasmim fazem parte de um grupo majoritário da sociedade: os brasileiros negros e de baixa renda, que por muito tempo enxergaram o diploma universitário como um sonho inalcançável. No início dos anos 1990, as universidades eram extremamente elitizadas. Os jovens pertencentes ao quinto mais rico da população – os 20% de maior renda – ocupavam mais de 70% das vagas no ensino superior, tanto público quanto privado. Já os três quintos mais pobres ocupavam apenas 10% dessas vagas.

Com a consolidação das cotas, esse cenário começou a mudar. Em 2016, a participação do quinto mais rico caiu pela metade, passando a representar perto de 35% das matrículas. Enquanto isso, a presença dos três quintos mais pobres mais que triplicou. Em termos raciais, ocorreu um fenômeno semelhante: pretos, pardos e indígenas, que representavam 31,5% dos matriculados em 2001, passaram a ser 52,4% em 2021.

Esses e outros dados estão reunidos no livro O Impacto das Cotas: Duas Décadas de Ação Afirmativa no Ensino Superior Brasileiro (Ed. Autêntica), que será lançado em São Paulo na quinta-feira 22, após o fechamento desta edição de ­CartaCapital. Fruto da mais completa investigação acadêmica sobre o tema já realizada no Brasil, a obra reúne análises de mais de 40 pesquisadores, de diferentes formações, regiões e instituições, vinculados ao Consórcio de Acompanhamento das Ações Afirmativas, sob a gestão do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

“Nesses 20 anos, temos uma mudança contundente, que redefine a função social do ensino superior brasileiro, antes uma máquina de reproduzir desigualdades”, observa o sociólogo Luiz Augusto Campos, um dos organizadores da obra. “Famílias ricas ganhavam um prêmio depois de pagar escolas privadas caríssimas para seus filhos: ensino superior de qualidade e gratuito nas universidades mantidas com o dinheiro do contribuinte, que, em sua maioria, é preto, pardo e de baixa renda. Então, essa ação afirmativa fez com que a universidade pública passasse a ter, de fato, uma razão de existir.”

Em um dos artigos do livro, os pesquisadores Adriano Souza Senkevics e ­Ursula Mattioli Mello analisam a presença de egressos da escola pública nos cursos mais elitizados do País. Entre 2012 e 2016, houve um aumento expressivo na aprovação desses estudantes em gradua­ções de alta concorrência, como Medicina, Relações Internacionais, Odontologia, Direito, Engenharia e Psicologia. Na Universidade de Brasília (UnB), por exemplo, a participação deles no curso de Direito cresceu 118% – fenômeno que se repete em outras instituições e carreiras.

A variação é ainda mais acentuada quando se considera o recorte racial. No curso de Odontologia, enquanto o crescimento médio de alunos da escola pública foi de 64%, entre pretos, pardos e indígenas o avanço chegou a 125%. O estudo também mostra que, nas carreiras já acessíveis a esse público antes da adoção das cotas – como Pedagogia, Matemática, Estatística, Letras, História, Geografia, Serviço Social, Ciências Sociais e Filosofia –, não se observam mudanças significativas no perfil de ingresso.

A pesquisa desmonta a narrativa falaciosa de que o sistema de cotas rebaixaria o nível do ensino superior público, sob o argumento de que esses estudantes teriam dificuldade para acompanhar os conteúdos dos cursos. “Ouvi bastante isso antes de ser aprovada. Quando entrei na universidade, confesso que precisei de um nível de dedicação maior para dar conta das disciplinas, mas isso nunca me fez sentir inferior. Tanto que jamais precisei fazer prova de recuperação”, lembra Maria Nazaré, que emendou a graduação com o mestrado e, em seguida, com o doutorado. Em 2016, foi aprovada no concurso público para professora do IFBA. Negra, não precisou recorrer à cota racial na seleção: foi a primeira colocada, deixando a vaga reservada para outro candidato com o mesmo perfil.

De fato, existe uma diferença de pontuação no Enem entre cotistas e não cotistas, mas essa disparidade tende a ser rapidamente superada ao longo do curso, atestam os pesquisadores. “Tive algumas dificuldades inerentes ao caminho de quem conta com recursos diferentes. Sentia e gostaria que meu rendimento fosse melhor, mas acho que isso não teve nenhuma associação com meu nível de compreensão dos assuntos em comparação aos meus colegas”, afirma Yasmim Vitória. “É óbvio que há desigualdade de notas na entrada. Se não houvesse, não precisaríamos de cotas. Mas essa desigualdade não se mantém dentro da universidade”, argumenta Campos.

Segundo a pesquisadora Márcia Lima, que organizou o livro juntamente com Campos, essa diferença nas pontuações tem diminuído ao longo dos anos e, em alguns casos, os egressos da escola pública já superam os demais. “A tendência é achar que todos os estudantes cotistas têm desempenho pior, o que não é verdade. Fizemos um levantamento que mostra que, em 16% dos cursos, os cotistas obtiveram notas maiores no vestibular.”

Luiz Augusto Campos e Márcia Lima são organizadores do livro que reúne estudos de oito diferentes núcleos de pesquisa – Imagem: Larissa Lopes

Atualizada por Lula, a Lei de Cotas determina que 50% das vagas em cursos de graduação das universidades federais sejam destinadas a estudantes oriundos da rede pública de ensino. Dentro desse porcentual, ao menos metade deve ser ocupada por candidatos com renda familiar per capita de até um salário mínimo (1.518 reais). Desde a sua criação, a legislação também exige que a distribuição das vagas reflita a proporção de pretos, pardos e indígenas de cada estado, conforme os dados do IBGE. A partir de 2016, foi incluída uma subcota para pessoas com deficiência e, em 2023, para os quilombolas. As universidades têm autonomia para adotar ações afirmativas adicionais, e algumas já criaram cotas suplementares para pessoas trans ou negras, independentemente da origem escolar ou classe social.

“A presença de jovens negros e pobres nas universidades muda não apenas o perfil dessas instituições, mas também a epistemologia, a pesquisa, a diversidade na ciência e o próprio conhecimento científico”, destaca Márcia Lima, ao comentar a histórica resistência de setores reacionários à iniciativa. “Sempre houve um incômodo muito grande com o conhecimento produzido nas universidades. Se a gente observa as gestões de Michel Temer e Jair Bolsonaro, nota mudanças bastante deletérias para o espaço universitário, além da falta de investimento em ciência e pesquisa. Com a presença desse novo corpo discente oriundo das cotas – e, cada vez mais, também no quadro de professores –, o aborrecimento aumenta.”

Guilherme Renan, mestrando em Sociologia na Unicamp e ex-cotista do curso de Ciências Sociais da mesma universidade, reforça a importância da participação desse grupo social na construção do conhecimento. “Essa ação afirmativa revelou um Brasil real, tanto nas condições de ingresso quanto nas pesquisas científicas desenvolvidas nas universidades. A ciência não é neutra e, com a entrada desses novos sujeitos nesses espaços, a universidade vai se tornando mais plural em todos os sentidos: no perfil dos alunos e da própria instituição, na produção científica e nas políticas públicas que passam a ser implementadas a partir desse novo desenho social.”

Combater a discriminação no mercado de trabalho é outro desafio

Ao longo dos anos, as críticas às cotas nas universidades brasileiras foram arrefecendo, à medida que os resultados da iniciativa derrubavam os mitos criados. Com a recente eleição de Donald Trump, no entanto, os opositores voltaram a ganhar fôlego. O presidente dos EUA acusa as universidades norte-americanas de adotarem práticas discriminatórias contra estudantes brancos e asiático-americanos, e suspendeu o repasse de verbas federais às instituições que mantêm programas de diversidade e inclusão. Até a prestigiada Universidade Harvard tornou-se alvo desse assédio – e, até agora, é uma das poucas que seguem resistindo.

Em São Paulo, o deputado estadual Tenente Coimbra, do PL, aproveitou o embalo da ofensiva trumpista para protocolar um projeto na Assembleia Legislativa que proíbe cotas para pessoas trans em concursos públicos e no ingresso às universidades estaduais. O argumento é o de sempre: que o acesso às instituições deve dar-se pela “meritocracia” – uma narrativa pouco convincente, já que a desigualdade na concorrência começa no ponto de partida, sempre favorável a uma minoria privilegiada. Antes dele, o deputado federal Kim Kataguiri apresentou, na Câmara, uma proposta que proíbe qualquer forma de discriminação positiva “com base em cor, raça ou origem”. Ignorando a abissal desigualdade racial existente no Brasil, ele defende apenas as cotas sociais como justificáveis.

Nessas duas décadas de experiência, mais de cem universidades públicas aderiram às cotas, número que ganhou impulso a partir de 2008, quando o segundo governo Lula implantou o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais, o Reuni. Por meio dele, as instituições que adotassem o sistema receberiam investimentos para ampliar o número de vagas e o quadro docente, preparando-se para acolher os cotistas. O Reuni também incentivava a criação de programas voltados à permanência dos estudantes de menor renda e à redução da evasão, um dos principais gargalos ainda existentes no ensino superior brasileiro. Segundo os pesquisadores, a taxa de evasão continua alta em todos os grupos (em torno de 40%) com maior predominância entre homens em comparação às mulheres.

Os ataques de Trump às políticas de diversidade e inclusão das universidades norte-americanas atiça os opositores das cotas no Brasil – Imagem: Abe McNatt/Casa Branca Oficial

“Após mais de quatro anos de total abandono das universidades, o atual governo voltou a investir em bolsas de permanência, que é um ganho importante, e o estudante em situação de vulnerabilidade socioeconômica tem prioridade em receber o benefício. Mas a gente sabe que os recursos não são infindáveis. Por isso, é interessante buscar outros caminhos, como bolsa de iniciação científica e auxílio específico para pesquisas”, defende Márcia Lima, mostrando-se também preocupada com o futuro profissional dos cotistas. “O sucesso das ações afirmativas realmente vai ser medido pela inserção desses alunos no mercado de trabalho.”

“Se a discriminação persistir nas contratações das empresas, essa política falhou. Porque a adoção de cotas não é uma política fim, é uma política meio”, acrescenta Luiz Augusto Campos. “Inclusive, esperamos que algum dia a gente possa dispensá-la. Se tudo der certo, famílias negras vão ter condições de botar seus filhos para competir em pé de igualdade com as famílias brancas. Para isso, temos de avançar na discussão sobre ações afirmativas também no mercado de trabalho.” •


HISTÓRICO GARGALO

Parte das vagas reservadas aos cotistas nas universidades não é preenchida. A precária educação básica representa um obstáculo

É preciso ter uma base sólida para construir um futuro promissor – Imagem: Marcos Alves/GOVSP

As cotas promoveram a democratização do ensino superior, mas a péssima qualidade da educação básica continua sendo um gargalo que impede o ­País de avançar de forma mais significativa no combate às desigualdades. Os números do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, o Ideb, revelam uma estagnação em todas as etapas.

Houve tímida melhora nos primeiros anos do Ensino Fundamental, com o indicador oscilando de 5,8 pontos, em 2021, para 6, em 2023. Nos anos finais, a nota passou de 4,9 para 5, bem abaixo da meta estabelecida pelo Ministério da Educação, de 5,5. No Ensino Médio, outro banho de água fria: a meta era de 5,2, mas o Ideb ficou em 4,3, apenas 0,1 ponto acima do registrado em 2021.

Os dados se refletem no aprendizado e no desenvolvimento intelectual dos brasileiros, como mostra o mais recente levantamento do Indicador de Alfabetismo Funcional, divulgado pela ONG Ação Educativa no início deste mês. O número de brasileiros entre 15 e 64 anos incapazes de interpretar o que leem chega a 29%, mesmo patamar verificado em 2018. Entre os jovens de 15 a 29 anos, o índice aumentou de 14%, em 2018, para 16%, em 2024.

No cenário mundial, o vexame é ainda maior. Em 2022, o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, conhecido pela sigla Pisa, mediu pela primeira vez a capacidade criativa dos estudantes – e o Brasil terminou entre os 15 piores colocados de 56 países avaliados. Nas categorias tradicionais, nenhum alento: entre 81 nações participantes, ocupamos a 65ª posição em matemática, a 62ª em ciências e a 52ª em leitura.

Com a educação básica capenga, o Ministério da Educação aposta no programa ­Pé-de-Meia para reduzir a evasão e melhorar o desempenho dos alunos no Ensino Médio. Trata-se de um incentivo financeiro voltado a estudantes de famílias inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais, o CadÚnico. Se mantiverem uma frequência mínima de 80%, eles recebem mensalmente o valor de 200 reais, além de um bônus de mil reais ao fim de cada ano concluído – quantia que só pode ser sacada no término do curso. O programa, no entanto, levará tempo para surtir efeito, já que a adesão ainda é incipiente e os benefícios começaram a ser pagos há apenas um ano.

A elevada evasão no Ensino Médio tem reflexos diretos no Ensino Superior. Em nota, o MEC informou que há vagas destinadas a cotistas nas universidades que não estão sendo preenchidas, razão pela qual o governo vem investindo em ações específicas. “Lançamos dois programas com o objetivo de ampliar o acesso de estudantes das cotas ao Ensino Superior e à Educação Profissional e Tecnológica no Ensino Médio”, diz trecho do documento, em referência à Rede Nacional de Cursinhos Populares, que prepara alunos carentes para o Enem, e ao Partiu IF, cuja missão é fortalecer a aprendizagem dos estudantes do 9º ano, para que possam concorrer, com mais chances, a vagas nos cursos técnicos dos Institutos Federais.

Publicado na edição n° 1363 de CartaCapital, em 28 de maio de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Reparação da verdade’

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Last Update: 22/05/2025